O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
domingo, 31 de outubro de 2010
Néstor Kirchner e duas mortes entre a memória e o terror
Eu estava em Florianópolis quando ocorreu a morte de duas pessoas que viveram em trincheiras opostas do direito à memória e à verdade: Romeu Tuma, antigo delegado-chefe do DOPS/SP, polícia política do Estado de São Paulo, e Néstor Kirchner, ex-presidente da Argentina, que dirigia, quando morreu, a Unasur.
Estava no Seminário Direito e Ditadura, muito bem organizado pelo PET de Direito da UFSC, onde tirei a foto acima (http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/10/evento-seminario-direito-e-ditadura-na.html).
No dia 27 de outubro de 2010, eu iria proferir uma palestra sobre direito e segurança nacional, a partir da análise de documentos do DEOPS/SP. Ao ser informado do acontecimento, incorporei à apresentação mais um documento, em que certo banco agradecia ao então delegado pela ação na repressão à greve, comunicando o comparecimento dos trabalhadores e sua jornada de trabalho. A questão social continuava sendo, como se dizia na República Velha, uma questão de polícia.
Ao lado, vê-se outro momento do cotidiano da repressão política no Brasil: receber correspondência da Anistia Internacional dirigida a presos políticos do Presídio Tiradentes. A fonte do documento é o Arquivo Público do Estado de São Paulo - APESP.
No dia 28, morreu Néstor Kirchner. Deve-se lembrar que ele impulsionou fortemente as políticas de memória (ao contrário de Menem, que as sabotou). Durante o seu governo as leis de anistia argentina foram revogadas, e ele propiciou as condições políticas para tanto, o que o distingue tremendamente do atual presidente brasileiro.
Para homenageá-lo, li no sarau do evento da UFSC, no mesmo dia, um poema de Julián Axat (sobre quem escrevi aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/07/o-poeta-e-jurista-julian-axat-nasceu-em.html), que imagina um pacto entre dois poetas assassinados pelo terror de Estado na Argentina, Francisco Urondo (1930-1976) e Miguel Ángel Bustos (1933-1976). O poema foi publicado em médium (poética belli) (Buenos Aires: Paradiso, 2006). Eis a minha tradução, que sairá, espero, em uma futura antologia:
pacto entre F. Urondo e M. A. Bustos (Pacto maior)
encontraram-se
e o pacto foi
que dessa noite
nesse impossível lugar
surgisse
o destino final da poesia
então
convocaram
os poetas caídos
os assassinados
os que ficaram cantando sozinhos
os que em alguma vez empunharam a palavra justa
todos se fizeram presentes
a brindar com suas armas-taças
para que nada seja em vão
para que o oco que separa
a nós deles
eles de nós
não possa ingressar
de novo nas palavras
O próprio Julián Axat, por sinal, homenageou Néstor Kirchner com um poema de Joaquín Areta, outro autor, assassinado pelo terror de Estado, que Axat vem recuperando na coleção Detectives Salvajes: http://coleccionlosdetectivessalvajes.blogspot.com/2010/10/lds-recuerdan-al-ex-presidente.html
Na postagem, pode-se verificar que o próprio Kirchner lê o poema no vídeo indicado.
Acabo de ver que Flávia Cera, uma das conferencistas do Seminário (com um ousado trabalho sobre as políticas do corpo e a Tropicália), escreveu também a respeito, referindo-se aos recentes julgamentos dos acusados de crimes contra a humanidade na Argentina: http://www.culturaebarbarie.org/mundoabrigo/2010/10/para-que-nao-se-esqueca-para-q.html.
Para que não se esqueça, é preciso travar a batalha pelo significado do que passou. Para tanto, a pesquisa histórica é fundamental, mas não basta: parte desse significado é jurídico, por isso os juristas e políticos que advogam a impunidade fazem um desserviço para a questão.
sábado, 30 de outubro de 2010
Eleições no Brasil: Imprensa e censura, Maria Rita Kehl
Sugeri a colegas professores que, em prova de Lógica, usassem duas frases de Dilma Rousseff que o semanário Veja estampou na capa de um dos números de outubro de 2010: "Acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Acho um absurdo que não haja." e "Eu pessoalmente sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência."
O aluno que encontrasse contradição entre as declarações mereceria uma nota baixa. É evidentemente possível ser pessoalmente contra algo que se queira descriminalizar. Não acho que adultério deva ser crime, porém não pretendo cometê-lo nem quero que o façam comigo.
É difícil entender isso? Difícil é fazer com que isso não se entenda, mas a esse nefasto ofício (uma forma de privatização da esfera pública) se dedicam veículos impressos como esse.
A aposta na irracionalidade por essa imprensa no Brasil explica que a inteligência tenha de ser demitida, como foi o caso de Maria Rita Kehl no Estado de S. Paulo.
Conheço pessoalmente a escritora e psicanalista. Sua trajetória na imprensa começa no fim dos anos 1970, quando, muito nova, militou na imprensa alternativa. Em minha pesquisa nos documentos do DEOPS/SP, vi como ela e outros eram acompanhados pela ditadura militar.
Conheço pouco de psicanálise, porém me atrevo em dizer que a considero um dos maiores intelectuais brasileiros. O que escreve e diz vai muito além dos muros de uma disciplina: convoca os diversos saberes sociais, como se vê em seu O tempo e o cão (ainda se pode votar nesse livro para o prêmio popular Jabuti de não ficção: http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/voto-popular/). Nada mais adequado para uma fala vocacionada para a esfera pública.
Contra essa fala, os conservadores empunham a censura. Ela acabou depois da vedação na Constituição de 1988? Como órgão do Estado, apenas. A censura continua, inscrita no seio da sociedade, como bem lembra meu brilhante amigo Alexandre Nodari: http://jornalurtiga.blogspot.com/2009/08/censura-ja-nao-precisa-mais-de-si-mesma.html (e sobre que eu mesmo escrevi, numa perspectiva do direito internacional: http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-fernandes1.pdf)
Chico Buarque, no disco Almanaque, gravou a canção "A voz do dono e o dono da voz", em que retratou sua briga com a Polygram. Quando o jornal faz com que todas as vozes submetam-se ao mesmo dono, troca-se a polifonia por um ruído de uma nota só. O empobrecimento é evidente.
Que a única voz seja a voz do dono, eis a distopia dessa imprensa; Kehl escreveu bem o oposto em sua última coluna para o Estado de S. Paulo, dedicada a desmistificar preconceitos contra o Bolsa-Família, que encobrem outros: http://www.cartacapital.com.br/politica/dois-pesos%E2%80%A6-maria-rita-khel-diz-tudo A desvalorização do voto dos pobres revela o desejo de que não sejam donos de sua própria voz. Eis o que indigna tantos: qualquer odor, mesmo distante, de justiça social, de mudança na partilha do comum. Trata-se de um exemplo de "escândalo democrático", como diria Rancière.
A mesma postura estava no texto "Repulsa ao sexo" http://antoniocicero.blogspot.com/2010/10/maria-rita-kehl-repulsa-ao-sexo.html, também publicado naquele jornal, em que argumentava como a criminalização do aborto representava um aspecto do domínio patriarcal sobre o corpo da mulher, e do castigo por separar o prazer sexual do dever de procriação.
Volta-se, pois, ao aborto, bandeira aparentemente abandonada por Mônica Serra, mas reavivada há pouco pela voz teocrática de Ratzinger (talvez esperando que Locke estivesse certo ao afirmar que os católicos obedeceriam ao soberano de Roma).
Algo semelhante ocorreu há pouco em Portugal. Eduardo Pitta conta, em seu blogue Da literatura (indico a ligação ao lado), o uso de declarações da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen pelo PPV, Partido Português Pró-Vida:
Porém, em Portugal, esse partido só teve 0,15% dos votos... Seria tão bonito que o mesmo ocorresse no Brasil...
O aluno que encontrasse contradição entre as declarações mereceria uma nota baixa. É evidentemente possível ser pessoalmente contra algo que se queira descriminalizar. Não acho que adultério deva ser crime, porém não pretendo cometê-lo nem quero que o façam comigo.
É difícil entender isso? Difícil é fazer com que isso não se entenda, mas a esse nefasto ofício (uma forma de privatização da esfera pública) se dedicam veículos impressos como esse.
A aposta na irracionalidade por essa imprensa no Brasil explica que a inteligência tenha de ser demitida, como foi o caso de Maria Rita Kehl no Estado de S. Paulo.
Conheço pessoalmente a escritora e psicanalista. Sua trajetória na imprensa começa no fim dos anos 1970, quando, muito nova, militou na imprensa alternativa. Em minha pesquisa nos documentos do DEOPS/SP, vi como ela e outros eram acompanhados pela ditadura militar.
Conheço pouco de psicanálise, porém me atrevo em dizer que a considero um dos maiores intelectuais brasileiros. O que escreve e diz vai muito além dos muros de uma disciplina: convoca os diversos saberes sociais, como se vê em seu O tempo e o cão (ainda se pode votar nesse livro para o prêmio popular Jabuti de não ficção: http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/voto-popular/). Nada mais adequado para uma fala vocacionada para a esfera pública.
Contra essa fala, os conservadores empunham a censura. Ela acabou depois da vedação na Constituição de 1988? Como órgão do Estado, apenas. A censura continua, inscrita no seio da sociedade, como bem lembra meu brilhante amigo Alexandre Nodari: http://jornalurtiga.blogspot.com/2009/08/censura-ja-nao-precisa-mais-de-si-mesma.html (e sobre que eu mesmo escrevi, numa perspectiva do direito internacional: http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-fernandes1.pdf)
Chico Buarque, no disco Almanaque, gravou a canção "A voz do dono e o dono da voz", em que retratou sua briga com a Polygram. Quando o jornal faz com que todas as vozes submetam-se ao mesmo dono, troca-se a polifonia por um ruído de uma nota só. O empobrecimento é evidente.
Que a única voz seja a voz do dono, eis a distopia dessa imprensa; Kehl escreveu bem o oposto em sua última coluna para o Estado de S. Paulo, dedicada a desmistificar preconceitos contra o Bolsa-Família, que encobrem outros: http://www.cartacapital.com.br/politica/dois-pesos%E2%80%A6-maria-rita-khel-diz-tudo A desvalorização do voto dos pobres revela o desejo de que não sejam donos de sua própria voz. Eis o que indigna tantos: qualquer odor, mesmo distante, de justiça social, de mudança na partilha do comum. Trata-se de um exemplo de "escândalo democrático", como diria Rancière.
A mesma postura estava no texto "Repulsa ao sexo" http://antoniocicero.blogspot.com/2010/10/maria-rita-kehl-repulsa-ao-sexo.html, também publicado naquele jornal, em que argumentava como a criminalização do aborto representava um aspecto do domínio patriarcal sobre o corpo da mulher, e do castigo por separar o prazer sexual do dever de procriação.
Volta-se, pois, ao aborto, bandeira aparentemente abandonada por Mônica Serra, mas reavivada há pouco pela voz teocrática de Ratzinger (talvez esperando que Locke estivesse certo ao afirmar que os católicos obedeceriam ao soberano de Roma).
Algo semelhante ocorreu há pouco em Portugal. Eduardo Pitta conta, em seu blogue Da literatura (indico a ligação ao lado), o uso de declarações da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen pelo PPV, Partido Português Pró-Vida:
Um deles, Maria Andresen, é peremptória: «Uma coisa era a minha mãe ser pessoalmente contra o aborto e outra estar contra a sua legalização. Conversámos imensas vezes sobre isso e sei que a minha mãe sempre recusou militar em qualquer movimento anti-aborto, precisamente por respeitar a liberdade de consciência de cada um.»
http://daliteratura.blogspot.com/2010/10/invocar-sophia-em-vao.html
Porém, em Portugal, esse partido só teve 0,15% dos votos... Seria tão bonito que o mesmo ocorresse no Brasil...
