O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Desarquivando o Brasil CXCIX: O governo federal arquivando a ditadura

Perguntaram-me se Lula tinha proibido que se falasse sobre os 60 anos do golpe de 1964. Expliquei para a pessoa, que tinha curso superior, que o presidente da república só podia exercer esse poder hierárquico sobre seus subordinados no governo federal, não sobre a sociedade civil, ou sobre outras esferas do poder institucional.

As pessoas não se calaram; na época, Evandro Éboli, no Correio Braziliense, fez um levantamento de 113 atos. 

Entendi que a estranha dúvida era sintoma corrente de uma sociedade autoritária. Eu não me calei: em março, dei um breve curso de título "60 anos do golpe de 1964, 10 anos do relatório da CNV" no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP e falei sobre a ditadura na Unesp de São José do Rio Preto.

Que Lula III tenha proibido atos da administração federal sobre os 60 anos do Golpe de 1964 é certamente lamentável, mas infelizmente previsível. Nos governos Lula I e II os familiares de mortos e desaparecidos políticos também não foram recebidos pelo presidente da república. Naqueles anos, houve reiteração por lei do sigilo eterno dos documentos decretado por Fernando Henrique Cardoso (o inconstitucional sigilo eterno cessou apenas com a Lei de Acesso a Informações em 2011), o governo federal judicialmente posicionou-se ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra contra o pedido do Ministério Público que ele ressarcisse os cofres públicos em razão das indenizações que a União pagava por causa dos crimes de lesa-humanidade cometidos no DOI-Codi durante sua chefia; ademais, declarou-se judicialmente a favor da anistia para os autores de crimes de lesa-humanidade da ditadura etc. 

Contei essas coisas e outras no meu livro mais recente, Ilícito absoluto. Também contei que todos os avanços em matéria de memória, verdade e justiça vieram dos militantes e dos movimentos sociais organizados, apesar do que pretende certa literatura dominante no direito brasileiro na área de justiça de transição, que prefere tecer fábulas triunfalistas do Estado. 

O governo federal por meio da nova direção do Arquivo Nacional, abandonou o projeto Memórias Reveladas, o que levou os servidores a organizarem protesto no aniversário do golpe, em Primeiro de Abril. Esse projeto de digitalização e disponibilização dos documentos da ditadura foi muito importante.

Depois de muita pressão, o governo federal reativou o projeto em 8 de maio, mas seu destino ainda é incerto: vejam o texto no Gira da Arquivo, que põe em dúvida também o acerto na escolha dos especialistas na Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas, que deixa de lado os especialistas da Arquivologia. Outra notícia é que o portal não é atualizado desde outubro de 2022: o governo Lula III, até agora, paralisou a disponibilização de arquivos da ditadura.

Inês Stampa, que estava à frente do projeto e foi investigada pelo ex-magistrado e ex-professor de Direitos da UFPR Sergio Moro na passagem dele pelo Ministério da Justiça do recente governo da extrema-dreita militar, pediu aposentadoria. Ela adoeceu depois de ver que o desmonte do projeto prosseguiu com o atual governo, segundo esta entrevista dada a Carlos Tautz e publicada pelo The Intercept

Suzana Lisboa, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos falou para o ICL Notícias em 12 de março: https://www.youtube.com/live/w1pWWJ1BUrk?si=WM7I3KfcINibovdL&t=2079

Nunca imaginei que ele chegaria tão baixo, apesar de ele nunca ter recebido os familiares. Este é o terceiro ano do governo dele e o presidente  Lula, com todas as agendas que fez, nunca recebeu os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Tenho certeza que as Abuelas da Plaza de Mayo, os familiares uruguaios se soubessem,  não teriam dado a ele o carinho que deram, pelo contrário, teriam reivindicado que ele se posicionasse no Brasil porque essa não é só uma questão do Brasil, essa é uma questão da América Latina, do mundo, da nossa história.

