O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Desbloqueando a cidade IV: eleição do Conselho Municipal de Habitação de São Paulo


Escrevi no mês passado sobre a manobra que a Prefeitura de São Paulo resolveu fazer decolar no Conselho Municipal de Habitação (CMH): restringir o direito de voto, exigindo pré-cadastramento em um período curtíssimo de três dias. O raciocínio parece ser este: quando menos eleitores, menos popular será o futuro Conselho, que trabalhará no estratégico ano que vem. Em 2012, teremos um ano que será eleitoral para os Municípios e eleitoreiro para os prefeitos.

[Nota: a eleição foi suspensa: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2011/12/desbloqueando-cidade-v-eleicao-adiada.html]

Não sei se a manobra da prefeitura de Kassab decolou, eis que houve um esforço de cadastramento. A eleição será no dia quatro de dezembro, próximo domingo. Para quem tem dúvida em que chapa votar, recebi a seguinte mensagem do militante da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMMSP), advogado e conselheiro do CMH, Benedito Barbosa:

Dia 4/12 - Vote Chapa Unidade Popular
CMH SP N° 88


Leve documento com foto - RG

Neste dia 04 de dezembro das 8 as 17 horas nas Subprefeituras ocorrerá eleição do Conselho Municipal de Habitação - CMH SP. Participe!!

Vote 88

em defesa do mutirão com autogestão
em defesa da moradia na area area central
contra os despejos e remoções
em defesa da moradia para pessoa idosa
em defesa da moradia para mulheres chefes de familia
em defesa da regularização fundiaria
em defesa da urbanização de favelas
em defessa da recuperação e regularização dos conjuntos
por acesso a terra urbanizada e financiamento para moradia digna

Contatos e informações 36672309 - UMMSP

Veja que se trata de bandeiras não exatamente (ou nem um pouco) defendidas pela atual gestão municipal, o que é mais um sinal da importância da representação popular nesses órgãos.
O Estatuto da Cidade (lei 10257 de 2001), que completou dez anos, tenta expressar o princípio democrático e diversas vezes refere-se à participação popular. Ela será tão mais efetiva quanto mais organizada. Como diretriz geral da política urbana, encontramos, no artigo segundo, esta previsão: "II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;"
Trata-se de uma exigência constitucional. A relativa decepção desta primeira década de experiência do Estatuto da Cidade decorre, em parte, da timidez ou, de acordo com o Município, da inexistência dessa participação. Não basta que ela esteja prevista em lei: é preciso que esse direito decorra da prática.
No entanto, ele abriu um canal, que se deve explorar, e que antes estava, em geral, fechado. Lembro do antigo GEAP, Grupo Executivo de Assentamentos Populares, do Município do Rio de Janeiro, criado em 1993. Ele havia sido previsto pelo Decreto n. 12205 de 13 de agosto de 1993; nele, dispunha-se que o futuro estatuto regulamentaria a participação popular no órgão. Isso ocorreu no primeiro governo de Cesar Maia, que criou, no ano seguinte, a Secretaria Municipal de Habitação.
Alguns programas habitacionais foram planejados pelo GEAP, dos quais o mais famoso ficou sendo o Favela-Bairro, que foi financiado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A Prefeitura cumpriu todas as exigências legais do BID.
O mesmo não ocorreu no tocante às exigências para com a população: o Prefeito (e seu sucessor, Luiz Paulo Conde) jamais editou aquele estatuto, pelo que a participação popular na formulação das políticas de habitação ficou impedida pela falta de regulamentação - velho truque dos legisladores que gostam de prever o direito de forma que ele não possa ser exercido.
No próximo dia 4, há um direito a exercer no Município de São Paulo. Essa é uma das práticas de que depende a cidade.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Alberto Pimenta, tortura, estupro e assassinato: a Indulgência plenária


Esta resenha foi publicada no número 16 deK Jornal de Crítica, em 2007, e não estava mais disponível. O livro é fantástico.