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
Lançamento de tradução de Heschel
(Clicando no cartaz, ele aparecerá maior.)
Meu amigo, o filósofo Alexandre Leone, que escreveu o prefácio do livro, estará no lançamento desta tradução para o português de Heschel, um dos maiores filósofos do Judaísmo no século XX. Quem estiver em São Paulo e tiver a noite do dia 28 livre, poderá no Centro da Cultura Judaica conhecer ou reencontrar esse autor e seu engajamento na vida.
domingo, 24 de outubro de 2010
Daniel Murray e o violão de Tom Jobim
Não me lembro mais como descobri o primeiro disco do grande violonista brasileiro Daniel Murray (ao lado, em foto de Fabio Weintraub), ...universos sonoros para violão e tape... (http://www.universossonoros.kit.net/). Talvez tenha sido indicação de Silvio Ferraz, que é um dos compositores nele incluídos. Encomendei-o e fiquei muito impressionado com o repertório e a interpretação - um violonista qualquer não teria nem mesmo a ideia de escolher ou de encomendar aqueles obras, muito menos a técnica para tocá-las.
Esse disco revela o imenso erro de as discussões sobre arte no Brasil passarem ao largo da música erudita contemporânea, que se mantém vital.
Lembro de uma reportagem do início da década em que certo compositor reclamava de que, no passado, a elite brasileira ao menos convidava os compositores eruditos para as festas - hoje, nem isso! Mas uma arte que resolva viver para os canapés não tem mesmo como ir além do nível nutricional de arroz de festa.
Evidentemente, não é o caso das composições escolhidas por Daniel Murray, incluindo a do grego Panayiotis Kokoras e a do francês Mikhail Malt.
Soube - o violonista revelou-o em um concerto - que estava a gravar Tom Jobim. Quando o editor da Capitu me convidou para escrever na revista, tive a ideia de começar com esse disco (que ainda não foi lançado, mas a ideia é antecipar essas coisas, falar do que está sendo concebido e gerado). Procurei-o e ele gentilmente concordou em falar comigo. Descobri que o disco já está gravado, é, de fato, ótimo e está para sair.
O texto, com declarações de Murray, pode ser lido nesta ligação:
http://www.revistacapitu.com/capitu/materia.asp?codigo=268
O editor não incluiu um parágrafo, que anunciava um espetáculo que ocorreu no dia anterior à matéria entrar no ar. Incluo-o aqui:
Finalmente, este ano tive vontade de juntar em um único experimento a Música Eletroacústica e Música Instrumental Brasileira. Faremos uma apresentação no Centro Cultural São Paulo dia 23 [outubro de 2010] às 20 horas unindo o trabalho instrumental que tenho junto ao violonista e compositor Chico Saraiva, o Duo Saraiva-Murray com a música eletroacústica do Trio Universos, com a flautista Giuliana Audra e o compositor e violonista Sérgio Kafejian. Também faço parte do Quarteto TAU de violões junto a Fabio Bartoloni, Breno Chaves e José Henrique de Campos e estamos incluindo em nosso repertório estreias de obras eruditas contemporâneas junto a alguns arranjos que fiz de música popular brasileira.
Eu vi o concerto a que ele se refere. Murray também tocou, sozinho, duas canções do disco novo, em arranjos dele mesmo, "Eu te amo" (que ficou prodigiosa) e "Valsa sentimental". No fim, ouviu-se algo como uma jam session eletroacústica. Somente músicos muito talentosos poderiam ter logrado essa mistura (para quem não conhece, a música de Chico Saraiva tem uma linguagem bem brasileira).
Alberto Pimenta: tortura e metafísica
Esta entrevista deveria ter saído numa revista que encerrou atividades. Foi dada em janeiro de 2009, por carta.
Tortura e Metafísica: Entrevista com Alberto Pimenta
Alberto Pimenta nasceu na cidade de Porto em 1937. Foi Leitor de Português em Heidelberg de 1960 a 1977 e aposentou-se em 2007 como professor de Linguística na Universidade Nova de Lisboa. Sua ética insurrecional durante o salazarismo levou-o ao exílio na Alemanha de 1963 a 1977.
Sua obra múltipla, que abarca o ensaio, a poesia, o teatro, a ópera, happenings, atuações no rádio e na tevê, guarda esse perfil de insurreição e se aventura por temas geralmente pouco explorados na lírica portuguesa, como a ONU, as guerrilhas, o panóptico, o Nordeste brasileiro... A preocupação com a inovação formal nunca está ausente, e o levou à poesia visual (entre outros livros, pode-se lê-la em Verdichtungen, Viena: Splitter, 1997) e a seu grande estudo O silêncio dos poetas (última edição: Lisboa: Cotovia, 2003), publicado originalmente na Itália, em que analisou, entre outros movimentos, o concretismo brasileiro.
No Brasil, teve publicados o Discurso sobre o filho-da-puta (Rio de Janeiro: Codecri, 1982 e Rio de Janeiro: Achiamé, 2003) e a antologia A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek, 2004). Esta entrevista foi concedida a Pádua Fernandes, organizador dessa antologia.
Vários poemas seus falam dos horrores da guerra e do fascismo. Como tomou consciência desses problemas em Portugal durante o salazarismo?
Horrores sim, tomei conta dos horrores da guerra (neste caso, colonial, mas tanto faz), provavelmente de modo mais directo e intenso que os portugueses que nela não participaram. Em Heidelberg havia um hospital especializado em tratar lesões de guerra (próteses etc): lá conheci vários soldados portugueses cegos e sem braços, a quem uma granada tinha rebentado as mãos. Nem sequer tinham sido atacados: estavam a aprender a atacar.
Fascismo foi sempre para mim um termo demasiadamente técnico, que envolvia muitos fenômenos de modalidades distintas no que toca ao homem, inclusive nas várias culturas: Suécia, Uganda etc. Fascismo há um: o italiano (questão linguística e de estilo). Na Alemanha houve outro, tal como em Espanha, ou na França, ou em Portugal etc. O fenômeno comunista foi também diferente nos vários países do ex-Leste. A Alemanha Oriental recebia os imigrantes do Leste, como a Ocidental os do Ocidente, e era entre eles a mais rica.
Creio que o fascismo habita a maioria dos homens, sob formas próprias de época e de cultura e de função social. Conheço muito poucos homens que não sejam fascistas, isto é, que não se entreguem eles ao poder dum grupo para esmagar o poder doutro grupo.
Um dos poemas em que aborda a guerra colonial, prestidigitação, trata justamente disso: “nas caras/ vêem-se dois olhos ou não./ um nariz ou não. uma boca ou/ não./ duas orelhas ou uma só./ entre as camas circula o / enfermeiro. de resto nesta/ secção as visitas são proi/ bidas.” Ele é de 1973, escrito, pois, durante o seu exílio na Alemanha, que se estendeu de 1963 a 1977. Em 1960, já estava na Universidade Heidelberg, como Leitor de Português. Como se deu a sua escolha universitária pela Germanística?
A escolha da Germanística (que acabou por me levar ao exílio) aconteceu por exclusão.
Descartando as Ciências ditas Exactas (uma mentira que se vai actualizando, e usando o seu fascismo próprio para criar centrais, empresas e vender tecnologia empacotada), descartando também essa outra ciência exactíssima chamada Direito (que amarga ironia para o torto, como, p. ex., a banana), descartando as Ciências Românicas (que são como chuva no molhado ou, mais bonito e com Shakespeare, são como adoçar mel com açúcar), rejeitando a mentira mais ou menos mitológica e feminina da História, e a putéfia da sua madrasta Filosofia (a de 18 tetas como a porca), abdicando do esforço ingente de tentar compreender o incompreensível do passado clássico, sobrava a Germanística, com os seus delírios.
Como aprender alemão e os ditos delírios leva mais de uma dúzia de anos, e como já sabia português o suficiente para dizer apropriadamente “Que Merda!”, só me restou o exílio! Aprendi que até ser homem é uma coisa relativa. Não me ajudou muito a viver, talvez a sobreviver, que para nós, homens, ao contrário nas minhocas, tem de ser aprendido.
O que esperava dos happenings Homo Sapiens (1977), em que ficou trancado numa jaula ao lado dos macacos no Zoológico de Lisboa, e Homem Vende-se (1991), em que ficou amarrado dentro de um saco, com placa “Homem vende-se. Trata: Divisão de Recursos Humanos do Estado”, em frente à Igreja dos Mártires em Lisboa? As reações do público, que foram gravadas, nos dois casos oscilavam entre racismo (“Ai o preto, coitado, isto é um preto.”), a ignorância (“É o homo sapiens, é o homem da selva.”), o preconceito de classe (“O aspecto dele é que me confunde. Se tivesse ar andrajoso, ainda estava bem.”) e a indignação (“A mim dá-me vontade de chorar, país miserável.”).
O que eu esperava da operação Homo Sapiens foi realmente o que sucedeu, só que eu esperava-o mais geral, menos particularizante ao caso daquele homem. Afinal, apesar de ver a pele do outro a arder, tudo como na literatura da palavra: muito interessante, mas ainda bem que não é comigo. O caso daquele homem bizarro, ou o caso bizarro daquele homem é o caso daquele homem. Mais tarde, na réplica Homem Vende-se, a hipótese foi actualizada: é cinema ou publicidade, que é mais ou menos o mesmo. O importante foi sempre distanciar-se: o Outro é Outro. Mais longe um bocadinho: o homem não é um animal, ou eu pelo menos não sou.
A intenção geral da performance e do happening, despertar para o oculto sob as aparências, já passou de todo. O contrário é que conta: as aparências. Mas não foi sempre assim? Do que é que nos queixamos afinal?
Em Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc, 2005), pode-se ver que a adaptação da sua voz à lírica árabe como uma atitude política (“Contra quem é isto feito?/ A batalha entrou na minha casa/ E nos meus olhos.”), de por-se ao lado do povo invadido?
Na Marthiya de Abdel Hamid não creio que tenha adaptado a lírica árabe... como? Usei apenas o seu tom repassado da presença amável e insubstituível da natureza. A verdade é que julgo que apenas assim me tornaria credível, que tornaria credível o que eu dissesse (de dentro para fora) e nunca panfletário e declamatório em diatribe, à maneira ocidental (de fora para dentro). Não se vê como no caso da Gisberta eu me tentei meter dentro dela, apesar do uso do “tu”? Foi a amabilidade da escrita de Abdel que mais me incomodou, como incomodou o prazer interior da Gisberta. É sempre fácil voltar a diatribe contra o autor, deixando o tema entre dois fogos. Aristóteles ensinou. Tudo, de resto.
Esse é o assunto de Indulgência plenária (Lisboa: &etc, 2007), livro sobre o assassinato da transexual brasileira Gisberta Salce Júnior na cidade de Porto, morta por afogamento em um poço depois de três dias de tortura em fevereiro de 2006, por um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José). O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada. A vítima era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Nesta alusão a Shakespeare, vemos “Vida e morte de mãos dadas/ morte/ ignominiosa como esta vida/ ignominiosas/ como tranças molhadas a boiar/ ambas”). Pergunto como o crime e o “perdão” judicial dado aos assassinos suscitaram sua indignação em poesia.