O argumento do governo federal é típico da ideologia autoritária: sua base é a "teoria dos dois demônios". Explico: quem defende o legado da ditadura em geral busca equalizar os crimes da lesa-humanidade da repressão com as ações de resistência da oposição. Proibir tanto manifestações "contra" e "a favor" do golpe de 1964 é, por si, tomar um lado; pois, quem não se posiciona favoravelmente à dignidade humana e à democracia escolheu o oposto disso.

Não há neutralidade nenhuma em manter-se isento entre democracia e ditadura. Os governistas deveriam saber disso.


P.S.: Há uma petição, "Solidariedade à professora Inez Stampa e pela reconstrução do MR e do Arquivo Nacional", aberta publicamente para assinatura: https://www.change.org/p/solidariedade-%C3%A0-professora-inez-stampa-e-pela-reconstru%C3%A7%C3%A3o-do-mr-e-do-arquivo-nacional

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Toda poesía es hostil al anarcocapitalismo, antologia organizada por Julián Axat



Julián Axat organizou a recente antologia Toda poesía es hostil al anarcocapitalismo (La Plata, Argentina: Pixel/ Chile: Askasis, 2024), com poetas argentinos e de outros países e regiões das Américas.

Na apresentação, ele fala que reuniu uma "assembleia de poetas", no sentido de Alberto Szpunberg, que busca representar a "urgente situação" por que passa grande parte da população argentina:


Desde la llegada al poder de La Libertad Avanza (LLA), en diciembre de 2023, todos los espacios y universos culturales se encuentran amenazados. En esta era neo oscurantista, el mundo de la poesía tiene el revolver de Goebbels apuntando a su cabeza.

Por eso, por una cuestión de supervivencia, la poesía se pone en guardia.


A maioria dos poemas trata criticamente do anarcocapitalismo ou do capitalismo tout court: o título, claro, inspira-se em Juan Gelman, que escreveu que toda poesia é hostil a esse modo de produção econômica.

A foto acima é de Axat e mostra a expressiva arte de Richard Somonte usada na capa. O arquivo do livro pode ser baixado por meio desta ligação: https://elniniorizoma.wordpress.com/wp-content/uploads/2024/04/toda-poesia-es-hostil-al-anarcocapitalismo.verson.final_.pdf

Estes são os autores:


ARGENTINA:

Alberto Cisnero (La Matanza, 1975)

Alicia Vicenzini (Santa Fe, 1967)

Ana Barral (Bahía Blanca, 1962)

Ana Caligaris (Clorinda, Formosa, 1957)

Analía Leonor Contini (Buenos Aires, 1955)

Andrea Edith Homene (Morón, 1967)

Antonio Ramos (Rosario 1950)

Ariel Montesinos (Quilmes, 1974)

Bernabé de Vinsenci (Saladillo, 1993)

Bernardo Carretoni (Alberti, 1992)

Carla Bianco (San Rafael, Mendoza, 1975)

Carlos Aprea (La Plata, 1955)

Carlos J. Aldazábal (Salta, 1974)

Carmen Losardo (Buenos Aires, 1983)

Cecilia Pontorno (La Plata, 1979)

César Beltrán Surigaray (Chascomús, 1952)

Conrado Yasenza (Lanús, 1967)

Coti López (General Belgrano, 1980)

Dafne Pidemunt (Buenos Aires, 1977)

Daniel Ballester (Buenos Aires, 1955)

Daniel Freidemberg (Resistencia, Chaco, 1945)

Daniel Gómez (La Matanza, 1968)

Daniel Krupa (Berisso, 1977)

Daniel Quintero (Buenos Aires, 1959)

Daniel Rotelle (Pergamino, 1956)

Dante Sepúlveda (Villalonga, 1986)

Darío Ledesma (“Palito”) (Tandil, 1987)

Demetrio Iramain (Buenos Aires, 1973)

Diana Szarazgat (Buenos Aires, 1959)

Diego L. García (Berazategui, 1983)

Eduardo Alberto Nico (Eduardo Magoo) (Lomas de Zamora, 1956)

Eduardo Rubinschik (Buenos Aires, 1967)

Enrique Schmukler (La Plata, 1976)

Erika Lederer (Salta, 1976)

Ernestina Elorriaga (Darregueira, 1954)

Esteban Leyes (Quilmes, 1985)

Eugenia Straccali (La Plata, 1970)

Fedra Spinelli (Buenos Aires, 1970)

Fela Tylbor (Puerto Madryn, 1961).