“Extravagante e viajado estrangeiro daqui e de todo lugar”: Indulgência Plenária de Alberto Pimenta


Pádua Fernandes

Na cidade do Porto, em fevereiro de 2006, após três dias de tortura e violência sexual, um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José) ponderou se o fogo não seria a melhor maneira de se livrar do corpo. Contudo, decidiu por outro elemento: a vítima foi lançada em um poço de mais de 10 metros de profundidade, onde morreu afogada. O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada.
A vítima, Gisberta Salce Júnior, era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Ou seja, segundo a tradição fascista portuguesa, uma não-pessoa. Sobre o bárbaro caso, Alberto Pimenta escreveu um importante poema longo: Indulgência Plenária (Lisboa: &etc, 2007).1 A capa da obra sugere um rasgão sob o quadro (parte de um tríptico de Emil Nolde), que mostra uma mulher de seios nus diante de três homens aparentemente embriagados.
Após todo um livro sobre um crime internacional (Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, resenhado em K 3), Pimenta voltou seus olhos para esse delito português (revelador do tratamento que a União Européia dedica aos “extracomunitários”) e escreveu uma elegia em cinco partes.2 Como o anterior, temos aqui um texto de intervenção. Bem escreveu Manuel de Freitas em resenha, "Não fosse um livro como este, com o seu raro poder de corrosão e de denúncia, e Gisberta Salce esperaria a sua segunda e definitiva morte – o esquecimento – tão indefesa como esteve perante o horror da primeira."3
Na primeira parte do poema, lemos o encontro do poeta com Gisberta em um mictório, mediado por um animal psicompopo (intermediário entre os vivos e os mortos), a mosca. A cirurgia de mudança de sexo é referida. A invocação anímica se dá em um ambiente não edificante – não se trata da emulação do modelo da elegia clássica, ao contrário de Antinous de Fernando Pessoa.
A segunda parte aborda a prostituição e apresenta o nome de Gisberta. A terceira faz-nos conhecer o sobrenome – que levará ao belo final – e menciona os assassinos, sem realmente os caracterizar: o autor não tenta descrever o crime e o julgamento. O poema não é dramático, e sim reflexivo, com meditações sobre o corpo e a finitude. Nisso, ele tem muito em comum com Imitação de Ovídio, o penúltimo livro de Pimenta (também resenhado em K , no número 3).
A quarta parte alude à doença e à situação ilegal em Portugal. Na quinta e última, temos a retomada dos motivos anteriores – a mosca, a doença, a ilegalidade, o assassinato, num movimento cada vez mais intertextual: a voz de Pimenta busca dar lugar à de Gisberta – mas não a pode mais encontrar: “tira-me daqui não sei se foste tu que disseste/ não mexeste os lábios// nem sei se poderias continuar/ as tuas trocas/ os teus desejos/ entre os habitantes dos mundos invisíveis” (p. 54). Pimenta vai-se substituindo por outras vozes, o que inclui excertos de ópera (na página 49, o Judiciário é comparado aos cortesãos, segundo a furiosa ária de Rigoletto na ópera homônima de Verdi) e culmina no trecho final, que é a reprodução de um trecho do Otelo de Shakespeare: a Canção do Salgueiro (Salce, em italiano), que antecede o assassinato de Desdêmona.
A quarta parte já terminava com o seu apelo desesperado para que Otelo somente a matasse no dia seguinte. Avançando no livro, e recuando na peça, optou-se não pelo grito, mas pela canção que a personagem entoa para silenciar o pressentimento da morte: “If I court moe women, you’ll couch with moe men.” E assim é, no silêncio de Pimenta, reencenada a morte de Gisberta.
Indulgência plenária realiza uma espécie de monumentalização da figura de Gisberta Salce, que se torna um “monumento aos tempos presentes” (p. 17), caído, portanto, e comparado a uma estátua de “braço decepado” em Toulouse, “de que nenhum funcionário sabe ou pode/ dizer nada” (p. 18). Gisberta se torna uma sacerdotisa da lua (a ária Casta diva, da ópera Norma, de Bellini, é citada na página 53), de quem se diz: “rodava o universo/ preso entre a Alavanca das tuas pernas” (p. 13).
Como de se esperar num livro de Pimenta, o poema é contrário ao Cristianismo (“Mas por que não tinhas tu um cão da raça trifauce/ que trespassasse as outras trindades”, p. 15), à hipocrisia (sobre Porto lemos: “uma Terra de melómanos/ com casas de putas e de música/ não perdoa”, p. 42) e ao fascismo (“mas não conhecias as muralhas/ que te encarceravam/ nem os graffiti suásticos/ que as cobriam”, p. 32).
No percurso do poema, do encontro de Pimenta com Gisberta até o silêncio de ambos, encontramos pedras-de-toque, como esta revisão de Platão: “Não tinhas uma direcção fixa/ porque isso são olhos dentro duma Cela/ Sempre a espreitar pelo buraco/ à procura da luz oficial que é autorizada a entrar” (p. 24). Dessa luz oficial foge um estrangeiro como Gisberta, estrangeira lá, mas também no Brasil – o que remete ao verso de Shakespeare citado no título. O preconceito racial, que seguiu Otelo (ele também é vítima na peça), no caso da brasileira encontra paralelo na discriminação em razão do gênero, a qual a tornou estrangeira em mais de um sentido e a levou à clandestinidade.
Essa morte, de caráter social, preparou o caminho da morte física: “Nesse inóspito lugar/ com essa entretanto nova Rica e desleal cidade/ não há relação possível” (p. 48).



