O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 25 de junho de 2011

Desarquivando o Brasil XII: Ditadura militar e roupa suja se lava em casa

Roupa suja se lava em casa é um provérbio que geralmente se emprega para pedir discrição sobre assuntos familiares desagradáveis. Deveriam os assuntos públicos serem cobertos desse tipo de sigilo - para que não se pense mal do poder público e/ou do país? A resposta é negativa, em razão da diferença entre as ordens do Estado e a da família.
Contra esses segredos oficiais, é legítimo buscar apoio internacional. Fábio Konder Comparato, numa palestra que proferiu no ano passado em auditório da Unesp, discordando de uma posição de certo advogado ligado ao MST, chegou a afirmar que era um dever patriótico denunciar o Brasil nas instâncias internacionais!
Se ainda assim é hoje, muito mais o era no passado recente. Comecei desta forma um artigo sobre a ditadura militar que apresentei neste último abril no Arquivo Público do Rio Grande do Sul, que será publicado proximamente em livro:

Do golpe militar em 1964 até a entrega da presidência a um político civil, José Sarney, em 1985, houve uma preocupação oficial de se reiterar que o Estado brasileiro vivia em regime democrático, que o golpe teria sido uma revolução e que os direitos humanos eram respeitados.
Esse discurso oficial era dirigido ao público interno e também ao externo. A censura dos meios de comunicação servia para controlar as informações disponíveis para a população brasileira no país, mas como controlar a opinião pública no estrangeiro, principalmente depois de os exilados divulgarem suas experiências da repressão política no Brasil? O discurso de que o Regime Militar respeitaria a democracia e os direitos humanos não resistiria a uma mínima fiscalização internacional. Porém, ele era necessário para que a legitimidade do governo não fosse questionada nos planos externo e interno.
O direito internacional dos direitos humanos, portanto, era perigoso para a ditadura: não só ele ensejaria a fiscalização internacional, de fora para dentro (com a atuação de órgãos internacionais para verificar a efetividade desses direitos no Brasil), como permitiria ações legais de dentro para fora (com o acesso dos indivíduos às instâncias internacionais para denunciar e processar o Estado brasileiro).
Dessa forma, em 1966, ano em que a Organização das Nações Unidas (ONU) celebrava dois grandes tratados de direitos humanos (o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos e Sociais), o Brasil, sob ditadura, manteve-se alheio a ambos. O mesmo ocorreu com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica), de 1969. O Estado brasileiro somente os ratificou em 1992.
Em termos jurídicos, foi adotada uma posição isolacionista em relação ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, com o pretexto de proteção à soberania nacional. Na jurisprudência desse período, que não é o tema deste trabalho, esta postura manteve-se por meio de um provincianismo constitucional, isto é, o afastamento de fontes e de influências do direito internacional e do direito estrangeiro.
O objeto desta pesquisa corresponde ao discurso isolacionista que está presente nos documentos oficiais produzidos pelo regime, alguns confidenciais (atas do Conselho de Segurança Nacional), alguns reservados (presentes no acervo do DEOPS/SP). Esses documentos demonstram a finalidade deceptiva desse isolacionismo. A decepção, em termos estratégicos, corresponde à manipulação da informação para enganar o inimigo; por esse motivo, o controle dos meios de comunicação e a propaganda oficial eram tão vitais para a ditadura.

Quando pensei em chamar essa orientação política de isolacionismo deceptivo, já tinha lido diversos documentos que a mostravam em ação. E denúncias, que vinham do Brasil e do exterior.

Escrevi neste mês sobre o ex-deputado federal pelo MDB Hélio Navarro, que foi o único parlamentar cassado pelo AI 5 que chegou a cumprir pena no Presídio Tirandentes. Enquanto estava preso, tentou mandar uma carta denunciando as condições suas e dos outros presos políticos para a ONU, o Vaticano e à Cruz Vermelha, entre outros destinatários.
Vejam na imagem (o documento está no Arquivo Público do Estado de São Paulo) que a carta, escrita em papel da Câmara dos Deputados, foi apreendida na prisão.
A tentativa de chamar a atenção da opinião pública internacional ocorreu em um momento em que o governo Médici esforçava-se em impedir qualquer fiscalização internacional no campo dos direitos humanos e, simultaneamente, afirmar que não havia tortura no país (esse esforço conjunto representa o isolacionismo deceptivo).
Entre as denúncias, encontramos esta passagem de caráter legal:

Mantidos em regime de incomunicabilidade relativa, quase todos os direitos a nós assegurados pelos tratados internacionais, de que o Brasil é signatário, pela Carta Constitucional vigente, pela Lei de Prisão Especial (decreto nº 38.016, de 5.10.1955) são infringidos pelas autoridades responsáveis por nossa custódia. Os advogados de defesa não se entrevistam livremente com seus constituintes [...]

A carta, de 4 de janeiro de 1970, denunciava outros problemas, que incluíam comida podre para os presos e falta de assepsia nas celas. A ditadura tinha muita roupa suja, mas não a limpava nem mesmo em sua casa mais característica, o presídio.

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