Fernanda Maciorowski (Puerto Madryn, 1982)

Fidel Maguna (Rosario, 1993)

Gito Minore (Buenos Aires, 1976)

Graciela Cros (Carlos Casares, 1945)

Guido Croxatto (Buenos Aires, 1982)

Guillermo Bianchi (Buenos Aires, 1970)

Guillermo Saavedra (Buenos Aires, 1960)

Gustavo M. Luján (Chilecito, La Rioja. 1974)

Hernán Minardi (Carmen de Areco, 1972)

Hernán Nemi (Buenos Aires, 1972)

Horacio Fiebelkorn (La Plata, 1958)

Jerónimo Corregido (La Plata, 1990)

Jorge Felippa (Córdoba, 1949)

José Supera (La Plata, 1981)

Josefina Oliva (La Plata, 1980)

Juan López (Mendoza, 1962)

Julia Dron (La Plata 1979)

Julián Axat (La Plata, 1976)

Julio César Ciccone (Buenos Aires, 1957)

Laura Forchetti (Coronel Dorrego, 1964)

Lautaro Virgilio (Avellaneda, 1989)

Leandro Alva (Temperley, 1975)

Leandro Daniel Barret (Rosario, 1977)

Liliana m. Majic (Buenos Aires, Argentina.1964)

Luciana Cano (Santiago del Estero, 1989).

Mara Oviedo (Villa 21/24, 1990)

Marcos Herrera (Buenos Aires, 1966)

Márgara Averbach (Buenos Aires, 1957)

María Belgrano (San Luis, 1979)

María Belgrano (San Luis, 1979)

María del Pedro (La Plata, 1971)

María Malusardi (Buenos Aires, 1966)

María Manuela Corral (Córdoba, 1980)

María Rosa Montes (Santa Fe, 1952)

María Urrutia (La Plata, 1945)

María Verónica Llull (San Martín, 1975)

María Victoria Fabre (Buenos Aires, 1968)

Mariana Agustina Romano (San Miguel de Tucumán, 1992)

Mariana Finochietto (General Belgrano, 1971)

Marina Arias (Haedo, 1973)

Mario Goloboff (Carlos Casares, 1939)

Martín Pucheta (Gualeguaychú, 1981)

Martín Raninqueo (La Plata, 1962)

Marx Bauzá (San Miguel de Tucumán, 1980)

Matías Fittipaldi (Mar del Plata, 1977)

Mauro Spinelli (La Plata, 1986)

Maximiliano Spreaf (Capital Federal, 1975)

Melina Gigli (Rosario, 1976)

Miguel Martínez Naón (California, Estados Unidos, 1976)

Natalia Notari (Concepción del Uruguay, 1974)

Natalia Pascua Lagostena (Villa Constitución, Santa Fe, 1987)

Nicol Signorini (Río Cuarto, 1993)

Nicolás Aused (Santa Fe, 1977)

Nicolás Prividera (Buenos Aires, 1970)

Nilda Bulzomi (Buenos Aires, 1958)

Ohuanta Salazar (San Miguel de Tucumán, 1975)

Oliverio Saudade (Mateo Fernández) (Embalse, Córdoba, 2000)

Pablo Bilsky (Rosario, 1963)

Pablo Campos (Buenos Aires, 1977)

Pablo Jacinto (Buenos Aires, 1992)

Paula Nogueira (La Plata, 1975)

Pilar Alí Brouchoud (La Plata, 1987)

Ramón Inama (La Plata, 1971)