Notas
1 - Note-se a ironia do título: indulgência plenária é o nome de um perdão a penas temporais, se os pecados já foram remitidos, concedido pela Igreja Católica.
2 - A aproximação entre os dois livros foi feita pelo próprio poeta, que, em 26 de maio de 2007, no Teatro Acadêmico Gil Vicente, leu ambos em um espetáculo a que deu o nome “Pequenos Estragos”. A leitura foi precedida de uma fala sobre “Poesia e violência”, por ele assim anunciada: “Alberto Pimenta é um daqueles poetas que levam muito a sério e agradecem a tolerância que Aristóteles lhes concede através da permissão de desvios da norma que ele normativamente fixa na Retórica e na Poética. Assim, considera-se um ‘tolerado’, no mesmíssimo sentido do termo administrativo com que eram designadas as prostitutas em Portugal até cerca de meados do século XX. Continuando o raciocínio, e da mesma maneira que não há mestres ou políticos iguais, separa os poetas em duas categorias: os tolerantes e os tolerados.
Na 1a Parte do serão, A.P. vai tratar o tema «Poesia e Violência», a partir da sua perspectiva de tolerado, portanto sem a mais mínima espécie de tolerância.” (http://dupond.ci.uc.pt/tagv/evento.asp?evtid=993)
3 - Casta morte. O Público, Lisboa, 16 de junho de 2007.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Algo como um poema: a construção de uma usina hidrelétrica





Do meu próximo livro de poesia, Cálcio, esta pequena prévia em homenagem às vitórias de hoje do governo federal e seus aliados.








Monumento e passagem



I

Na amnésia da cidade
o memorial das vítimas;

incontáveis tijolos foram empregados
para que não se erguesse o memorial – todos
sobre as vítimas.

( – Tive um sonho em que o cimento falava.
– Os subversivos infiltram-se em tudo.)


II

Ama as latas de tinta
porque elas não têm memória
e institui o memorial das vítimas
apagando das paredes
as inscrições dos prisioneiros;

as inscrições poderiam ter erguido uma outra cidade.


III

Substituir a história pelo monumento,
a primeira medida oficial
depois do massacre.

( – O cimento nutre, o sonho desgasta...
– Avisei que não há desabamento que termine.)


IV

Calcular o superfaturamento per capita na compra das botas fardadas com o novo design da memória do continente;
Anotar os números dos calçados e cruzar com o logaritmo dos paraísos fiscais;
O trabalho está incompleto: é preciso considerar a grandeza dos grãos de poeira sob as becas dos magistrados;
Contar nos dedos mutilados as garrafas de champanhe dos subversivos cooptados;
Dividir pelo número de penas dos cocares que sobraram de souvenir das viagens ao museu de história natural;
Elevar à potência dos jornais usados para engraxar as botas jamais limpas;
Teremos, enfim, o número da função das vítimas.
– Memória, coisa que suja.