Creio que todos continuam convictos de que o homem é um animal metafísico, muito especialmente os que torturaram e assassinaram Gisberta, que estudavam numa oficina católica. Seria a voluntária mudança de sexo que os levou a ver nisso uma provocação inaceitável contra a pré-destinação divina? Xenofobias de todo o tipo, diferenças insuportáveis. De qualquer modo, isto sucedeu sem p. ex. a adrenalina e o medo da morte que há na guerra. É uma monstruosidade tal que nem Homero e Shakespeare juntos lá chegariam. Eu fiquei na parte mais baixa dos calcanhares, e senti-me também pisado, condição para a capacidade da escrita, que para mim se tornou uma missão.
Como concebe a ética do artista? Ela é diferente da do indivíduo?
Creio que a ética do artista só poderá ser no mais alto grau possível a ética do indivíduo-artista. Vale para Céline e para Picasso. O resultado da qualidade estética pode ser independente da ética, mas não o é do lugar que desempenha na história da escrita humana. Dificilmente se poderá aceitar uma escrita pública que não incite cada um a procurar o espaço de liberdade que lhe cabe sem qualquer espécie de impedimento.
Como vê atualmente a literatura brasileira?
A riqueza do Brasil em literatura, que vai do oral à escrita mais requintada em jogo paranomásico, creio que tem estado muito confinada em si mesma, naquele fenômeno de grupo tão europeu que se autodegladia, sem se elevar como no grande momento da Semana de Arte Moderna.
Para terminar, lembro de seu Discurso sobre o filho-da-puta (Lisboa: Teorema, 1977 e 2000); como bem escreveu, ele está em todos os lugares: no trabalho, na família, na escola: “o filho-da-puta conduz sutilmente à greve de fome aqueles que outrora executava publicamente; o filho-da-puta em tempos chamava escravos aos que hoje chama emigrantes.” E nos meios de comunicação?
O “filho-da-puta” (termo próprio para o homem social) é aquele que não deixa fazer, ou então aquele que faz (leis, guerra etc.). Como o não deixar começa na própria estrutura da língua e no seu ensino, a performance era um modo de se opor a isso. Mas a performance está a perder o lugar, em detrimento da televisão e da publicidade, que são reforços do ensino atrás definido. Publivisão e telecidade? O ciclo fecha-se, o homem volta a atirar dardos ao inimigo simbólico desenhado na areia.
Tortura e Metafísica: Entrevista com Alberto Pimenta
Alberto Pimenta nasceu na cidade de Porto em 1937. Foi Leitor de Português em Heidelberg de 1960 a 1977 e aposentou-se em 2007 como professor de Linguística na Universidade Nova de Lisboa. Sua ética insurrecional durante o salazarismo levou-o ao exílio na Alemanha de 1963 a 1977.
Sua obra múltipla, que abarca o ensaio, a poesia, o teatro, a ópera, happenings, atuações no rádio e na tevê, guarda esse perfil de insurreição e se aventura por temas geralmente pouco explorados na lírica portuguesa, como a ONU, as guerrilhas, o panóptico, o Nordeste brasileiro... A preocupação com a inovação formal nunca está ausente, e o levou à poesia visual (entre outros livros, pode-se lê-la em Verdichtungen, Viena: Splitter, 1997) e a seu grande estudo O silêncio dos poetas (última edição: Lisboa: Cotovia, 2003), publicado originalmente na Itália, em que analisou, entre outros movimentos, o concretismo brasileiro.
No Brasil, teve publicados o Discurso sobre o filho-da-puta (Rio de Janeiro: Codecri, 1982 e Rio de Janeiro: Achiamé, 2003) e a antologia A encomenda do silêncio (São Paulo: Odradek, 2004). Esta entrevista foi concedida a Pádua Fernandes, organizador dessa antologia.
Vários poemas seus falam dos horrores da guerra e do fascismo. Como tomou consciência desses problemas em Portugal durante o salazarismo?
Horrores sim, tomei conta dos horrores da guerra (neste caso, colonial, mas tanto faz), provavelmente de modo mais directo e intenso que os portugueses que nela não participaram. Em Heidelberg havia um hospital especializado em tratar lesões de guerra (próteses etc): lá conheci vários soldados portugueses cegos e sem braços, a quem uma granada tinha rebentado as mãos. Nem sequer tinham sido atacados: estavam a aprender a atacar.
Fascismo foi sempre para mim um termo demasiadamente técnico, que envolvia muitos fenômenos de modalidades distintas no que toca ao homem, inclusive nas várias culturas: Suécia, Uganda etc. Fascismo há um: o italiano (questão linguística e de estilo). Na Alemanha houve outro, tal como em Espanha, ou na França, ou em Portugal etc. O fenômeno comunista foi também diferente nos vários países do ex-Leste. A Alemanha Oriental recebia os imigrantes do Leste, como a Ocidental os do Ocidente, e era entre eles a mais rica.
Creio que o fascismo habita a maioria dos homens, sob formas próprias de época e de cultura e de função social. Conheço muito poucos homens que não sejam fascistas, isto é, que não se entreguem eles ao poder dum grupo para esmagar o poder doutro grupo.
Um dos poemas em que aborda a guerra colonial, prestidigitação, trata justamente disso: “nas caras/ vêem-se dois olhos ou não./ um nariz ou não. uma boca ou/ não./ duas orelhas ou uma só./ entre as camas circula o / enfermeiro. de resto nesta/ secção as visitas são proi/ bidas.” Ele é de 1973, escrito, pois, durante o seu exílio na Alemanha, que se estendeu de 1963 a 1977. Em 1960, já estava na Universidade Heidelberg, como Leitor de Português. Como se deu a sua escolha universitária pela Germanística?
A escolha da Germanística (que acabou por me levar ao exílio) aconteceu por exclusão.
Descartando as Ciências ditas Exactas (uma mentira que se vai actualizando, e usando o seu fascismo próprio para criar centrais, empresas e vender tecnologia empacotada), descartando também essa outra ciência exactíssima chamada Direito (que amarga ironia para o torto, como, p. ex., a banana), descartando as Ciências Românicas (que são como chuva no molhado ou, mais bonito e com Shakespeare, são como adoçar mel com açúcar), rejeitando a mentira mais ou menos mitológica e feminina da História, e a putéfia da sua madrasta Filosofia (a de 18 tetas como a porca), abdicando do esforço ingente de tentar compreender o incompreensível do passado clássico, sobrava a Germanística, com os seus delírios.
Como aprender alemão e os ditos delírios leva mais de uma dúzia de anos, e como já sabia português o suficiente para dizer apropriadamente “Que Merda!”, só me restou o exílio! Aprendi que até ser homem é uma coisa relativa. Não me ajudou muito a viver, talvez a sobreviver, que para nós, homens, ao contrário nas minhocas, tem de ser aprendido.
O que esperava dos happenings Homo Sapiens (1977), em que ficou trancado numa jaula ao lado dos macacos no Zoológico de Lisboa, e Homem Vende-se (1991), em que ficou amarrado dentro de um saco, com placa “Homem vende-se. Trata: Divisão de Recursos Humanos do Estado”, em frente à Igreja dos Mártires em Lisboa? As reações do público, que foram gravadas, nos dois casos oscilavam entre racismo (“Ai o preto, coitado, isto é um preto.”), a ignorância (“É o homo sapiens, é o homem da selva.”), o preconceito de classe (“O aspecto dele é que me confunde. Se tivesse ar andrajoso, ainda estava bem.”) e a indignação (“A mim dá-me vontade de chorar, país miserável.”).
O que eu esperava da operação Homo Sapiens foi realmente o que sucedeu, só que eu esperava-o mais geral, menos particularizante ao caso daquele homem. Afinal, apesar de ver a pele do outro a arder, tudo como na literatura da palavra: muito interessante, mas ainda bem que não é comigo. O caso daquele homem bizarro, ou o caso bizarro daquele homem é o caso daquele homem. Mais tarde, na réplica Homem Vende-se, a hipótese foi actualizada: é cinema ou publicidade, que é mais ou menos o mesmo. O importante foi sempre distanciar-se: o Outro é Outro. Mais longe um bocadinho: o homem não é um animal, ou eu pelo menos não sou.
A intenção geral da performance e do happening, despertar para o oculto sob as aparências, já passou de todo. O contrário é que conta: as aparências. Mas não foi sempre assim? Do que é que nos queixamos afinal?
Em Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta (Lisboa: &etc, 2005), pode-se ver que a adaptação da sua voz à lírica árabe como uma atitude política (“Contra quem é isto feito?/ A batalha entrou na minha casa/ E nos meus olhos.”), de por-se ao lado do povo invadido?
Na Marthiya de Abdel Hamid não creio que tenha adaptado a lírica árabe... como? Usei apenas o seu tom repassado da presença amável e insubstituível da natureza. A verdade é que julgo que apenas assim me tornaria credível, que tornaria credível o que eu dissesse (de dentro para fora) e nunca panfletário e declamatório em diatribe, à maneira ocidental (de fora para dentro). Não se vê como no caso da Gisberta eu me tentei meter dentro dela, apesar do uso do “tu”? Foi a amabilidade da escrita de Abdel que mais me incomodou, como incomodou o prazer interior da Gisberta. É sempre fácil voltar a diatribe contra o autor, deixando o tema entre dois fogos. Aristóteles ensinou. Tudo, de resto.
Esse é o assunto de Indulgência plenária (Lisboa: &etc, 2007), livro sobre o assassinato da transexual brasileira Gisberta Salce Júnior na cidade de Porto, morta por afogamento em um poço depois de três dias de tortura em fevereiro de 2006, por um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José). O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada. A vítima era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Nesta alusão a Shakespeare, vemos “Vida e morte de mãos dadas/ morte/ ignominiosa como esta vida/ ignominiosas/ como tranças molhadas a boiar/ ambas”). Pergunto como o crime e o “perdão” judicial dado aos assassinos suscitaram sua indignação em poesia.
Creio que todos continuam convictos de que o homem é um animal metafísico, muito especialmente os que torturaram e assassinaram Gisberta, que estudavam numa oficina católica. Seria a voluntária mudança de sexo que os levou a ver nisso uma provocação inaceitável contra a pré-destinação divina? Xenofobias de todo o tipo, diferenças insuportáveis. De qualquer modo, isto sucedeu sem p. ex. a adrenalina e o medo da morte que há na guerra. É uma monstruosidade tal que nem Homero e Shakespeare juntos lá chegariam. Eu fiquei na parte mais baixa dos calcanhares, e senti-me também pisado, condição para a capacidade da escrita, que para mim se tornou uma missão.
Como concebe a ética do artista? Ela é diferente da do indivíduo?
Creio que a ética do artista só poderá ser no mais alto grau possível a ética do indivíduo-artista. Vale para Céline e para Picasso. O resultado da qualidade estética pode ser independente da ética, mas não o é do lugar que desempenha na história da escrita humana. Dificilmente se poderá aceitar uma escrita pública que não incite cada um a procurar o espaço de liberdade que lhe cabe sem qualquer espécie de impedimento.
Como vê atualmente a literatura brasileira?
A riqueza do Brasil em literatura, que vai do oral à escrita mais requintada em jogo paranomásico, creio que tem estado muito confinada em si mesma, naquele fenômeno de grupo tão europeu que se autodegladia, sem se elevar como no grande momento da Semana de Arte Moderna.
Para terminar, lembro de seu Discurso sobre o filho-da-puta (Lisboa: Teorema, 1977 e 2000); como bem escreveu, ele está em todos os lugares: no trabalho, na família, na escola: “o filho-da-puta conduz sutilmente à greve de fome aqueles que outrora executava publicamente; o filho-da-puta em tempos chamava escravos aos que hoje chama emigrantes.” E nos meios de comunicação?
