Perguntaram-me se Lula tinha proibido que se falasse sobre os 60 anos do golpe de 1964. Expliquei para a pessoa, que tinha curso superior, que o presidente da república só podia exercer esse poder hierárquico sobre seus subordinados no governo federal, não sobre a sociedade civil, ou sobre outras esferas do poder institucional.
As pessoas não se calaram; na época, Evandro Éboli, no Correio Braziliense, fez um levantamento de 113 atos.
Entendi que a estranha dúvida era sintoma corrente de uma sociedade autoritária. Eu não me calei: em março, dei um breve curso de título "60 anos do golpe de 1964, 10 anos do relatório da CNV" no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP e falei sobre a ditadura na Unesp de São José do Rio Preto.
Que Lula III tenha proibido atos da administração federal sobre os 60 anos do Golpe de 1964 é certamente lamentável, mas infelizmente previsível. Nos governos Lula I e II os familiares de mortos e desaparecidos políticos também não foram recebidos pelo presidente da república. Naqueles anos, houve reiteração por lei do sigilo eterno dos documentos decretado por Fernando Henrique Cardoso (o inconstitucional sigilo eterno cessou apenas com a Lei de Acesso a Informações em 2011), o governo federal judicialmente posicionou-se ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra contra o pedido do Ministério Público que ele ressarcisse os cofres públicos em razão das indenizações que a União pagava por causa dos crimes de lesa-humanidade cometidos no DOI-Codi durante sua chefia; ademais, declarou-se judicialmente a favor da anistia para os autores de crimes de lesa-humanidade da ditadura etc.
Contei essas coisas e outras no meu livro mais recente, Ilícito absoluto. Também contei que todos os avanços em matéria de memória, verdade e justiça vieram dos militantes e dos movimentos sociais organizados, apesar do que pretende certa literatura dominante no direito brasileiro na área de justiça de transição, que prefere tecer fábulas triunfalistas do Estado.
O governo federal por meio da nova direção do Arquivo Nacional, abandonou o projeto Memórias Reveladas, o que levou os servidores a organizarem protesto no aniversário do golpe, em Primeiro de Abril. Esse projeto de digitalização e disponibilização dos documentos da ditadura foi muito importante.
Depois de muita pressão, o governo federal reativou o projeto em 8 de maio, mas seu destino ainda é incerto: vejam o texto no Gira da Arquivo, que põe em dúvida também o acerto na escolha dos especialistas na Comissão de Altos Estudos do Memórias Reveladas, que deixa de lado os especialistas da Arquivologia. Outra notícia é que o portal não é atualizado desde outubro de 2022: o governo Lula III, até agora, paralisou a disponibilização de arquivos da ditadura.
Inês Stampa, que estava à frente do projeto e foi investigada pelo ex-magistrado e ex-professor de Direitos da UFPR Sergio Moro na passagem dele pelo Ministério da Justiça do recente governo da extrema-dreita militar, pediu aposentadoria. Ela adoeceu depois de ver que o desmonte do projeto prosseguiu com o atual governo, segundo esta entrevista dada a Carlos Tautz e publicada pelo The Intercept.
Suzana Lisboa, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos falou para o ICL Notícias em 12 de março: https://www.youtube.com/live/w1pWWJ1BUrk?si=WM7I3KfcINibovdL&t=2079.
Nunca imaginei que ele chegaria tão baixo, apesar de ele nunca ter recebido os familiares. Este é o terceiro ano do governo dele e o presidente Lula, com todas as agendas que fez, nunca recebeu os familiares de mortos e desaparecidos políticos. Tenho certeza que as Abuelas da Plaza de Mayo, os familiares uruguaios se soubessem, não teriam dado a ele o carinho que deram, pelo contrário, teriam reivindicado que ele se posicionasse no Brasil porque essa não é só uma questão do Brasil, essa é uma questão da América Latina, do mundo, da nossa história.
O argumento do governo federal é típico da ideologia autoritária: sua base é a "teoria dos dois demônios". Explico: quem defende o legado da ditadura em geral busca equalizar os crimes da lesa-humanidade da repressão com as ações de resistência da oposição. Proibir tanto manifestações "contra" e "a favor" do golpe de 1964 é, por si, tomar um lado; pois, quem não se posiciona favoravelmente à dignidade humana e à democracia escolheu o oposto disso.
Não há neutralidade nenhuma em manter-se isento entre democracia e ditadura. Os governistas deveriam saber disso.
P.S.: Há uma petição, "Solidariedade à professora Inez Stampa e pela reconstrução do MR e do Arquivo Nacional", aberta publicamente para assinatura: https://www.change.org/p/solidariedade-%C3%A0-professora-inez-stampa-e-pela-reconstru%C3%A7%C3%A3o-do-mr-e-do-arquivo-nacional