V

– Elas queriam o choque;
logo, pintar com eletricidade
o retrato das vítimas.

– Não é possível reconhecê-las.

(– Onde está o memorial das vítimas?
– Onde quiser, basta consagrar uma nova.)

– Deixar que a eletricidade esboce o que bem
entender, de qualquer forma
pouco lembramos das vítimas,
seu número exato jamais foi determinado;

– É inútil reconhecê-las, se já são homenageadas.

(– Onde está o memorial das vítimas?
– Nunca houve nada disso. As ruas bastam.)

– Na ampla área em que supostamente foram enterradas,
as vítimas,
já foi autorizada a construção de uma usina hidrelétrica.

Luz em toda a região;
agora sim começamos a conhecer as vítimas.


VI

Pode anotar.
Você vai perder de qualquer jeito.

o alimento que traz,
entrega para a fome,
as bocas não o recebem


– Não sei o nome dos ossos, conheço-os pelo ponto em que fraturam. Falo com eles sem os roer, destruir a cela aumenta a pena.

Pode anotar.
Ninguém mais sabe ler.

o alimento que prepara,
o recheio é a fome


– O ponto de fratura é a seção áurea do corpo. Tenho que calá-lo, mas não como humano, e sim como um ser que pode falar.

Anote, anote.
posts, não há mais discursos.

nenhum alimento bastará,
é a fome quem vai comer


– O amor do soco pela carne responde-se variadamente. Alguns ossos preferem partir-se ao meio, em outros a extremidade é, com efeito, o ponto extremo. Falo não como prisioneiro, mas como alguém que sobreviverá.

Pode anotar.
Somente seria fidedigno se você escrevesse em branco.

Aqui era um restaurante popular. Mas temos que pensar no futuro. Quando inauguro creches já penso em cemitérios. Tínhamos o prédio conjugando restaurante popular e presídio. Economia das instalações. O Estado acolhe todos em sua boca imensa. Assim a gente evita greve de fome. Gente primitiva não quer o progresso nem empreiteiras. Aqui nenhum cidadão de verdade foi espancado por causa disso.
Não era este o discurso. Perdoem. Achei: aqui era um restaurante popular. Hoje, inauguramos esta demolição.
Preparamos o futuro.


VII

8º arcano ou a gangrena: quando eles chegavam, brincávamos de adivinhar-lhes o futuro; quanto tempo ficariam aqui, se seriam processados, se condenados sem serem processados, se executados sem serem condenados, por quanto tempo condenados, por quanto tempo executados etc.; até que descobrimos que se lhes podia ler o futuro nas escoriações, num tipo de tanatomancia; alguns de nós adivinhavam os números da loteria pelas marcas no corpo e multiplicavam os golpes para a proliferação dos prêmios; outros só queriam ver o destino desses que chegavam, porém o método mais seguro para isso era a leitura de vísceras, que eram retiradas, lavadas e secas, para que o visceromante revelasse o futuro do antigo proprietário dos órgãos em questão; outros queriam ver além do destino pessoal e dedicavam-se à previsão do bem público e da segurança de todas as garantias sociais; no entanto, para descobrir o futuro do país, somente a pele deveria ser lida, por isso ela passou a ser retirada logo no ingresso nesta instituição, veja que a penduramos em varais para que, à meia-noite, os melhores de nós leiam o que dizem as estrelas vistas através da constelação de feridas.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz

No mesmo antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008) em que saiu minha resenha de livro de Alex Ross, publiquei outra, sobre o primeiro disco totalmente voltado para a música de Silvio Ferraz, compositor que aprecio e conheço pessoalmente há poucos anos - mas cuja música me alcançou no início do anos 1990. O disco foi gravado com apoio do SESC.


Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz


A música de câmara, por definição, destina-se à execução em âmbitos mais privados. A comemoração pública da queda do muro de Berlim não foi realizada com uma execução, digamos, do último quarteto de cordas de Beethoven, o opus 135, e sim com esta grande declaração pública iluminista que é a Sinfonia n.o 9.
Daí não se segue, porém, que toda música de câmara construa um universo equivalente ao da esfera privada, tampouco que toda música sinfônica elabore algo que possa ser comparado à esfera pública (pense-se no subjetivismo programático deste exemplo da música romântica, a Sinfonia fantástica, de Berlioz). O caráter elusivo, próprio da música, torna problemática essa diferenciação em várias obras.
Caixas, casas vazias, casas tomadas, quartos. A construção sonora de um universo privado é explicitamente reivindicada, porém, em Trópico das repetições, primeiro disco totalmente dedicado à obra do compositor paulista Silvio Ferraz. Com os músicos Lídia Bazarian (piano), Cássia Carrascoza (flauta), Luís Afonso Montanha (clarinete), Fábio Presgrave (violoncelo) e o próprio compositor na eletrônica, o disco inclui obras terminadas entre 1990 (Trópico das repetições) e 2007 (Tríptico das linhas).
Há anos, um lirismo intenso percorre esse universo privado; pode-se ainda reconhecer o compositor de ...enquanto corre o rio das onças... (peça de 1985, gravada por Graham Griffiths, então regente do grupo Novo Horizonte, em disco de 1993, brasil!
new music!) no Tríptico das casas.
Paulo Zuben, no texto de encarte do disco, destaca as interrupções na melodia de Cortázar (quarto com caixa vazia), “um pouco ofegantes”, e no solo de violoncelo Lamento quase mudo; creio que a interrupção pode ser considerada um princípio construtivo em mais de uma obra de Silvio Ferraz, como Les silences d’un étrange jardin, em que o uso expressivo da respiração, cortando o discurso da flauta, corrobora esse efeito.
Se boa parte das composições do autor de Linha torta e Linha solta (não incluídas neste disco) podem ser comparadas a uma linha interrompida, as referências a outros compositores (como Bach, Beethoven, Vivaldi) também são submetidas a esse processo: elas são interrompidas e reconstruídas para se transformar em outro desenho.
A ária da ópera Farnace, de Vivaldi, "Gelido in ogni vena", mal pode ser reconhecida em Tríptico das casas. O drama de Farnace, rei do Ponto, que usa o tema do Inverno das Quatro estações, é submetido ao universo privado da memória, e refeito noutra configuração, mais íntima.
Zuben destaca a importância dos carros de boi nessa peça e em Lamento quase mudo. Nesses dois casos, pode-se repetir o
que o próprio compositor escreveu sobre Ao encalço do boi, peça gravada em Duos e trios contemporâneos por Luís Eugênio Montanha e Carlos Tarcha: não se trata de peças nacionalistas, mas de lembranças afetivas reconstruídas.1
No disco, pode-se confirmar que o compositor, embora esteja ligado há muito à música eletrônica, não trata a tecnologia como fetiche: Poucas linhas de Ana Cristina e Cortázar ou quarto com caixa vazia podem ou não ser interpretadas em versões eletroacústicas. O disco oferece as duas versões de Cortázar (as duas sustentam-se musicalmente, sem se anular) e a eletroacústica de Poucas linhas, peça para clarinete, de notável intensidade.
É interessante notar que essa música parece ser uma referência a Ana Cristina Cesar, poeta que se notabilizou pela reconstrução ficcional da intimidade, característica presente também na poética de Silvio Ferraz.
Tanto na peça relativa a Ana Cristina Cesar quanto na que evoca Cortázar, não há ilustração a textos desses autores, nem biografismos: a obra constrói sua própria realidade. Senão, seria música funcional e o compositor estaria a ganhar milhões no cinema. Outra é a vocação desta música:

Desenhar um lugar e ter a música como sendo a pequena história deste lugar, ora se desenhando, ora se desfazendo, ora invadido por outro, ora contracenando com outro. Nada mais.2