O “filho-da-puta” (termo próprio para o homem social) é aquele que não deixa fazer, ou então aquele que faz (leis, guerra etc.). Como o não deixar começa na própria estrutura da língua e no seu ensino, a performance era um modo de se opor a isso. Mas a performance está a perder o lugar, em detrimento da televisão e da publicidade, que são reforços do ensino atrás definido. Publivisão e telecidade? O ciclo fecha-se, o homem volta a atirar dardos ao inimigo simbólico desenhado na areia.
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
Um voo negro: Nuno Ramos e a vida
A incorporação da vida nas artes plásticas normalmente dá-se sob a égide da representação com os materiais e suportes que se tornaram usuais: mármore, tinta, bronze, tela... Veja-se, ao lado, uma versão do famoso quadro Agnus Dei de Francisco de Zurbarán (1598-1664). O cordeiro que será sacrificado é também o corpo que se oferece ao pintor, e o corpo assim criado almeja a vida eterna.
Outra coisa é sair desse regime e buscar incorporar a vida na obra de arte, com o uso de seres vivos e materiais biológicos. Embora se esteja mais próximo da presentificação, não se sai completamente da representação: o corpo nu do artista, exposto, ainda será o corpo nu e mais outra coisa.
Em um texto de alguns anos atrás, escrevi sobre a morte da matéria na obra literária de Nuno Ramos: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/09/ele-calaa.html:
Nuno Ramos, em análise da obra de Hélio Oiticica, outro grande artista plástico brasileiro, comentou: “Não se deve estranhar, portanto, se numa descrição genérica o trabalho de H.O. puder ser tomado como a entrada progressiva do corpo na obra” [3]. A hipótese deste trabalho é justamente a oposta: a poesia de Nuno Ramos realiza a retirada progressiva do corpo e suas paixões para deixar apenas a matéria inorgânica, inanimada. E, nisso, ele faz o oposto de sua obra plástica, em que o inorgânico pretende ao animado; como conseqüência, poeta e artista plástico, em Nuno Ramos, estão num jogo especular no qual, com as mesmas imagens, as duas artes realizam movimentos opostos e configuram uma teoria estética própria.
Não logrei ver, de Nuno Ramos, a obra Bandeira branca, na Bienal de São Paulo de 2010, pois ela foi alvo de protestos e de proibição judicial, contendo dois urubus de cativeiro. Houve oposição de militantes ecologistas, contrários a cativeiros em geral, e também de ecofascistas. Em ataque à obra, um destes rasgou-lhe a tela e pichou "Liberte os urubu", o que demonstra como um artista tão articulado pode gerar ódios dos seus dissemelhantes.
Aqui, há um pequeno vídeo anterior à volta dos urubus a seu lar: http://interartive.org/index.php/2010/10/nuno-ramos-bienale-sao-paolo/
Nesse mesmo lugar, Nuno Ramos conta algumas das inverdades que lhe foram imputadas durante a campanha para a destruição de sua obra.
Bandeira branca já havia sido exposta em 2008 em Brasília sem causar tumultos, o que talvez seja um sinal do destacado patamar de São Paulo na caretice nacional. É curioso lembrar que Nuno Ramos, que conseguiu licença do IBAMA para expor as aves e manteve-as sob cuidado diário de veterinário (e, assim, com um acesso a serviços de saúde totalmente superior à de quase toda população brasileira) preocupou-se muito mais com o bem estar das aves e não os tratou como se eles fossem tinta e tela, matérias inanimadas para a arte, porém boa parte desses militantes empregou-os dessa forma, instrumentalizando-os como simples material de propaganda.
(A propósito, o uso instrumental de animais verifica-se até mesmo em culturas não ocidentais; em nome de um suposto biocentrismo, por exemplo, dever-se-ia proibir que índios caçassem? A visão ingênua dos ecofascistas - que distingo dos militantes da ecologia - parece-me trair um profundo etnocentrismo.)
Não é novo o uso de animais em obras de arte, e o que Nuno Ramos fez não tem a radicalidade de obras de Beuys (inclusive seus projetos ecológicos). Mas temos aqui um uso interessante de animal que faz uma ponte entre os vivos e os mortos, entre o orgânico e o inorgânico, o que é um dos problemas permanentes da obra de Nuno Ramos, tanto plástica quanto literária.
O uso de três canções na instalação (a música é frequente nas obras do autor, que também escreve sobre o assunto - ver Ensaio geral - e cria nesse campo, visto que é um compositor de música popular, com uma interessante parceria com Romulo Fróes), Bandeira branca (claro), Boi da cara preta e Carcará parece-me autorizar a comparação dos urubus de Nuno com os de Tom Jobim.
Em 1975, Tom Jobim lançou um de seus grandes discos, Urubu, um texto brilhante na contracapa, que começa destacando a majestade do urubu: "Jereba é urubu importante como, aliás, todo urubu. [...]/ Na verdade não és culpado de nossa devastação [...] ministro de duas corcovas, só tu sentas à mesa com o rei."
Tom Jobim (o ávido leitor de poesia, e autor de letras muitas vezes melhores do que as do poeta Vinicius de Morais), em um movimento intertextual com o albatroz de Baudelaire, fala da dificuldade do urubu em mover-se no chão e o chama de "Eterno vigia de um tempo imperecível." O que ele guarda? "A vida era por um momento. Não era dada. Era emprestada./ Tudo é testamento."
Mesmo na obra luminosa de Tom Jobim, que apresenta uma imagem de Brasil oposta à visão sombria que Nuno geralmente expõe, o urubu faz-nos lembrar que a vida está sempre em xeque. Essa noção deve perturbar visões idílicas do meio ambiente e do Brasil.
Lembro agora de outro grande artista brasileiro, Hélio Oiticica, de sensibilidade muito diferente da de Nuno Ramos (que, no texto sobre Bandeira branca, não deixa de relembrar que faz antipenetráveis, ao contrário das obras participativas de Oiticica). Parece-me que Nuno está em diálogo com Tropicália, obra que Oiticica considerou, na época, a mais antropofágica da arte brasileira:
O penetrável principal que compõe o projeto ambiental foi a minha máxima experiência com as imagens, uma espécie de campo experimental com as imagens. Para isto criei como que um cenário tropical, com plantas, araras, areia, pedrinhas [...] Ao entrar no penetrável principal, após passar por diversas experiências táteis-sensoriais, abertas ao participador que cria aí o seu sentido imagético através delas, chega-se ao final do labirinto, escuro, onde um receptor de tv está em permanente funcionamento: é a imagem que devora então o participador [...] (trecho de "Tropicália", depoimento de 4 de março de 1968, que pode ser lido em COHN, Sergio; COELHO, Frederico (org.). Tropicália. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 99 e 101)
As coloridas araras de Hélio! Bandeira branca teria sido o enterro (já póstumo) dessa tentativa de reconstruir o Brasil, oficiado por urubus? Não pude ver para conferir. Mas o sentido do urubu no texto "Pantomima" de O mau vidraceiro (último livro de Nuno Ramos) parece zombar da antropofagia.
A vida também é problematizada nas obras de Nuno Ramos que estão no momento expostas no MAM do Rio, que também está a abrigar uma série de trabalhos, de vários períodos, de Waltércio Caldas. É possível que essas obras não sejam proibidas, mas, de qualquer forma, convém se apressar para vê-las no MAM do Rio de Janeiro.
Strange fruit alude à célebre canção, imortalizada por Billie Holiday, que canta os corpos dos negros torturados e assassinados, pendurados em árvores no sul dos Estados Unidos.
Na obra homônima de Nuno Ramos, substituiu-se a "guerra racial", que é uma das configurações da biopolítica para Foucault, pelo acidente, novo estatuto da vida humana: são aviões que parecem ter caído sobre árvores. Esses aviões são corpos, dele pendem sucedâneos de soro fisiológico. A marca da canção aparece nos instrumentos musicais deitados.
Em Verme, obra que reforça a ligação de Nuno Ramos com Augusto dos Anjos, temos duas gigantescas esferas marrons (como a anterior, a estrutura é de um duplo) com duas projeções: no início, dois atores leem, separados e suspensos em sala imensa, um texto sobre o verme.
A leitura alterna, musicalmente, as formas de cânone e de antífona. A projeção, em seguida, muda para um casal que, das preliminares, passa para o ato sexual enquanto interage com músicos que tocam ao redor.
Minha preferida, porém, foi Cachorro morto. Na foto, vemos que a instalação se compõe dessa curiosa lápide dupla e um vídeo, que mostra um corpo de um cão atropelado à margem de uma estrada. Nuno Ramos chega de carro, deixa um gravador ao lado do corpo e vai embora. Vê-se então o corpo e ouve-se um texto na voz de Nuno Ramos. Temos aqui a tentativa de o corpo morto do cachorro ser o corpo da voz dele, e uma espécie de compaixão na morte do animal, que é também um sinal do lugar do artista.
Uma lápide dupla: nas faces internas, vê-se, com dificuldade, que está inscrito o texto lido por Nuno.
Esse caráter quase religioso da relação que a obra de Nuno Ramos mantém com os animais (também na literatura, e O mau vidraceiro confirma-o) torna estranho que logo ele tenha sido o alvo da ira dos ecologistas. Repito que, além dos militantes da ecologia, que desejam acabar com os cativeiros e zoológicos, também houve os que foram movidos por um certo ecofascismo, que ecoa não o caráter quase sagrado com Nuno Ramos trata a vida animal em suas obras, e sim uma intolerância religiosa, que tem grassado neste período eleitoral, mesmo em setores que reivindicam representar uma soi-disant social-democracia.
Caráter quase sagrado? Pois fazer o corpo ingressar na obra significa falar da morte, este outro nome da vida eterna, em um nível mais premente do que na representação do Cordeiro de Deus. E talvez seja isso que tenha chocado, mesmo inconscientemente, aqueles que rejeitaram Bandeira branca, supondo agir em nome da vida.
quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Tradução: Democracia de Rimbaud
Certa vez, em um editorial (http://www4.uninove.br/ojs/index.php/prisma/article/viewFile/2126/1630), resolvi fazer de linha central do meu texto algo melhor do que eu poderia ter escrito: Rimbaud.
Fiz minha própria tradução de "Democracia" (Démocratie), que é um poema em prosa de Les illuminations. Provavelmente ele espelha o massacre da Comuna de Paris, motivo de uma das fugas de casa de Rimbaud.
Na sua visão sarcástica do progresso e do imperialismo, temos aqui um anti-Comte.
Fiz minha própria tradução de "Democracia" (Démocratie), que é um poema em prosa de Les illuminations. Provavelmente ele espelha o massacre da Comuna de Paris, motivo de uma das fugas de casa de Rimbaud.
Na sua visão sarcástica do progresso e do imperialismo, temos aqui um anti-Comte.
"A bandeira segue na paisagem imunda, e nosso patoá abafa o tambor.
"Nos centros alimentaremos a mais cínica prostituição. Masacraremos as revoltas lógicas.
"Aos países lúbricos e sem fibra!" - a serviço das mais monstruosas explorações industriais ou militares.
"Adeus ao aqui, não importa onde. Recrutas de boa vontade, teremos a filosofia feroz; ignorantes para a ciência, astutos para o conforto; arrebente-se o mundo que vai. Esta é a verdadeira marcha; avante, a caminho!"
domingo, 10 de outubro de 2010
Poesia e política: entrevista com Sérgio Alcides
Penso que continuam oportunas as considerações sobre poesia e política feitas nesta entrevista, Pele e civilidade, por Sérgio Alcides, o poeta, tradutor e crítico, hoje professor da UFMG.