Ricardo Algranati (Buenos Aires, 1951)

Ricardo Bizzarra (La Plata,1960)

Ricardo Luis Plaul (Tandil, 1948)

Ricardo Rojas Ayrala (Buenos Aires, 1963)

Ricardo Ruiz (Buenos Aires, 1953)

Rodrigo Zubiría (Buenos Aires, 1976)

Romina Freschi (Buenos Aires, 1974)

Sandra Gudiño (Santa Fe, 1966)

Santiago Featherston (La Plata, 1988)

Santiago Rebasa (Buenos Aires, 1972)

Sebastián Jorgi (Lanús, 1942)

Sebastián Pelayo Murray (La Plata, 1972)

Sebastián Russo Bautista (La Plata, 1973)

Sergio Marelli (La Plata, 1962)

Sergio Morán (Mendoza, 1979)

Silvana Melo (Olavarría, 1961)

Silvia Hedman (Oberá, Misiones, 1968) 

Silvina Melone (La Plata, 1974)

Sol Mircovich (La Plata, 1990)

Soledad Rodríguez Sabater (Posadas, Misiones, 1978)

Susana Cella (Buenos Aires, 1954)

Tomás Rosner (Buenos Aires, 1986)

Tomás Watkins (Neuquén, 1978)

Verona Demaestri (La Plata, 1976)

Víctor Cuello (“Pajarito”) (La Matanza, 1976)

Vladimir Jantus Castelli (La Plata, 1975)


ARUBA (PAÍSES BAIXOS)/ ARGENTINA

Arturo Desimone (Aruba, 1984)


BRASIL:

Pádua Fernandes (Rio de Janeiro, 1971)


CHILE

Absalón Opazo Moreno (Valparaíso, Chile, 1978)

Adrián Barahona (Chile, 1973)

Nibaldo Acero (Santiago, Chile, 1975)


EL SALVADOR

César Saravia (San Salvador, 1989)


PARAGUAI

Mireya Ribas Medal (Asunción, Paraguay, 1958)


PERU:

Tamara Padrón Abreu (Lima, 1980)


URUGUAI:

Paula Simonetti (Montevideo, 1989)


VENEZUELA

María Carolina Marschoff (Mérida, Venezuela, 1973)



Além de ter escrito poemas sob dois heterônimos seus acima listados, Julián Axat elaborou outro com  o uso de inteligência artificial (Chat GPT), "cruzando los conceptos Dengue y Virus neoliberal, al estilo poesía beat". Ficou interessante.

Deixo por último a menção a um poeta e músico desaparecido pela última ditadura na Argentina, Daniel Omar Favero (La Plata, 1957), incluído nesta antologia. Sua obra somente foi publicada durante a democracia.

Este é um livro em defesa da democracia.


P.S. Este é meu poema incluído na antologia.


Presidente e excrementos caninos
Pádua Fernandes


Já está pronto para download o aplicativo que permite descobrir entre os excrementos caninos pisados na rua qual deles é o presidente do país.

Não, enganei-me: o aplicativo que merece o seu download, gratuito enquanto não é pago, aplicativo enquanto funciona, para todos enquanto não surge outra forma de vigilância, o aplicativo dá a forma do país aos excrementos, ou dá a forma de fezes para o país, não sabemos ao certo, ainda está em fase de testes, assim como o presidente.

Na verdade, o aplicativo que está pronto é o que descobre o caminho para o país passando pelos excrementos presidenciais evitados pelos cães.

Parece que a versão gratuita do aplicativo não inclui a carta de admiração presidencial para Thatcher, que, até o momento, matou mais argentinos do que ele. O upgrade nível prata inclui campos de concentração para trinta mil debaixo das águas; nível ouro, vem com a reforma administrativa que incorpora as pensões aos campos.