Notas
1 Por sinal, não estamos mais na época em que o valor de uma obra era julgado por seu nacionalismo, o que levou a Mario de Andrade, por exemplo, a ratificar o repúdio da União Soviética às obras de Stravinsky e Kandinsky (como lembra Paulo César do Amorim Chagas em Luciano Gallet via Mário de Andrade, Rio de Janeiro: Funarte, 1979, p. 81).
Silvio Ferraz, felizmente, surgiu após as querelas dos nacionalistas. Veja-se que o próprio caráter brasileiro da música de Villa-Lobos, por exemplo, foi criado com influência estrangeira, como Stravinsky.
2 FERRAZ, Silvio. Tatuagens. In: FERRAZ, S.(org.) Notas, Atos, Gestos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 116.

Senseless ears: a música do século XX segundo Alex Ross

Em antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008), não mais disponível, publiquei a resenha abaixo do livrinho etnocêntrico e equivocado de Alex Ross, que depois foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras como O resto é silêncio. O incauto crítico foi para a FLIP e foi obrigado a desdizer-se pelo público, segundo li na imprensa.
Lançaram mais um livro dele, também no Brasil, mas não tive curiosidade para ler. Hoje, acrescentaria à resenha que Villa-Lobos disse anos antes de John Cage que Beethoven estava errado.


