O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Desarquivando o Brasil XI: Manoel Fiel Filho e o Ministério Público Federal, Direito e negacionismo

Oficialmente, o regime militar não se declarava como uma ditadura, pois a justificativa pública do golpe reivindicava que os militares estariam a salvar da democracia no Brasil. Essa tese do caráter redentor do regime, naturalmente, exigia uma boa dose de cinismo para sustentar-se ao longo dos mais de 20 anos de arbítrio.
A cultura cínica em relação às leis existia pelo menos desde o Brasil monárquico. Se ela correspondeu historicamente a uma negação da cidadania, sua ambiguidade não deixou de gerar efeitos indesejados para o Estado brasileiro: essa mesma cultura possibilitou que houvesse certa judicialização da repressão política e a garantia formal de direitos fundamentais: já que não precisariam ser cumpridos efetivamente, eles foram previstos formalmente - e, uma vez previstos, poderiam servir de instrumento para demandas dos cidadãos. Para inverter a frase de Nietzsche, a lei da escravidão pode ser usada para a liberdade. Em termos sociológicos, o que é decisivo são os usos do direito, e não propriamente os textos formalizados das leis.
Aquela cultura cínica tornou esses direitos inúteis, como diria um antijuridismo comum e vulgar? Não, porque, na prática, isso permitiu a defesa de perseguidos - que, sem esses instrumentos legais, poderiam simplesmente ter "desaparecido" - e, mesmo quando o Judiciário e o Ministério Público agiam em frontal confronto com aquelas garantias, a sua simples existência permitia apontar a fundamental ilegitmidade do regime político.
Por esse motivo, o Direito é uma dimensão importante para o estudo das práticas autoritárias. Essa distância entre prática e discurso pode ser verificada nas autoridades do Executivo:

Creio em um mundo sem fronteiras entre países e homens ricos e pobres.
[...]
Homem do povo, creio no homem e no povo, como nossa potencialidade maior. [...] Homem do povo, conheço a sua vocação para a liberdade, creio no poder fecundante da liberdade.
[...]
Homem da lei e do regulamento, creio no primado do Direito. E porque homem da lei é que pretendo velar pela ordem jurídica. [...] Homem da lei, sinto que a plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. E, para isso, creio necessário consolidar e dignificar o sistema representativo, baseado na pluralidade dos partidos políticos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.

Quem é esse perigoso homem do povo e jurista democrata? Médici, na cerimônia de posse da presidência, em trinta de outubro de 1969.
A finíssima camada de hipocrisia que cobre a barbárie oficial pode ser detectada também nos inquéritos e processos, parte importante do cotidiano das práticas autoritárias.
O operário Manoel Fiel Filho, militante do PCB, foi morto há 35 anos, em 17 de janeiro de 1976 no DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo. Era um momento difícil da lentíssima abertura política. Os agentes da repressão política, para sobreviver institucionalmente, precisavam perpetuar o regime e sabotavam a democratização. Lembro de Jacob Gorender:
Uma vez que já não havia organizações de esquerda para justificar sua atuação sanguinária, os órgãos repressivos se voltaram para a "reserva de caça" que lhes oferecia o PCB. [...] Seis anos de fogo brando induziram o Partidão a baixar a guarda e se descuidar da segurança clandestina. Abriu-se em excesso na campanha eleitoral de 1974, quando o MDB alcançou o primeiro êxito significativo. Os órgãos policiais não tiveram dificuldade para desarticular o Partidão e paralisar sua alta direção. (Combate nas trevas, 6ª ed., São Paulo: Ática, 2003, p. 264)

Ele foi assassinado poucos meses depois do jornalista Vladimir Herzog, também do PCB, cuja morte ocorreu em 25 de outubro de 1975. A morte de Herzog havia despertado uma grande comoção pública (apesar da censura), que foi afrontada brutalmente pelos torturadores.
Foi aberto um inquérito, claro, como se faria em uma democracia. Como se faz em ditaduras, ele foi arquivado. O procurador militar Darcy de Araujo Rebello, em despacho de 28 de abril de 1976, requereu o arquivamento com esta argumentação:

Nossa orientação moral e jurídica é também a orientação da jurisprudência mundial, de que a presunção é, sempre, em favor da autoridade policial, militar ou judiciária. O que se presume é a correção, a imparcialidade, a lealdade, e a lisura da autoridade constituída. Havendo exceção a lei exige prova cabal.