Nos idos de 2005, ano da publicação desta conversa na revista Jandira, ele era autor principalmente de Nada a ver com a lua (7Letras, 1996), O ar das cidades – Poemas, 1996-2000 (Nankin, 2000) e Estes penhascos: Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (Hucitec, 2003), e tradutor, com o poeta, editor e historiador Ronald Polito, de Julio Torri (Almanaque das Horas, São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2000) e Joan Brossa (Poemas civis, Rio de Janeiro: 7Letras, 1998).
Não me lembro quem teve a ideia de me pedir a entrevista. Creio que foi o editor, Ricardo Rizzo. Como a revista Jandira não está mais disponível, republico-a aqui.
PELE E CIVILIDADE
Entrevista com Sérgio Alcides por Pádua Fernandes, publicada na revista Jandira (Juiz de Fora, n. 2, out. 2005, p. 10-15)
Pádua Fernandes:
Sérgio, de "Nada a ver com a lua", gosto do poema para o Profeta Gentileza, que fala do tempo incivil. Onde está esse tempo?
Sérgio Alcides:
Há muitos tempos aí, meu querido Pádua. O tempo da incivilidade sempre existiu e sempre existirá, eu acho. Mas o nosso tempo exagera... O Gentileza é também para mim um tempo suspenso, o da memória. Porque eu o via sempre, quando criança, pichando com giz seu livro de ensinamentos nas pilastras dos viadutos do Rio. É uma recordação associada às férias, porque a família viajava de carro e, no caminho, víamos o Gentileza com sua túnica, sua barba branca, sua placa ambulante. Ele era um pouco homem-placa. O poeta é também homem-placa.
E a minha poesia, quando está mais solar do que soturna, também tem aquela pretensão do Gentileza, de espalhar uma boa ideia sobre o encontro, as pessoas, a civilidade.
Pádua Fernandes:
Perguntei do poema do Profeta porque "O ar das cidades" também reflete experiências de tempo incivil, não? Esse tempo incivil também não é marcado pela abstinência da esfera pública, que é um dos alvos da sátira de "Valsa de uma cidade"?
Sérgio Alcides:
Bem, acho que você foi direto ao ponto que mais importa para mim. Não suporto a ideia de que a poesia seja um gabinete privado de afetos ou experimentos, sem maior consequência, nem para a linguagem, nem para a sociedade. Não sou do partido dos bibelôs de inanição sonora de que falava Mallarmé. Ao bibelô, prefiro o libelo. E a inanição (como sugere o trocadilho) parece onanição, mas sem proveito. Acho que a poesia é uma ação dirigida aos semelhantes. Não me refiro aos outros poetas. Como você sabe, uma coisa que me preocupa muito é que a poesia se torne um assunto de poetas. Refiro-me aos meus semelhantes num sentido bem menos paroquial...
Então "O ar das cidades" tem, sim, esse aspecto que você nota em "Nada a ver com a Lua". Para mim, até pela minha história pessoal (ou "estória"?), pelo fato de ter nascido numa cidade grande do Terceiro Mundo, e seguir vivendo em outra, ainda maior, a vida nas cidades é um dos principais valores. "O ar das cidades liberta", já diziam os medievais, e tem que libertar. Isso é uma imposição do nosso destino. Se ele nos sufoca, temos que fazer por onde o sufoco se tornar libertação. E isso só pode ser feito numa esfera pública. E não há um bem mais público do que a linguagem. Daí a oportunidade, a responsabilidade, a eficácia da poesia.
Pádua Fernandes:
Ao mesmo tempo, "O ar das cidades" começa num espaço íntimo. Qual é a relação do armário com as ruas?
Sérgio Alcides:
Não sei explicar tudo... Não acredito num planejamento rígido da poesia. Mas posso arriscar aqui alguma ideia.
Penso em duas figuras muito parecidas e contemporâneas: Álvaro de Campos e Walter Benjamin. O primeiro com certeza existiu, não acha? Já o segundo talvez seja um heterônimo (ou pelo menos um personagem, um complemento) de Thomas Mann. No Álvaro de Campos, urbanidade e intimidade estão ligadas da maneira mais visceral. Até de um modo muito ressentido, amargo. No Benjamin se dá uma coisa muito semelhante. Uma parte da sua crítica do mundo burguês está no livro sobre a "Infância em Berlim", onde, como em outros livros dele, o “apartamento” é uma condição necessária da cidade, e sequer existe em Benjamin uma percepção da cidade independente da invenção subjetiva de um observador, que a ela pertence tanto quanto lhe é, contraditoriamente, alheio. Em ambos, Álvaro e Benjamin, a "liga" entre a urbe e o espaço interior é o presente da memória. E o funcionamento da memória individual é o tema que alinhava toda a “suíte” de poemas na abertura de “O ar das cidades”. É necessário invadir o passado, tomar posse do que nos pertence mais profundamente – e para mim nenhuma definição de “cidade” pode deixar de lado uma coisa fundamental: que uma cidade é um lugar impregnado de memórias, as mais diferentes, em harmonia e em conflito.
Pádua Fernandes:
Desconfio que o Drummond de seu ensaio “Melancolia ‘gauche’ na vida” publicado pela Unimarco em “Drummond Revisitado”, com organização de Reynaldo Damazio, seja também um heterônimo seu, pela forma como você alia a melancolia com a ironia. Se Drummond não é heterônimo seu, pode-se dizer que você também é um dos nomes dessa linhagem? Isto é, a linhagem da ironia? Pois uma das críticas que você faz a Raul de Leoni é justamente a da ironia anunciada e apaziguada presente na poesia desse ilustre membro da elite fluminense. Que, exemplo perfeito de poeta, segundo os modelos esperados, não teria aberto a boca na sua passagem pela Assembléia Legislativa (mas isso teria mudado tanto assim?).
Sérgio Alcides:
É, o Raul de Leoni era um poeta interessante... Mas equivocado. E, de fato, como casual político, não se comportou de maneira diferente do que se espera de qualquer mauricinho da elite fluminense desde sempre. Mas isso é um detalhe biográfico, só. O problema é quando a poesia dele, coerentemente, estabelece a "distração" como um valor, o que permite que ele, de repente, se lance ao elogio da decadência e, um instante depois, ao do racismo eugenista. Ele tem belíssimos poemas, como aquele das estrelas reticentes, no céu. Foi quase um mestre da ironia. Quase: porque um mestre da ironia não nos previne o tempo todo de que está sendo irônico. Ele simplesmente o é, e por isso nos envolve, nos seduz. Além disso, há outro problema. Há ironias e ironias. Há uma diferença entre a ironia corrosiva, que é uma seiva da linguagem, instilada junto com as palavras, com as cenas, as montagens, e a ironia exterior, que é uma espécie de verniz, usado para fins de proteção. Não é à toa que Luiz Costa Lima procurou entender na poesia de Drummond um princípio de corrosão. E o demarcou como o melhor da poesia dele.
Acho que a ironia sempre confessada de Raul de Leoni, sem deixar de ser, às vezes, muito bela, está mais para verniz do que para seiva. Ela não tem o poder de corroer. Ao contrário, ela visa à proteção no meio social carioca onde ser irônico, ser leitor de Nietzsche e Anatole France, de repente virou moda.
Agora, a primeira pergunta: é bem provável que o Drummond do meu ensaio seja um heterônimo meu. Isso acontece com todos os críticos limitados...
Num certo sentido, qualquer leitura tem muito de apropriação, e a "autoria" é sempre negociada com o leitor. Então, deve existir, sim, um Drummond que seja "meu" e de mais ninguém.
Mas a melancolia e a ironia sempre caminharam juntas. Como dizia o mexicano Julio Torri: "A ironia é a cor complementar da melancolia". Ou vice-versa: estou citando de memória - o que não deixa de ser, também, irônico.
E, se pensarmos como os antigos, que entendiam a melancolia como um tipo de "humor" nocivo, a "bile negra", talvez possamos concluir que entre um ácido e outro só existe uma diferença de grau (ou de octanagem).
O interessante é que, em Drummond, a ironia impede que a melancolia se torne um valor em si. O que salva o poeta de se confundir com toda a mística dos melancólicos, com sua pretensão de superioridade, de serem seres especiais, quando na maioria das vezes são apenas - saltando de Hipócrates para Freud - uns pobres neuróticos como todos nós. Há uma ironia que é seiva e outra que é somente verniz.
Pádua Fernandes:
Falamos de ironia: Torri, que você traduziu com Ronald Polito, memoravelmente reclamou que os fuzilamentos não recebiam grandes cuidados do governo! Você pensa que o governo e os poetas brasileiros cometem o mesmo erro?
Sérgio Alcides:
Pode ser. O Torri foi redescoberto pelo Ronald (e acho que nem no México ele é suficientemente conhecido). Este sim foi um mestre absoluto da ironia, e um dos primeiros estrangeiros a entenderem Machado de Assis. No texto a que você se refere, ele fala do descaso oficial pelo espetáculo dos fuzilamentos, cada vez mais descuidado. No fundo, era uma denúncia do quão corriqueiros eles tinham se tornado.
Acho que governos e poetas hoje talvez se preocupem demais com esse lado espetacular da política/poesia. Não no melhor sentido, da "publicidade", da criação de um teatro que reforce e reconfigure as relações no espaço público, sem se evadir do seu caráter necessariamente espetacular. Mas o espetáculo que vemos está mais ligado ao sentido hoje corriqueiro da palavra "publicidade", que na verdade apenas esconde uma privacidade muito vã e mesquinha, achatada e bidimensional, totalmente voltada para as aspirações mais pífias do ser humano, quando não simplesmente cínicas. Por parte dos governos, há uma confiança exagerada na propaganda, como se a mera retórica já consumasse os fatos, por si só. Por parte dos poetas, há um empenho muito análogo em ornamentar a poesia com uma parafernália de efeitos especiais, aliterações, torneios paronomásticos, trocadilhos, cortes, tipologias aberrantes, como se isso pudesse esconder a total falta do que dizer... É um tipo de espetacularização do poema, que no fundo dispensa a poesia, e a humilha.. Como nessas exposições muito bregas, tipo Brazil Connects, em que importantíssimas obras de arte se tornam pretextos para a fantasia de um cenógrafo regiamente remunerado. Lembro-me da minha irritação diante de uma peça de Brancusi, que tinha sido posta sobre um pedestal giratório, que, num ambiente escurecido, entrava e saía de um feixe de luz. Como apreciador de obras de arte, não posso dizer que jamais tenha visto aquela escultura, de fato.
Mas, atenção, não digo que a dimensão do espetáculo, da perícia formal, do fabbro, deva ser em princípio excluída. O problema não é tão preto-e-branco. Assim como não me parece que um governo, numa sociedade de massas, possa dispensar a propaganda. Da mesma forma, sempre haverá uma retórica fundamental para a política, outra para a poesia. E para o direito (como você sabe muito melhor do que eu). A retórica, o espetáculo, todo esse gestual, implicam também uma poética própria, e são condições da liberdade e da justiça.
O que digo é que retórica e espetáculo, todo o seu artesanato, são uma parte do métier. Que deixa de existir se for reduzido a esses aspectos. Tem que haver uma poesia para além da performance E tem que haver uma política para além da propaganda. Se não, estamos sendo logrados.
Pádua Fernandes:
Joan Brossa, outro dos autores que você traduziu (também com Ronald Polito), parece-me ter deixado certas marcas na sua poesia. "Poema dos sete erros" é mais explícito a respeito, mas há certas, digamos, fanopeias que aparecem com muito mais vigor nesse livro do que no primeiro. Como no poema do Oiti, em que você, numa imagem comovente, torna-se na raiz da árvore a ferir a calçada. Percebe outros pontos de contato com Brossa?