Senseless ears: a música do século XX segundo Alex Ross

Pádua Fernandes
The rest is noise: Listening to the twentieth century (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2007), primeiro livro de Alex Ross, crítico de música da revista The New Yorker, apresenta no prefácio uma larga ambição: “My subtitle is meant literally: this is the twentieth century heard through its music.” (p. XIII). Não se trataria, pois, de uma simples história
da música (clássica) do século XX, porém do século que essa música criou.
Para tanto, o autor afirma rejeitar narrativas teleológicas que favorecem as vanguardas e combatem a burguesia filistina. Elas seriam comuns nas histórias da música escritas no século XX. Fiel a esse propósito, as referências no livro a Adorno (pensador com evidente parti pris pela Segunda Escola de Viena e explícita condenação de Stravinsky e do neoclassicismo) são, em geral, ácidas. O retrato de Pierre Boulez tampouco é favorável.
A escrita do livro é muito fluente, com algumas alusões literárias1 como “If The Turn of Screw is the most comprehensively disturbing of Britten’s operas, A Midsummer Night’s Dream makes amends.” (p. 433), em que a fala final de Puck em Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare (o título deste livro, deve-se lembrar, alude a uma célebre fala de Hamlet, “The rest is silence.”) é ecoada na referência à ópera que Benjamin Britten escreveu a partir dessa comédia.
O livro divide-se em três partes: 1900-1933, 1933-1945 e 1945-2000. Os capítulos são temáticos, como “Doctor Faust: Schoenberg, Debussy and Atonality”, “Death Fugue: Music in Hitler’s Germany”, “Beethoven Was Wrong: Bop, Rock and the Minimalists”. Há dois capítulos, porém, dedicados a um só compositor; Sibelius e Britten são os galardoados. A estrutura, cuja lógica é quebrada por esses dois capítulos, faz-nos recordar que partes do livro foram publicadas anteriormente em The New Yorker.
Estranha-se, porém que logo Sibelius e Britten, que estão longe de ser os compositores centrais no século XX, seja pela influência, seja pela posteridade de suas obras, recebam tal destaque no livro. Como figura nacional, afirma Ross, Britten era um pouco como Sibelius (p. 411), que recebe o maior destaque: ele teria sido, entre os compositores, o único, ao lado de Morton Feldman (cuja música é tão diferente...), que se separou de forma imperturbável de sua época (p. 488) – e que o seu tempo enfim teria chegado (p. 526). Além disso, segundo Feldman, Sibelius seria um radical, não um conservador (p. 177)!
O estranhamento pouco dura: a opção pela tonalidade, o paroquialismo (Ross aprecia o nacionalismo) e o uso das formas clássicas (p. 413) são os fatores que o levam a advogar por esses compositores.
No capítulo “Doctor Faust: Schoenberg, Debussy and Atonality”, o parti pris contra Schönberg e a música que Ross considera complicada leva-o a aproximar o compositor austríaco dos nazistas (p. 322) e a adotar uma visão simplista que assimila Schönberg a Adrian Leverkühn, o personagem do compositor sifilítico que fez um pacto com o Diabo no romance de Thomas Mann. A vanguarda musical seria efeito de pactos demoníacos que acabaram por distanciar a música do povo. Esse viés moralista transparece também na crítica de que A sagração da primavera não conteria “piedade”, endossada por Ross (p. 93). Em uma das imprecisões do livro, Otto Klemperer, quando jovem, é caracterizado apenas por ter-se especializado em “subversive productions of classic repertory” (p. 181). Dessa forma, negligencia-se a relação intensa que o maestro manteve com os compositores do seu tempo, inclusive Schönberg.2
Repete-se, em um dos erros factuais do livro, a lenda de que John Cage teria sido o primeiro a escrever uma peça musical feita só de pausas (p. 369). Ervin Schulhoff foi um dos que antecedeu, em 1919, durante sua fase dadaísta na peça In futurum das 5 Pittoresken.3 Contudo, esse compositor judeu e marxista, assassinado pelos nazistas no campo de concentração de Wülzburg, não conta com um serviço de relações públicas comparável ao do compositor estadunidense.
Esse erro, por sinal, é apenas parte da hipertrófica sobrevalorização da música clássica dos Estados Unidos, que acaba por confinar o livro a um lamentável provincianismo.
Decerto o livro lembra das grandes limitações que a música clássica sofria nesse país, com a limitação do repertório a tão-só 50 obras-primas cuja vendagem era mais fácil (p. 265), bem como a invisibilidade dos compositores americanos (p. 123-124). Porém, é flagrante o triunfalismo na marcha do livro até a música de Morton Feldman, Steve Reich (que é comparado a Wagner, p. 511) e John Adams, compositores que merecem largo espaço no livro.
Villa-Lobos, compositor que deixa à sombra os tão incensados, neste livro, músicos estadunidenses Barber e Copland, ganha quase nove linhas por conta de um trecho sobre Milhaud (p.101 e 103). A América Latina, por sinal, afora o México (NAFTA oblige), soa no livro como uma invenção desse compositor francês. Entre os argentinos, o livro destaca Osvaldo Golijov (eis que se encaixa na tese do livro da aproximação entre música clássica e popular no fim do século XX) e ignora Ginastera.
O autor trai, portanto, as duas premissas anunciadas no prefácio: o século XX que lemos neste livro está extremamente mutilado devido ao etnocentrismo, e há uma teleologia presente: a da predestinação dos EUA, a de que o século XX teria que ser dominado por esse país. Pobres tempos, que, para não fugir das alusões a Hamlet, talvez dissessem deste livro “The ears are senseless that should give us hearing”.

Notas

1 O autor, porém, erra a história da ópera Daphne de Richard Strauss (p. 330), talvez por desconhecimento do mito grego que a inspirou.
2 Se é verdade que Klemperer não se sentia próximo da música dodecafônica de Schönberg (embora tivesse estreado Música para acompanhamento de um filme – ver HEYWORTH, Peter, Otto Klemperer: His life and times, Cambridge: University Press, vol. I, p. 328) e teria evitado obras que julgava difíceis, isso ocorreu soment em parte com o repertório de Stravinsky, de quem nunca regeu, por exemplo, A sagração da primavera. Ross, mais adiante, lembra que Klemperer regeu obras do compositor russo e de Hindemith (p. 327).
3 Alex Ross poderia ter pesquisado a respeito na própria revista The New Yorker, edição de 24 de maio de 2004.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Alberto Pimenta na tevê e a liberdade dos afetos