Essa presunção, em verdade, era tratada como se fosse absoluta, uma vez que era impedido que se produzisse prova em contrário às alegações oficiais - os companheiros de cela dos presos assassinados, por exemplo, não eram ouvidos. Nos inquéritos, manifestavam-se apenas os agentes da repressão, que não produziam provas contra si mesmos...
O juiz auditor Arylton da Cunha Rodrigues, acolhendo as razões do procurador, deferiu (transcrevo mantendo os erros de português) o arquivamento em 3 de maio do mesmo ano:
Releva notar que a prudência manda, em favor da boa razão, que se vejam as coisas na sua simplicidade e, portanto no suicídio o simples suicídio, no estelionato o simples estelionato e assim por diante.
Sem dúvida, um fato lamentável que choca a opinião pública e até os espíritos mais insensíveis.
A pesquiza que se fizesse no mar de contradições em que se debate o espírito humano, seria obra superior a nossas forças. E isso porque, são sempre desnorteantes, complexos e muitas vezes insondáveis, os impulsos que levam a criatura humana ao suicídio.
Trata-se de um interessante exemplo do emprego retórico da prudência contra a justiça. Ninguém foi responsabilizado nesse inquérito, mas o comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Melo, foi exonerado de seu cargo.
Anos depois, a Justiça finalmente condenou a União pela morte de Manoel Fiel Filho em ação movida pela viúva, Tereza de Lourdes Martins Fiel.
O Ministério Público Federal moveu em 2009 ação civil pública (sua petição inicial é exemplar) para que os membros da equipe B do DOI-CODI Tamotu Nakao e Edevarde José, os carcereiros Alfredo Umeda e Antonio José Nocete, o delegado do DOPS/SP Orlando Domingues Jerônymo, o perito Ernesto Eleutério e o médico legista José Antonio de Mello fossem declarados responsáveis pela morte de Manoel Fiel Filho - os três últimos, por participarem da ocultação das causas da morte.
A juíza Regilena Emy Fukui Bolognesi, da 11ª Vara Federal Cível, havia mandado arquivar a ação, mas a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em decisão unânime, determinou a reabartura do processo, que pode desconstituir as aposentadorias daqueles agentes e condená-los a ressarcir o Estado pelas indenizações pagas pela morte de Manoel Fiel Filho. Os documentos da ação podem ser lidos no sítio da Procuradoria Regional da República da 3ª Região.
Em outra ação civil pública do Ministério Público Federal, de 2008, que pede condenação semelhante aos ex-chefes do DOI-CODI Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, o caso de Manoel Fiel Filho também aparece como uma das graves violações aos direitos humanos perpetradas no período. Na fundamentação jurídica da conceituação dos crimes contra a humanidade, é dado o destaque às fontes de direito internacional, como neste trecho da brilhante peça processual:

Embora a presente ação seja estritamente de natureza cível, é relevante destacar que os atos ilícitos perpetrados pelos réus USTRA e MACIEL caracterizam crimes contra a humanidade. Nessa qualidade, merecem máximo repúdio pelo sistema judicial, como forma não só de reparo às vítimas, mas acima de tudo para prevenir que episódios dessa estirpe se repitam no futuro.
Outra conseqüência dessa qualificação é a de que os autores de crimes contra a humanidade não podem se beneficiar de institutos como a prescrição e anistia, mesmo quando previstos em normas internas. Esses dois temas serão abordados em tópicos específicos.
O desenvolvimento normativo do conceito de crime contra a humanidade teve início em 1907, com a Convenção de Haia sobre Guerra Terrestre, que funda-se no respeito a princípios humanitários Em um de seus considerandos deixa claro o caráter normativo dos “princípios ‘jus gentium’ preconizados pelos usos estabelecidos entre as nações civilizadas, pelas leis da humanidade e pelas exigências da consciência pública”18.
O Brasil ratificou tal documento em 02.01.1914 e o promulgou por meio do Decreto 10.719, de 04.02.1914. Logo, desde então admite os princípios de direito internacional como fonte normativa e compromete-se com sua observância.

Também indeferida em primeiro grau, pelo juiz Clécio Braschi, foi interposta apelação.
Como se sabe, a Advocacia Geral da União (que se manifestou, pois a União é um dos réus) pôs-se ao lado dos agentes do arbítrio contestando o pedido do Ministério Público. Nessa contestação, a postura negacionista manifesta-se em vários pontos, como no isolacionismo em relação ao direito internacional e na negação do caráter difuso do direito à verdade e à memória:

20. Com efeito, ao propor a presente ação, o Autor se arvora como substituto processual de perseguidos políticos e de seus familiares, o que não condiz com a defesa de interesses difusos e coletivos, pois não está a defender toda a sociedade. Ao contrário, atua claramente na defesa de direitos individuais homogêneos, não encontrando guarida nas hipóteses de cabimento da ação civil pública previstas pelo artigo 1º da Lei n.º 7.347/85, tais: meio ambiente, consumidor, patrimônio público e social e ordem econômica.

Essa questão, por óbvio, não diz respeito apenas aos perseguidos políticos e aos familiares, pois a memória é um bem comum, de que ninguém determinado é um titular exclusivo. A tese inconstitucional do esquecimento, defendida pela AGU, é fundamentada pela redução do direito difuso à memória à questão privada da privacidade:

27. Além disso, é necessário ao Estado preservar a intimidade de pessoas que não desejam "reabrir feridas", isto é, que não gostariam de que determinados fatos do período de exceção viessem a lume. Na verdade, o deferimento da presente demanda conduz ao inevitável choque entre o interesse do substituto (MP) e dos substituídos, sendo que o próprio escândalo (streptus) do processo é idôneo a causar danos irreparáveis.

A ação oficial de agentes públicos em perpetrar crimes em favor do regime político pode ser ocultada pela privacidade e o direito à imagem? A tese é tão descabida que só pode ser mantida pela negação da história e do direito, ainda sustentada pelos poderes públicos da atual democracia. Aquela cultura em relação às leis ainda não foi superada.

Nota: Consultei o inquérito da morte de Manoel Fiel Filho no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Um comentário:

  1. Olá!
    Parabéns pelo seu blog! Muito bom.
    Gostaria de aproveitar a visita para divulgar o meu blog. Trata-se do contra-afronta.blogspot.com, onde temas como política, cultura, comportamento e cotidiano são abordados, tendo como foco principal os problemas da cidade de Salvador.
    Estou aguardando a sua visita.
    Abraço!

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