A versão paga do aplicativo oferece a opção reajuste de 1000% de impostos, mas com algarismos ancap, completamente capados; o modelo Empreendedor do Caralho traz buracos nas calçadas tapados com as quedas dos manifestantes; a cor Estado Mínimo mostra o Tanque Máximo com que as forças de segurança patrulham os famintos; a versão Thatcher foi concebida para os órfãos das Malvinas; a cor Valas Anônimas é muito usada em games que treinam para o mercado de criptomoedas; o formato Fome é empreendedor, flexível, resiliente e pode ser aumentado em 100%, 200% ou mais, a depender do preço do voo das contas públicas nacionais para as ilhas do Caribe.

Caribe, Panamá e outros destinos, pois não há mais desabrigo sobre o país, mas apenas superávits crescentes do sol, da lua e dos outros astros sobre os corpos humanos. Bem como da chuva. E dos tiros.

Baixei! Mas não consegui chegar a lugar nenhum… Segundo o aplicativo, acabaram as ruas, enterradas pelos excrementos. De quem? Não se sabe, com esta presidência não há mais diferença entre decretos e latidos.

Quantos presidentes
na história do mundo
vieram dos latidos?
Ele aprendeu
a cagar e mijar
somente nas ruas
hoje interditadas 
por insalubridade geral,
por isso faz do palácio
sua latrina armada,
e ao trânsito dos coliformes
sobre a rua e os corpos
chama de liberdade.
Quando os latidos
se tornam presidentes
e saem às ruas
a que hora
tudo se torna
excremento?
……………………………………………………….

Vocês baixaram o aplicativo? Imbecis. Ele rouba todos os dados.
Não adianta reclamar: não há mais governo, só há os que governam.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Antes do punhal, a mutilação: a última Carmen no Municipal de São Paulo

Vi uma apresentação da última produção da ópera Carmen, de Bizet, no Teatro Municipal de São Paulo, sob a regência de Roberto Minczuk. Infelizmente, a obra sofreu diversos cortes. 

Imagino que pouquíssimas pessoas no mundo tenham visto uma apresentação com toda a música que o compositor escreveu para essa obra; já enquanto ele vivia, supressões de algumas passagens foram feitas por razões dramáticas ou musicais. 

Uma raríssima ocasião em que uma apresentação integral ocorreu foi a produção de 2023 da Ópera de Rouen Normandie, que ficou disponível por alguns meses para ser vista gratuitamente. Decidiram montá-la seguindo as instruções e ilustrações da montagem original. Até os cenários da estreia foram reproduzidos! Vejam a cena da Seguidilha, com Deepa Johnny como Carmen e Stanilas de Barbeyrac interpretando Don José, com a regência de Ben Glassberg: https://www.youtube.com/watch?v=Xg8hJu-KQGw

Um trabalho notável de pesquisa. Restauraram até a cena do primeiro ato em que Morales comenta o triângulo amoroso formado pelo velho casado com a jovem que aceita a corte de um jovem na praça. A cena não acrescenta nada à história, evidentemente, mas amplia o papel de Morales, e é pura Opéra Comique.

Dito isso, a produção não seguiu estritamente o texto musical de 1875, pois usou os recitativos de Guiraud (o que torna a ópera mais acessível para cantores não francófonos), criados posteriormente para exportar a ópera para outros teatros. No original para a Opéra Comique, temos canto, mas também diálogos e monólogos falados, o que fazia parte desse estilo.

Escrevo, porém, por causa da produção encenada em São Paulo em 2024, que não se limitou aos cortes tradicionais, que são usuais até mesmo em gravações, mas incluiu outros. O papel de Micaëla foi reduzido: além do corte tradicional de falas, o dueto do primeiro ato com Don José foi reduzido à metade, perdendo a importante referência velada que o militar faz à Carmen. Ela perdeu também todas suas falas ao chegar no acampamento e o recitativo: ela abre a boca já para começar a ária "Je dis que rien ne m'épouvante", o que não é o melhor para a compreensão da história e torna a cena dramaticamente capenga.