Pude recentemente assistir ao programa da emissora portuguesa de tevê RTP "O Portugal de... Alberto Pimenta", de 2006, em que o autor foi entrevistado por Rui Ramos.
A RTP, em 1978, havia transmitido o programa "A arte de ser português", do próprio poeta, que muita polêmica gerou na época. Nas fotos, temos o poeta nesses dois momentos.
No programa de 2006, ele inicialmente reluta em dar sua visão de Portugal, afirmando que irá magoar a todos, inclusive o procurador-geral da república. E afirma que já tinha sido muito insultado na época de "A arte de ser português". Vemos então um trecho de 1978, em que ele atende ao telefonema de um telespectador (cuja voz não ouvimos), que o chama, entre outras coisas, de "marxista" e de "desestabilizador" - mas só esta última qualificação, naturalmente, ele toma como insulto, pois parece nome de peça de automóvel...
Por que ofenderia a todos? Ele acaba logo dando sua visão: para ele, Portugal é um país "igualzinho" (não igual, faz notar) a todos. Nisso, ele discordaria de quase todos os seus compatriotas, que em geral, ou acham que é o melhor país do mundo, ou o pior!
Na época de Camões, Portugal, Pimenta explica, era a cabeça da Europa; para Fernando Pessoa, os olhos; hoje, dizem que é a cauda, "em casa dizem que é o rabo".
Porém, mesmo os que consideram Portugal o último país, compartilham do mesmo complexo dos que querem vê-lo como primeiro (e Pimenta lembra que, ao contrário do que era ensinado na faculdade de direito de Coimbra, não foi o pioneiro na abolição da pena de morte): sempre querem um lugar de destaque, o que se deve a compensações pessoais...
Portugal é "igualzinho" aos outros: tem águas territoriais, tem isso, tem aquilo, maternidades, cemitérios - e então Pimenta dá mais uma ideia para os políticos do país:

Era uma belíssima ideia juntar, fazer dos jardins das maternidades os cemitérios. Apanhava a vida em seu sentido total, não é mesmo? Os cemitérios são uns dos lugares mais agradáveis neste país para passear. São os únicos lugares limpos, são muito sossegados, são serenos.
Não tem aquela coisa que a outros portugueses incomoda tanto que é os namorados a beijarem-se. Isso é uma coisa que incomoda a muitos portugueses que é o afeto. O beijo, principalmente, se for intenso.

E passa a tratar da fata dos sentidos trágico e cômico entre os portugueses, que preferem a contenção e fazem da educação a amarra dos afetos. O que ele aconselha aos portugueses? "Viva e deixe viver." A liberdade dos afetos.
Em um país contra essa liberdade, houve três séculos de Inquisição, ou seja, três séculos de delação, com consequências duradouras em um país tão pequeno. Ainda hoje, os portugueses se sentiriam perseguidores ou perseguidos, e continuariam a ter uma sociedade do medo. Medo também do prazer.
Explica que, antes de sair de Portugal, falava-se "corrução". Quando voltou, em 1977, corrupção era a pronúncia estabelecida. Disse que isso deve ter vindo do francês e do inglês: "houve uma mudança no sentido. Veio o p, e está instalado no país..." Explica que, antes, gratificação e suborno eram duas coisas diferentes, "hoje estão todas unidas". Temos então o "p" de Portugual, "p" de corrupção, "p" de país.
Há muito mais. A entrevista, peripatética, feita em uma praça, deveria ser disponibilizada pela emissora na internet. Seria inspiradora também neste momento de crise em Portugal e na Europa.
"O meu Portugal é o da vida trivial, o Portugal que eu vejo, aquele em que vivo – e o que eu sou." Ouvimos esta última frase, mas não é o fim. Temos mais uma sequência de Pimenta em 1978, outro diálogo ao telefone. Só ouvimos a voz de Pimenta:
Não vi, não vi não. Não vejo televisão, não tenho aparelho. Quando tenho o que fazer, tenho o que fazer. E quanto não tenho o que fazer, tenho mais o que fazer do que ver televisão
Amaeçaram-no de morte? A esquerda? A esquerda ameaçou de morte pelo telefone? E matou?
A esquerda nunca cumpre.

E diz que são coisas sérias, mas se não brincarmos com elas, com o que haveremos de brincar?