Sérgio Alcides:
Deve haver outros pontos de contato, sim. Espero que sim. Mas, no caso que você cita, trata-se mais de uma afinidade real do que uma marca deixada por ele. Esse poema sobre os oitizeiros do Rio teve mil redações, mas o início foi sempre o mesmo, escrito – eu acho – em 1989. Só conheci a poesia de Brossa anos depois. Foi uma das minhas maiores emoções como leitor de poesia. A descoberta aconteceu num dia memorável, na Casa de España, no Rio. Estava perdido entre as estantes da biblioteca, muito mal-organizada e simplesmente não-catalogada, naquela época. Eu queria ver o que tinha lá. Encontrei uma edição bilíngue de "Poemas civis", lombada preta, preta e larga, atraente para o olhar. Puxei. Abri o livro ao acaso: "Plou, puc" - e fui conquistado imediatamente. Na página par, a tradução castelhana me esclarecia: "Chove, posso etc." Isso aconteceu há mais de dez anos. Eu nunca tinha ouvido falar em Brossa (provavelmente tinha lido e me esquecido do poema de Cabral em homenagem a ele). Separei o livro para levá-lo emprestado. Instantes depois, encontrei uma revista de poesia, "La rosa cúbica", em número especial de homenagem ao poeta. Essas coincidências... Havia uma longa entrevista com ele, além de fotos mostrando a pessoa encantadora que ele era. Na entrevista ele falava também da sua amizade com Cabral, da importância que o Cabral teve para ele e para a sua geração, numa período sombrio da história da Catalunha. Naquela época, eu tinha acabado de conhecer o Ronald (publicamos poemas no mesmo número da extinta revista "Ímã"). Eu estava em Ouro Preto, uma cidade à qual sou (ou fui) muito ligado. Conheci o Ronald na inesquecível livraria Spix & Martius, numa linda noite, em que também fiquei conhecendo as donas da casa, as simpaticíssimas e louquíssimas Flávia e Viviane. Uns dias depois, em Mariana, mostrei o livro de Brossa ao Ronald. Começamos a traduzir logo. Acabamos aprendendo o catalão só para isso. É uma língua linda, e não foi muito difícil. Cinco anos depois, o livro ficou pronto. Pena que o Brossa morreu bem no dia em que enviamos para ele seu exemplar.
A poesia do Brossa me marcou muito, por várias razões. Inclusive porque é um poeta poderosamente experimental, que tem um sentido da forma, da matéria da poesia, muito particular. Seu experimentalismo se liga mais à irreverência das vanguardas do início do século XX do que ao construtivismo, que predominou nas vanguardas brasileiras mais recentes. Ele é ao mesmo tempo encantador e desmistificador. Isso é parte da sua magia, do seu lado circense e tão alegre. E, é claro, Brossa nos leva de volta para o tema da civilidade, da preocupação com o espaço público, as pessoas, a reunião, as ideias, a liberdade. É um poeta republicano. Eu também quero ser, sempre. Mesmo quando trato de assuntos que estão grudados na pele.
Pádua Fernandes:
Civilidade e pele - essa dupla fez com que você se interessasse por Cláudio Manuel da Costa? No seu livro sobre o poeta, "Estes penhascos", resultado de seu mestrado em História na PUC do Rio de Janeiro, é notável como você esclarece a articulação dos assuntos líricos com o Brasil da época – que é mais do que uma simples ambiência.
Sérgio Alcides:
Sim, o Cláudio Manuel tinha um lado forte de civilizador. Isso para ele era uma questão existencial. Isso para ele era uma questão existencial – inclusive porque ele sabia que era algo também indispensável à própria poesia, à sua existência. Não por acaso ele se espelhou no Ovídio desterrado.
Ele foi um dos maiores poetas do século XVIII, tenho certeza disso. Nunca recebeu – e nada indica que receberá um dia – o merecido reconhecimento. Em Portugal, por exemplo, ninguém sabe de quem se trata. E pouca gente soube, no tempo dele. Em Lisboa e no Porto, encontrei vários códices setecentistas de poesia em que alguns de seus melhores sonetos aparecem ou anônimos ou atribuídos a outros poetas, menos que medíocres, porém frequentadores das rodas e das antologias do Reino. E, se em Portugal ele foi e é desprezado, imagine no resto do mundo... Pior para o século XVIII, que foi chatíssimo em poesia. Pelo menos até os primeiros sinais da reviravolta romântica.
Pádua Fernandes:
Você tem a formação universitária de jornalista e em pós-graduação seguiu o caminho da História. Qual foi a importância de sua experiência jornalística?
Sérgio Alcides:
Minha formação, na verdade, é em Comunicação – jornalismo era a ênfase escolhida no curso. Não acho possível alguém ser formado em jornalismo, que não é uma disciplina universitária, é uma prática, uma profissão. Foi um curso importante para mim, me abriu muito a cabeça, porque um curso de Comunicação tem uma grande abertura (seu fraco é não saber aprofundar-se em nada). Fiz um semestre de Filosofia, depois, porque eu tinha me interessado por Filosofia da Linguagem, e pretendia continuar estudando. Mas não deu, tive que ir trabalhar. Trabalhei como jornalista por cinco anos quase - e larguei essa profissão há dez. Não tinha a menor vocação. Hoje, é muito difícil ser escritor e jornalista, ainda mais se você tem um perfil de estudioso. Há poucas exceções na minha geração, quer dizer, de jornalistas que conseguem ser também escritores e/ou estudiosos. Deve haver outros, mas pessoalmente só conheço três: Cristiane Costa, Paulo Roberto Pires e Luiz Fernando Vianna. Então, aquele foi um período sofrido para mim, até que consegui voltar para a universidade; não para a Filosofia, como eu queria antes, mas para a História, seguindo os passos de uma amiga que teve uma trajetória parecida com a minha. Apesar de tudo, não posso deixar de reconhecer que a passagem pelo jornalismo – e a minha foi na grande imprensa, como redator-tradutor de notícias internacionais do Globo – deixou marcas que hoje valorizo muito. O jornalismo, que abandonei para sempre, me deu uma percepção muito aguçada do espaço público, da necessidade de trazer as experiências humanas à tona, de buscar o outro, considerar sempre a transcendência social ou política das nossas ideias, dos nossos atos. Por isso acho que nunca chegarei a ser um "acadêmico", apesar de estar ligado à universidade e ser professor. Me incomoda muito o lado clerical dos "scholars", e me encaixo bem naquele modelo criticado por Julien Benda num livro chamado "La trahison des clercs". É uma pretensão muito mesquinha, a meu ver, a de ser um "clerc", um clérigo da alienação disciplinar, espécie de sacerdote da corporação das sinecuras. E a palavra em francês é perfeita, até na sonoridade: "clerc" - soando como triste onomatopeia.
Acho que acontece na universidade uma distorção parecida com a que vivemos na poesia: um voltar-se para dentro, toda uma atividade intramuros, muito ressentida em face da sociedade, e alienada dos espaços de fato públicos. E eu, que comecei a vida adulta no mundo das notícias (que tem outras alienações, mas está em plena praça pública), hoje transito entre esses dois mosteiros mutuamente ignorantes. Em ambos, tento fazer minha parte, que é – na proporção possível, na escala que alcanço – abrir alguma brecha, produzir algum incômodo, chamar a atenção dos outros, recusar-me a falar apenas para "o pessoal", "o clube", "a turma".
Nos idos de 2005, ano da publicação desta conversa na revista Jandira, ele era autor principalmente de Nada a ver com a lua (7Letras, 1996), O ar das cidades – Poemas, 1996-2000 (Nankin, 2000) e Estes penhascos: Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (Hucitec, 2003), e tradutor, com o poeta, editor e historiador Ronald Polito, de Julio Torri (Almanaque das Horas, São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2000) e Joan Brossa (Poemas civis, Rio de Janeiro: 7Letras, 1998).
Não me lembro quem teve a ideia de me pedir a entrevista. Creio que foi o editor, Ricardo Rizzo. Como a revista Jandira não está mais disponível, republico-a aqui.
PELE E CIVILIDADE
Entrevista com Sérgio Alcides por Pádua Fernandes, publicada na revista Jandira (Juiz de Fora, n. 2, out. 2005, p. 10-15)
Pádua Fernandes:
Sérgio, de "Nada a ver com a lua", gosto do poema para o Profeta Gentileza, que fala do tempo incivil. Onde está esse tempo?
Sérgio Alcides:
Há muitos tempos aí, meu querido Pádua. O tempo da incivilidade sempre existiu e sempre existirá, eu acho. Mas o nosso tempo exagera... O Gentileza é também para mim um tempo suspenso, o da memória. Porque eu o via sempre, quando criança, pichando com giz seu livro de ensinamentos nas pilastras dos viadutos do Rio. É uma recordação associada às férias, porque a família viajava de carro e, no caminho, víamos o Gentileza com sua túnica, sua barba branca, sua placa ambulante. Ele era um pouco homem-placa. O poeta é também homem-placa.
E a minha poesia, quando está mais solar do que soturna, também tem aquela pretensão do Gentileza, de espalhar uma boa ideia sobre o encontro, as pessoas, a civilidade.
Pádua Fernandes:
Perguntei do poema do Profeta porque "O ar das cidades" também reflete experiências de tempo incivil, não? Esse tempo incivil também não é marcado pela abstinência da esfera pública, que é um dos alvos da sátira de "Valsa de uma cidade"?
Sérgio Alcides:
Bem, acho que você foi direto ao ponto que mais importa para mim. Não suporto a ideia de que a poesia seja um gabinete privado de afetos ou experimentos, sem maior consequência, nem para a linguagem, nem para a sociedade. Não sou do partido dos bibelôs de inanição sonora de que falava Mallarmé. Ao bibelô, prefiro o libelo. E a inanição (como sugere o trocadilho) parece onanição, mas sem proveito. Acho que a poesia é uma ação dirigida aos semelhantes. Não me refiro aos outros poetas. Como você sabe, uma coisa que me preocupa muito é que a poesia se torne um assunto de poetas. Refiro-me aos meus semelhantes num sentido bem menos paroquial...
Então "O ar das cidades" tem, sim, esse aspecto que você nota em "Nada a ver com a Lua". Para mim, até pela minha história pessoal (ou "estória"?), pelo fato de ter nascido numa cidade grande do Terceiro Mundo, e seguir vivendo em outra, ainda maior, a vida nas cidades é um dos principais valores. "O ar das cidades liberta", já diziam os medievais, e tem que libertar. Isso é uma imposição do nosso destino. Se ele nos sufoca, temos que fazer por onde o sufoco se tornar libertação. E isso só pode ser feito numa esfera pública. E não há um bem mais público do que a linguagem. Daí a oportunidade, a responsabilidade, a eficácia da poesia.
Pádua Fernandes:
Ao mesmo tempo, "O ar das cidades" começa num espaço íntimo. Qual é a relação do armário com as ruas?
Sérgio Alcides:
Não sei explicar tudo... Não acredito num planejamento rígido da poesia. Mas posso arriscar aqui alguma ideia.