O terceiro ato foi particularmente comprometido pelas mutilações. Depois do recitativo, o dueto entre tenor e barítono foi suprimido! Trata-se do momento em que Escamillo chega ao acampamento dos ciganos, Don José está a montar guarda. Mas o toureador veio atrás de Carmen, o que leva a um duelo. 

Bizet fez Escamillo vencer o primeiro desafio; mas Don José quer lutar outra vez; na segunda, ele está para matar o rival quando chegam Carmen e os outros ciganos e o impedem de cometer assassinato.

Em geral, o primeiro round do duelo é suprimido nas montagens, o que deixa meio sem sentido a referência que Escamillo faz adiante de que eles terão mais tarde a chance de desempatar o duelo. 

Contudo, além desse corte, no Municipal de São Paulo resolveram extirpar o dueto (aqui, com Roberto Alagna e Ludovic Tézier: https://youtu.be/ckZP2520E0g?si=cEcBO5UXPnl0yikD&t=146). Depois do recitativo, só restou a parte instrumental. 

O coro inicial do início do quarto ato foi reduzido, mas pelo menos o público pôde ouvi-lo uma vez. Porém, o que me pareceu realmente trair o compositor foi a desfiguração realizada no início do terceiro ato: Bizet construiu essa cena do acampamento de ciganos pela apresentação de frases que são progressivamente acumuladas. No início, o coro masculino (que representa aí os ciganos) canta sozinho, e expõe para o público a frase cromática "Prends garde de faire un faux pas"), que é retomada depois, com os solistas e o coro feminino em cena.

Esse início foi cortado e a cena já começa com os solistas, ferindo a construção musical de Bizet. Foi como apresentar um edifício só com os andares de cima: simplesmente não fez sentido.

Creio que não faz sentido também chamar cantores estrangeiros medianos para papéis que intérpretes brasileiros podem fazer melhor. Vi o elenco 1 (perdi, infelizmente, a Micaëla de Marly Montoni, que eu já tinha visto cantando a protagonista). Por que chamar do exterior uma cantora que não consegue se fazer ouvida nas frases graves da cena das cartas? Não pensem que Raquel Paulin e Andreia Souza, que interpretaram Frasquita e Mercédès, estivessem tentando encobrir a protagonista: elas simplesmente cantaram (bem) suas partes. O problema era a cantora italiana não ter volume no grave, enquanto o outro extremo de sua voz também era problemático: o vibrato no agudo se alargou já desde a nota sol, como se viu no começo do segundo ato.

O tenor Jean William e o barítono Johnny França pareceram-me os destaques vocais dessa apresentação, embora cantassem os papéis mais curtos de Remendado e Dancaïre. Eles aproveitaram suas chances nos poucos momentos que tinham para brilhar, de forma que não era nem mesmo necessário ter visto França em 2023 como Escamillo em outro teatro em São Paulo para saber que ele era superior ao barítono argentino que fez o papel nesta produção de 2024 do Teatro Municipal.

Apesar de tudo, o público aplaudiu febrilmente. Perguntei ao jovem que estava a meu lado se ele já tinha visto a ópera: nunca, e essa é uma das responsabilidades de montar essas obras clássicas do repertório, apresentá-las dignamente a novos espectadores. Certamente eles terão a oportunidade de ver no futuro produções mais integrais.

Não falei da produção cênica de Jorge Takla porque, apesar da falta de sentido do que se via no palco, o que aconteceu com a música me pareceu pior. Márvio dos Anjos, que gostou do espetáculo mais do que eu, escreveu que a concepção cênica esvaiu-se no final da encenação e não foi seguida em todas suas implicações. Concordo com esse ponto da análise: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/05/06/critica-na-carmen-de-sp-com-algo-de-madonna-faltam-conviccoes-a-uma-bela-ideia.ghtml).

Com essa concepção ligeira do fascismo como simples adorno ou plano de fundo, o resultado foi uma simples estetização da política, no sentido de banalização de um fenômeno político cuja atualidade não deve ser desmentida. Nesse ponto, também, Carmen, que nada tem de banal, foi traída.