O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 14 de maio de 2024

Antes do punhal, a mutilação: a última Carmen no Municipal de São Paulo

Vi uma apresentação da última produção da ópera Carmen, de Bizet, no Teatro Municipal de São Paulo, sob a regência de Roberto Minczuk. Infelizmente, a obra sofreu diversos cortes. 

Imagino que pouquíssimas pessoas no mundo tenham visto uma apresentação com toda a música que o compositor escreveu para essa obra; já enquanto ele vivia, supressões de algumas passagens foram feitas por razões dramáticas ou musicais. 

Uma raríssima ocasião em que uma apresentação integral ocorreu foi a produção de 2023 da Ópera de Rouen Normandie, que ficou disponível por alguns meses para ser vista gratuitamente. Decidiram montá-la seguindo as instruções e ilustrações da montagem original. Até os cenários da estreia foram reproduzidos! Vejam a cena da Seguidilha, com Deepa Johnny como Carmen e Stanilas de Barbeyrac interpretando Don José, com a regência de Ben Glassberg: https://www.youtube.com/watch?v=Xg8hJu-KQGw

Um trabalho notável de pesquisa. Restauraram até a cena do primeiro ato em que Morales comenta o triângulo amoroso formado pelo velho casado com a jovem que aceita a corte de um jovem na praça. A cena não acrescenta nada à história, evidentemente, mas amplia o papel de Morales, e é pura Opéra Comique.

Dito isso, a produção não seguiu estritamente o texto musical de 1875, pois usou os recitativos de Guiraud (o que torna a ópera mais acessível para cantores não francófonos), criados posteriormente para exportar a ópera para outros teatros. No original para a Opéra Comique, temos canto, mas também diálogos e monólogos falados, o que fazia parte desse estilo.

Escrevo, porém, por causa da produção encenada em São Paulo em 2024, que não se limitou aos cortes tradicionais, que são usuais até mesmo em gravações, mas incluiu outros. O papel de Micaëla foi reduzido: além do corte tradicional de falas, o dueto do primeiro ato com Don José foi reduzido à metade, perdendo a importante referência velada que o militar faz à Carmen. Ela perdeu também todas suas falas ao chegar no acampamento e o recitativo: ela abre a boca já para começar a ária "Je dis que rien ne m'épouvante", o que não é o melhor para a compreensão da história e torna a cena dramaticamente capenga.

O terceiro ato foi particularmente comprometido pelas mutilações. Depois do recitativo, o dueto entre tenor e barítono foi suprimido! Trata-se do momento em que Escamillo chega ao acampamento dos ciganos, Don José está a montar guarda. Mas o toureador veio atrás de Carmen, o que leva a um duelo. 

Bizet fez Escamillo vencer o primeiro desafio; mas Don José quer lutar outra vez; na segunda, ele está para matar o rival quando chegam Carmen e os outros ciganos e o impedem de cometer assassinato.

Em geral, o primeiro round do duelo é suprimido nas montagens, o que deixa meio sem sentido a referência que Escamillo faz adiante de que eles terão mais tarde a chance de desempatar o duelo. 

Contudo, além desse corte, no Municipal de São Paulo resolveram extirpar o dueto (aqui, com Roberto Alagna e Ludovic Tézier: https://youtu.be/ckZP2520E0g?si=cEcBO5UXPnl0yikD&t=146). Depois do recitativo, só restou a parte instrumental. 

O coro inicial do início do quarto ato foi reduzido, mas pelo menos o público pôde ouvi-lo uma vez. Porém, o que me pareceu realmente trair o compositor foi a desfiguração realizada no início do terceiro ato: Bizet construiu essa cena do acampamento de ciganos pela apresentação de frases que são progressivamente acumuladas. No início, o coro masculino (que representa aí os ciganos) canta sozinho, e expõe para o público a frase cromática "Prends garde de faire un faux pas"), que é retomada depois, com os solistas e o coro feminino em cena.

Esse início foi cortado e a cena já começa com os solistas, ferindo a construção musical de Bizet. Foi como apresentar um edifício só com os andares de cima: simplesmente não fez sentido.

Creio que não faz sentido também chamar cantores estrangeiros medianos para papéis que intérpretes brasileiros podem fazer melhor. Vi o elenco 1 (perdi, infelizmente, a Micaëla de Marly Montoni, que eu já tinha visto cantando a protagonista). Por que chamar do exterior uma cantora que não consegue se fazer ouvida nas frases graves da cena das cartas? Não pensem que Raquel Paulin e Andreia Souza, que interpretaram Frasquita e Mercédès, estivessem tentando encobrir a protagonista: elas simplesmente cantaram (bem) suas partes. O problema era a cantora italiana não ter volume no grave, enquanto o outro extremo de sua voz também era problemático: o vibrato no agudo se alargou já desde a nota sol, como se viu no começo do segundo ato.

O tenor Jean William e o barítono Johnny França pareceram-me os destaques vocais dessa apresentação, embora cantassem os papéis mais curtos de Remendado e Dancaïre. Eles aproveitaram suas chances nos poucos momentos que tinham para brilhar, de forma que não era nem mesmo necessário ter visto França em 2023 como Escamillo em outro teatro em São Paulo para saber que ele era superior ao barítono argentino que fez o papel nesta produção de 2024 do Teatro Municipal.

Apesar de tudo, o público aplaudiu febrilmente. Perguntei ao jovem que estava a meu lado se ele já tinha visto a ópera: nunca, e essa é uma das responsabilidades de montar essas obras clássicas do repertório, apresentá-las dignamente a novos espectadores. Certamente eles terão a oportunidade de ver no futuro produções mais integrais.

Não falei da produção cênica de Jorge Takla porque, apesar da falta de sentido do que se via no palco, o que aconteceu com a música me pareceu pior. Márvio dos Anjos, que gostou do espetáculo mais do que eu, escreveu que a concepção cênica esvaiu-se no final da encenação e não foi seguida em todas suas implicações. Concordo com esse ponto da análise: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2024/05/06/critica-na-carmen-de-sp-com-algo-de-madonna-faltam-conviccoes-a-uma-bela-ideia.ghtml).

Com essa concepção ligeira do fascismo como simples adorno ou plano de fundo, o resultado foi uma simples estetização da política, no sentido de banalização de um fenômeno político cuja atualidade não deve ser desmentida. Nesse ponto, também, Carmen, que nada tem de banal, foi traída.

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