Penso em duas figuras muito parecidas e contemporâneas: Álvaro de Campos e Walter Benjamin. O primeiro com certeza existiu, não acha? Já o segundo talvez seja um heterônimo (ou pelo menos um personagem, um complemento) de Thomas Mann. No Álvaro de Campos, urbanidade e intimidade estão ligadas da maneira mais visceral. Até de um modo muito ressentido, amargo. No Benjamin se dá uma coisa muito semelhante. Uma parte da sua crítica do mundo burguês está no livro sobre a "Infância em Berlim", onde, como em outros livros dele, o “apartamento” é uma condição necessária da cidade, e sequer existe em Benjamin uma percepção da cidade independente da invenção subjetiva de um observador, que a ela pertence tanto quanto lhe é, contraditoriamente, alheio. Em ambos, Álvaro e Benjamin, a "liga" entre a urbe e o espaço interior é o presente da memória. E o funcionamento da memória individual é o tema que alinhava toda a “suíte” de poemas na abertura de “O ar das cidades”. É necessário invadir o passado, tomar posse do que nos pertence mais profundamente – e para mim nenhuma definição de “cidade” pode deixar de lado uma coisa fundamental: que uma cidade é um lugar impregnado de memórias, as mais diferentes, em harmonia e em conflito.
Pádua Fernandes:
Desconfio que o Drummond de seu ensaio “Melancolia ‘gauche’ na vida” publicado pela Unimarco em “Drummond Revisitado”, com organização de Reynaldo Damazio, seja também um heterônimo seu, pela forma como você alia a melancolia com a ironia. Se Drummond não é heterônimo seu, pode-se dizer que você também é um dos nomes dessa linhagem? Isto é, a linhagem da ironia? Pois uma das críticas que você faz a Raul de Leoni é justamente a da ironia anunciada e apaziguada presente na poesia desse ilustre membro da elite fluminense. Que, exemplo perfeito de poeta, segundo os modelos esperados, não teria aberto a boca na sua passagem pela Assembléia Legislativa (mas isso teria mudado tanto assim?).
Sérgio Alcides:
É, o Raul de Leoni era um poeta interessante... Mas equivocado. E, de fato, como casual político, não se comportou de maneira diferente do que se espera de qualquer mauricinho da elite fluminense desde sempre. Mas isso é um detalhe biográfico, só. O problema é quando a poesia dele, coerentemente, estabelece a "distração" como um valor, o que permite que ele, de repente, se lance ao elogio da decadência e, um instante depois, ao do racismo eugenista. Ele tem belíssimos poemas, como aquele das estrelas reticentes, no céu. Foi quase um mestre da ironia. Quase: porque um mestre da ironia não nos previne o tempo todo de que está sendo irônico. Ele simplesmente o é, e por isso nos envolve, nos seduz. Além disso, há outro problema. Há ironias e ironias. Há uma diferença entre a ironia corrosiva, que é uma seiva da linguagem, instilada junto com as palavras, com as cenas, as montagens, e a ironia exterior, que é uma espécie de verniz, usado para fins de proteção. Não é à toa que Luiz Costa Lima procurou entender na poesia de Drummond um princípio de corrosão. E o demarcou como o melhor da poesia dele.
Acho que a ironia sempre confessada de Raul de Leoni, sem deixar de ser, às vezes, muito bela, está mais para verniz do que para seiva. Ela não tem o poder de corroer. Ao contrário, ela visa à proteção no meio social carioca onde ser irônico, ser leitor de Nietzsche e Anatole France, de repente virou moda.
Agora, a primeira pergunta: é bem provável que o Drummond do meu ensaio seja um heterônimo meu. Isso acontece com todos os críticos limitados...
Num certo sentido, qualquer leitura tem muito de apropriação, e a "autoria" é sempre negociada com o leitor. Então, deve existir, sim, um Drummond que seja "meu" e de mais ninguém.
Mas a melancolia e a ironia sempre caminharam juntas. Como dizia o mexicano Julio Torri: "A ironia é a cor complementar da melancolia". Ou vice-versa: estou citando de memória - o que não deixa de ser, também, irônico.
E, se pensarmos como os antigos, que entendiam a melancolia como um tipo de "humor" nocivo, a "bile negra", talvez possamos concluir que entre um ácido e outro só existe uma diferença de grau (ou de octanagem).
O interessante é que, em Drummond, a ironia impede que a melancolia se torne um valor em si. O que salva o poeta de se confundir com toda a mística dos melancólicos, com sua pretensão de superioridade, de serem seres especiais, quando na maioria das vezes são apenas - saltando de Hipócrates para Freud - uns pobres neuróticos como todos nós. Há uma ironia que é seiva e outra que é somente verniz.
Pádua Fernandes:
Falamos de ironia: Torri, que você traduziu com Ronald Polito, memoravelmente reclamou que os fuzilamentos não recebiam grandes cuidados do governo! Você pensa que o governo e os poetas brasileiros cometem o mesmo erro?
Sérgio Alcides:
Pode ser. O Torri foi redescoberto pelo Ronald (e acho que nem no México ele é suficientemente conhecido). Este sim foi um mestre absoluto da ironia, e um dos primeiros estrangeiros a entenderem Machado de Assis. No texto a que você se refere, ele fala do descaso oficial pelo espetáculo dos fuzilamentos, cada vez mais descuidado. No fundo, era uma denúncia do quão corriqueiros eles tinham se tornado.
Acho que governos e poetas hoje talvez se preocupem demais com esse lado espetacular da política/poesia. Não no melhor sentido, da "publicidade", da criação de um teatro que reforce e reconfigure as relações no espaço público, sem se evadir do seu caráter necessariamente espetacular. Mas o espetáculo que vemos está mais ligado ao sentido hoje corriqueiro da palavra "publicidade", que na verdade apenas esconde uma privacidade muito vã e mesquinha, achatada e bidimensional, totalmente voltada para as aspirações mais pífias do ser humano, quando não simplesmente cínicas. Por parte dos governos, há uma confiança exagerada na propaganda, como se a mera retórica já consumasse os fatos, por si só. Por parte dos poetas, há um empenho muito análogo em ornamentar a poesia com uma parafernália de efeitos especiais, aliterações, torneios paronomásticos, trocadilhos, cortes, tipologias aberrantes, como se isso pudesse esconder a total falta do que dizer... É um tipo de espetacularização do poema, que no fundo dispensa a poesia, e a humilha.. Como nessas exposições muito bregas, tipo Brazil Connects, em que importantíssimas obras de arte se tornam pretextos para a fantasia de um cenógrafo regiamente remunerado. Lembro-me da minha irritação diante de uma peça de Brancusi, que tinha sido posta sobre um pedestal giratório, que, num ambiente escurecido, entrava e saía de um feixe de luz. Como apreciador de obras de arte, não posso dizer que jamais tenha visto aquela escultura, de fato.
Mas, atenção, não digo que a dimensão do espetáculo, da perícia formal, do fabbro, deva ser em princípio excluída. O problema não é tão preto-e-branco. Assim como não me parece que um governo, numa sociedade de massas, possa dispensar a propaganda. Da mesma forma, sempre haverá uma retórica fundamental para a política, outra para a poesia. E para o direito (como você sabe muito melhor do que eu). A retórica, o espetáculo, todo esse gestual, implicam também uma poética própria, e são condições da liberdade e da justiça.
O que digo é que retórica e espetáculo, todo o seu artesanato, são uma parte do métier. Que deixa de existir se for reduzido a esses aspectos. Tem que haver uma poesia para além da performance E tem que haver uma política para além da propaganda. Se não, estamos sendo logrados.
Pádua Fernandes:
Joan Brossa, outro dos autores que você traduziu (também com Ronald Polito), parece-me ter deixado certas marcas na sua poesia. "Poema dos sete erros" é mais explícito a respeito, mas há certas, digamos, fanopeias que aparecem com muito mais vigor nesse livro do que no primeiro. Como no poema do Oiti, em que você, numa imagem comovente, torna-se na raiz da árvore a ferir a calçada. Percebe outros pontos de contato com Brossa?
Sérgio Alcides:
Deve haver outros pontos de contato, sim. Espero que sim. Mas, no caso que você cita, trata-se mais de uma afinidade real do que uma marca deixada por ele. Esse poema sobre os oitizeiros do Rio teve mil redações, mas o início foi sempre o mesmo, escrito – eu acho – em 1989. Só conheci a poesia de Brossa anos depois. Foi uma das minhas maiores emoções como leitor de poesia. A descoberta aconteceu num dia memorável, na Casa de España, no Rio. Estava perdido entre as estantes da biblioteca, muito mal-organizada e simplesmente não-catalogada, naquela época. Eu queria ver o que tinha lá. Encontrei uma edição bilíngue de "Poemas civis", lombada preta, preta e larga, atraente para o olhar. Puxei. Abri o livro ao acaso: "Plou, puc" - e fui conquistado imediatamente. Na página par, a tradução castelhana me esclarecia: "Chove, posso etc." Isso aconteceu há mais de dez anos. Eu nunca tinha ouvido falar em Brossa (provavelmente tinha lido e me esquecido do poema de Cabral em homenagem a ele). Separei o livro para levá-lo emprestado. Instantes depois, encontrei uma revista de poesia, "La rosa cúbica", em número especial de homenagem ao poeta. Essas coincidências... Havia uma longa entrevista com ele, além de fotos mostrando a pessoa encantadora que ele era. Na entrevista ele falava também da sua amizade com Cabral, da importância que o Cabral teve para ele e para a sua geração, numa período sombrio da história da Catalunha. Naquela época, eu tinha acabado de conhecer o Ronald (publicamos poemas no mesmo número da extinta revista "Ímã"). Eu estava em Ouro Preto, uma cidade à qual sou (ou fui) muito ligado. Conheci o Ronald na inesquecível livraria Spix & Martius, numa linda noite, em que também fiquei conhecendo as donas da casa, as simpaticíssimas e louquíssimas Flávia e Viviane. Uns dias depois, em Mariana, mostrei o livro de Brossa ao Ronald. Começamos a traduzir logo. Acabamos aprendendo o catalão só para isso. É uma língua linda, e não foi muito difícil. Cinco anos depois, o livro ficou pronto. Pena que o Brossa morreu bem no dia em que enviamos para ele seu exemplar.
A poesia do Brossa me marcou muito, por várias razões. Inclusive porque é um poeta poderosamente experimental, que tem um sentido da forma, da matéria da poesia, muito particular. Seu experimentalismo se liga mais à irreverência das vanguardas do início do século XX do que ao construtivismo, que predominou nas vanguardas brasileiras mais recentes. Ele é ao mesmo tempo encantador e desmistificador. Isso é parte da sua magia, do seu lado circense e tão alegre. E, é claro, Brossa nos leva de volta para o tema da civilidade, da preocupação com o espaço público, as pessoas, a reunião, as ideias, a liberdade. É um poeta republicano. Eu também quero ser, sempre. Mesmo quando trato de assuntos que estão grudados na pele.
Pádua Fernandes:
Civilidade e pele - essa dupla fez com que você se interessasse por Cláudio Manuel da Costa? No seu livro sobre o poeta, "Estes penhascos", resultado de seu mestrado em História na PUC do Rio de Janeiro, é notável como você esclarece a articulação dos assuntos líricos com o Brasil da época – que é mais do que uma simples ambiência.
Sérgio Alcides:
Sim, o Cláudio Manuel tinha um lado forte de civilizador. Isso para ele era uma questão existencial. Isso para ele era uma questão existencial – inclusive porque ele sabia que era algo também indispensável à própria poesia, à sua existência. Não por acaso ele se espelhou no Ovídio desterrado.
Ele foi um dos maiores poetas do século XVIII, tenho certeza disso. Nunca recebeu – e nada indica que receberá um dia – o merecido reconhecimento. Em Portugal, por exemplo, ninguém sabe de quem se trata. E pouca gente soube, no tempo dele. Em Lisboa e no Porto, encontrei vários códices setecentistas de poesia em que alguns de seus melhores sonetos aparecem ou anônimos ou atribuídos a outros poetas, menos que medíocres, porém frequentadores das rodas e das antologias do Reino. E, se em Portugal ele foi e é desprezado, imagine no resto do mundo... Pior para o século XVIII, que foi chatíssimo em poesia. Pelo menos até os primeiros sinais da reviravolta romântica.
Pádua Fernandes:
Você tem a formação universitária de jornalista e em pós-graduação seguiu o caminho da História. Qual foi a importância de sua experiência jornalística?
Sérgio Alcides:
Minha formação, na verdade, é em Comunicação – jornalismo era a ênfase escolhida no curso. Não acho possível alguém ser formado em jornalismo, que não é uma disciplina universitária, é uma prática, uma profissão. Foi um curso importante para mim, me abriu muito a cabeça, porque um curso de Comunicação tem uma grande abertura (seu fraco é não saber aprofundar-se em nada). Fiz um semestre de Filosofia, depois, porque eu tinha me interessado por Filosofia da Linguagem, e pretendia continuar estudando. Mas não deu, tive que ir trabalhar. Trabalhei como jornalista por cinco anos quase - e larguei essa profissão há dez. Não tinha a menor vocação. Hoje, é muito difícil ser escritor e jornalista, ainda mais se você tem um perfil de estudioso. Há poucas exceções na minha geração, quer dizer, de jornalistas que conseguem ser também escritores e/ou estudiosos. Deve haver outros, mas pessoalmente só conheço três: Cristiane Costa, Paulo Roberto Pires e Luiz Fernando Vianna. Então, aquele foi um período sofrido para mim, até que consegui voltar para a universidade; não para a Filosofia, como eu queria antes, mas para a História, seguindo os passos de uma amiga que teve uma trajetória parecida com a minha. Apesar de tudo, não posso deixar de reconhecer que a passagem pelo jornalismo – e a minha foi na grande imprensa, como redator-tradutor de notícias internacionais do Globo – deixou marcas que hoje valorizo muito. O jornalismo, que abandonei para sempre, me deu uma percepção muito aguçada do espaço público, da necessidade de trazer as experiências humanas à tona, de buscar o outro, considerar sempre a transcendência social ou política das nossas ideias, dos nossos atos. Por isso acho que nunca chegarei a ser um "acadêmico", apesar de estar ligado à universidade e ser professor. Me incomoda muito o lado clerical dos "scholars", e me encaixo bem naquele modelo criticado por Julien Benda num livro chamado "La trahison des clercs". É uma pretensão muito mesquinha, a meu ver, a de ser um "clerc", um clérigo da alienação disciplinar, espécie de sacerdote da corporação das sinecuras. E a palavra em francês é perfeita, até na sonoridade: "clerc" - soando como triste onomatopeia.
Acho que acontece na universidade uma distorção parecida com a que vivemos na poesia: um voltar-se para dentro, toda uma atividade intramuros, muito ressentida em face da sociedade, e alienada dos espaços de fato públicos. E eu, que comecei a vida adulta no mundo das notícias (que tem outras alienações, mas está em plena praça pública), hoje transito entre esses dois mosteiros mutuamente ignorantes. Em ambos, tento fazer minha parte, que é – na proporção possível, na escala que alcanço – abrir alguma brecha, produzir algum incômodo, chamar a atenção dos outros, recusar-me a falar apenas para "o pessoal", "o clube", "a turma".
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Evento: Seminário Direito e Ditadura na UFSC
O PET do Direito da UFSC está organizando um Seminário Direito e Ditadura, que conta com nomes muito significativos, apesar de eu mesmo estar na programação. E há pesquisadores de várias gerações, o que deverá tornar tudo ainda mais interessante, além de testemunhas da época, como o advogado Modesto da Silveira.
Falo agora apenas de um nome: a abertura será feita por um historiador que desvendou e analisou fontes, do Brasil e dos EUA, até então inéditas sobre a ditadura brasileira. Trata-se de Carlos Fico, autor, entre outros livros, dos fundamentais Como eles agiam e O Grande Irmão, publicados pela Record.
Clicando nas imagens da programação, o tamanho aumentará.
Já me perguntaram o que é PET, o programa de educação tutorial. Trata-se de grupos de estudantes de graduação, com tutor, em atividades coletivas voltadas para o tripé ensino, pesquisa e extensão. É claro que isso somente é possível em instituições que tenham estudantes, e não clientes. As de outro tipo, o máximo que terão é pet-shop, teoricamente mais apropriado a sua visão mercantil da educação.
Falo agora apenas de um nome: a abertura será feita por um historiador que desvendou e analisou fontes, do Brasil e dos EUA, até então inéditas sobre a ditadura brasileira. Trata-se de Carlos Fico, autor, entre outros livros, dos fundamentais Como eles agiam e O Grande Irmão, publicados pela Record.
Clicando nas imagens da programação, o tamanho aumentará.
Já me perguntaram o que é PET, o programa de educação tutorial. Trata-se de grupos de estudantes de graduação, com tutor, em atividades coletivas voltadas para o tripé ensino, pesquisa e extensão. É claro que isso somente é possível em instituições que tenham estudantes, e não clientes. As de outro tipo, o máximo que terão é pet-shop, teoricamente mais apropriado a sua visão mercantil da educação.
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
Leitura do dia: Poemas aus Nuernberger
Em outro escrito (http://opalcoeomundo.blogspot.com/2010/08/waltercio-caldas-e-algo-como-um-poema.html), lamentei que jovens artistas apresentassem como credenciais de atualidade o desconhecimento do passado. Esse comentário não pode ser feito sobre Renan Nuernberger, autor que nasceu em São Paulo em 1986.
Seu primeiro livro, Mesmo poemas, (http://mesmopoemas.wordpress.com/), lançado em 2010 pelo Selo Sebastião Grifo, denota um temperamento crítico, no sentido de análise e diálogo com poéticas alheias. A favela de Heliópolis, por exemplo, nele aparece, mas pelo prisma da poética arquitetônica de Ruy Ohtake, que tem trabalhado com essa comunidade. "Mesmo" aqui, "poemas".
Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto são obsessões que atravessam este livro, e de que o autor ainda não se exorcizou totalmente. Drummond também, a quem quase devemos a drummondiana orelha. Também comparecem Murilo, Mário de Andrade, Vinicius...
(Lembro que inspiração às vezes é confundida com a invocação de espíritos, porém ela tem muito de exorcismo.)
A poesia contemporânea brasileira há tempos tem-se dedicado ao esforço citacional, às vezes por necessidade de legitimação, às vezes por esnobismo. Não é o caso de Nuernberger, que apresenta Gullar e Cabral como problemas para sua poética própria.
Portanto, os melhores momentos do livro ocorrem quando ele sai da condição de "O Aluno" (título do primeiro livro de José Paulo Paes, de 1947, que explicitamente presta um tributo a Drummond, Bandeira, Murilo...) e trata Cabral e Gullar como problemas, e não modelos; são exemplo disso "Gullariana" (que inicia com uma alusão a Vinicius) e "Cabral (velho aço nos ossos)", que assim começa:
Como outros poetas contemporâneos (lembro agora de Eduardo Sterzi e Tarso de Melo), Nuernberger revisita Drummond em um interessante tom menor, o que gera a "Caixinha do saber empacotada", inspirado na máquina do mundo, que se revela ser a mercantil propaganda.
Danilo Bueno destaca este fato no posfácio, e é, com efeito, interessante verificar como estão fortemente presentes em Mesmo poemas autores contemporâneos, como Angélica Freitas, Ruy Proença, Paulo Ferraz, Andréa Catrópa, Eduardo Lacerda. Nisso, e apenas nisso (pois a poética é muito diversa) lembrei dos poetas da geração chamada marginal, que tanto faziam esse tipo de frequentação mútua em verso.
Nessa imersão no contemporâneo, devem-se incluir as críticas a Régis Bonvincino em um poema-objeto que foi entregue no lançamento do livro e em "'Xerox, tigre, terror'": a poesia não é área de segurança, acusa Nuernberger com humor; mas só vou entregar o começo:
O fim do último poema também pode ser revelado aqui; poderia vir ser o problema para os próximos livros do autor, seja de poesia, seja de crítica, pois se trata do grande desafio da arte contemporânea: apossar-se dos escombros.
Seu primeiro livro, Mesmo poemas, (http://mesmopoemas.wordpress.com/), lançado em 2010 pelo Selo Sebastião Grifo, denota um temperamento crítico, no sentido de análise e diálogo com poéticas alheias. A favela de Heliópolis, por exemplo, nele aparece, mas pelo prisma da poética arquitetônica de Ruy Ohtake, que tem trabalhado com essa comunidade. "Mesmo" aqui, "poemas".
Ferreira Gullar e João Cabral de Melo Neto são obsessões que atravessam este livro, e de que o autor ainda não se exorcizou totalmente. Drummond também, a quem quase devemos a drummondiana orelha. Também comparecem Murilo, Mário de Andrade, Vinicius...
(Lembro que inspiração às vezes é confundida com a invocação de espíritos, porém ela tem muito de exorcismo.)
A poesia contemporânea brasileira há tempos tem-se dedicado ao esforço citacional, às vezes por necessidade de legitimação, às vezes por esnobismo. Não é o caso de Nuernberger, que apresenta Gullar e Cabral como problemas para sua poética própria.
Portanto, os melhores momentos do livro ocorrem quando ele sai da condição de "O Aluno" (título do primeiro livro de José Paulo Paes, de 1947, que explicitamente presta um tributo a Drummond, Bandeira, Murilo...) e trata Cabral e Gullar como problemas, e não modelos; são exemplo disso "Gullariana" (que inicia com uma alusão a Vinicius) e "Cabral (velho aço nos ossos)", que assim começa:
molhar uma esponja no discurso-rio
retesá-lo não, sua sintaxe selvagem,
absorvê-lo, pois, em seu ímpeto, em
seu impacto com os poros puros, brio
de assepsia.
Como outros poetas contemporâneos (lembro agora de Eduardo Sterzi e Tarso de Melo), Nuernberger revisita Drummond em um interessante tom menor, o que gera a "Caixinha do saber empacotada", inspirado na máquina do mundo, que se revela ser a mercantil propaganda.
Danilo Bueno destaca este fato no posfácio, e é, com efeito, interessante verificar como estão fortemente presentes em Mesmo poemas autores contemporâneos, como Angélica Freitas, Ruy Proença, Paulo Ferraz, Andréa Catrópa, Eduardo Lacerda. Nisso, e apenas nisso (pois a poética é muito diversa) lembrei dos poetas da geração chamada marginal, que tanto faziam esse tipo de frequentação mútua em verso.
Nessa imersão no contemporâneo, devem-se incluir as críticas a Régis Bonvincino em um poema-objeto que foi entregue no lançamento do livro e em "'Xerox, tigre, terror'": a poesia não é área de segurança, acusa Nuernberger com humor; mas só vou entregar o começo:
fiz tão
pouco publiquei
tão menos
nem sei se
posso proclamar
-me poeta
(i, too, dislike it: enfim)
O fim do último poema também pode ser revelado aqui; poderia vir ser o problema para os próximos livros do autor, seja de poesia, seja de crítica, pois se trata do grande desafio da arte contemporânea: apossar-se dos escombros.
e Adalgisa se afoga em seu próprio
escopo, sua própria
prosa, seu próprio sexo (se acaso
ainda estivesse viva!), seu nome
próprio (?)
como nos são
próprios todos os escombros
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