O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Desbloqueando a cidade VI: Cracolândia, Churrasco e Twitter

Já escrevi sobre o desastre jurídico, social, urbanístico, político que a administração Kassab prepara na Luz e sobre as reações da sociedade contra esse projeto. Mais protestos se preparam.
Ontem, dia doze de janeiro de 2012, em reunião de preparação do "churrascão diferenciado versão Cracolândia", foi combinado um "twittaço" para hoje, das 15 às 17 horas, com as etiquetas #LuznaCracolandia e #ChurrascaonaLuz.
Na reunião, falaram representantes de sindicatos, da universidade, pessoas em situação de rua... Diversas entidades e organizações estão a trabalhar em prol desse evento, entre elas o Coletivo DAR-Desentorpecendo a Razão.
Não é de estranhar que na capital do Estado de São Paulo, que foi governado pelo autointitulado melhor ministro da saúde que o país já teve, e está sendo novamente governado por certo médico, nesta capital mais um vez governada pelo ex-vice do soi disant melhor ministro da saúde, tenhamos este desastre que é a Cracolândia.
O uso de balas de borracha e bombas de efeito moral é o que se espera dessa conjugação de poderes que levou à entrega da cidade de São Paulo à polícia militar. Com Kassab, galhardamente reeleito, todas as subprefeituras, com exceção de uma, caíram nas mãos de coronéis da PM, o que logo faz ver uma opção pela criminalização da população e uma concepção do cidadão como inimigo.
Nesse escândalo, não há nada de muito novo. Voltamos às condições do higienismo que marcou os começos do urbanismo no Brasil e alhures.
Um dos marcos dessa concepção elitista da cidade como um organismo, que os pobres viriam sujar e contaminar, foi a grande reforma urbana no Rio de Janeiro, quando o Pereira Passos recebeu poderes ditatoriais do governo federal, governando com um Conselho Municipal sem atribuições e enriquecendo rapidamente.
Em crônica publicada em outubro de 1907, publicada em Kosmos (aconselho a edição das crônicas organizada por Alberto Dimas: Bilac, o jornalista), Olavo Bilac comentou a crise habitacional criada pelo urbanismo brasileiro:

Não há quem ignore que, com as demolições e reconstruções que o aformoseamento da cidade exigiu, houve no Rio uma verdadeira “crise de habitação”. O número de casas habitáveis diminuiu em geral, porque a reconstrução é morosa. Além disso, diminuiu especialmente, e de modo notável, o número de casas modestas, destinadas à moradia de gente pobre - porque, substituindo as ruas estreitas e humildes em que havia prédios pequenos e baratos, rasgaram-se as ruas largas e suntuosas, em que se edificaram palacetes elegantes e caros. E que fizeram os proprietários dos casebres e dos cochicholos que as picaretas demolidoras pouparam? Viram na agonia da gente pobre uma boa fonte de renda, e aumentaram o preço dos seus prédios. É uma crise completa e terrível [..]
Que há de fazer a gente pobre?
Se ao menos essa gente pudesse morar ao ar livre, sob o teto piedoso do céu, sob o pátio misericordioso das estrelas!.... [...]
Mas a polícia é feroz: a Lei manda considerar vagabundo todo o indivíduo que não tem domicílio certo, - e não quer saber se esse indivíduo tem ou não a probabilidade de arranjar qualquer domicílio.

Descontando o arroubo lírico de Bilac, que é o de alguém que não viveu nas ruas sob o teto das intempéries, a descrição é eloquente.
Esse urbanismo divorciado da noção de direitos sociais (como o direito à moradia) gerou crise de moradia. O urbanismo hoje, em São Paulo, continua com a mesma marca (ignorando também o direito à saúde, o que é escandaloso na Cracolândia) e o mesmo caráter lucrativo para os grupos que se apoderam das obras urbanas.
É auspicioso que a resposta seja tão bem humorada como um churrasco, que ocorrerá no dia 14 a partir das 16 horas. Sugiro que as notícias concernentes sejam acompanhadas por meio deste blogue, Luz Livre.

P.S.: O churrasco ocorrerá na esquina de Rua Helvetia com Dino Bueno.

2 comentários:

  1. Pois é Pádua, acabei de chegar do churrasco, a fila estava enorme, pois com a presença das comissões dos direitos humanos, as pessoas uruárias de drogas retornaram à Rua Helvétia sem medo da repressão produzida pela policia de São Paulo, a mando de nosso Prefeito. A experiência, embora breve, foi intensa. Logo que cheguei um senhor cadeirante me pediu que o levasse ate o local do churrasco, quando lá chegamos, ele viu que era linguiça e disse que não poderia comer carne de porco, por problemas na sua perna, então pediu que eu retornasse e foi me orientando, quando percebi estava no meio da distribuição da droga. Depois fui abordada por Wanessa, moça de uns 28 anos, sorridente, me pediu para apresentar sua poesia e escreveu: "A vida é a arte dos encontros, embora haja muitos desencontros nesta vida" outro "Só posso dizer sobre o que vi, vivi ou apenas ouvi, mas nem tudo que vi, vivi muito menos ouvi posso sair dizendo por ai". Me contou que é formada em mercadologia e terminou contando que seu filho Kayan faz 3 anos e me convidou para a festa de seu aniversário que será amanha num predio de ocupação nas proximidades. Andando mais um pouco vi Caio de 11 anos pegar um megafone e falar: "Sou Caio, preciso de um tenis, muuiita roupa e muuuuuuuito cuidado". Enquanto outras crianças ganhavam brinquedos ou simplesmente pintavam em uma cartolina caricaturas de suas vidas! Saindo de lá ouvi um morador de rua (não usuário) com sua filha num velocípede, dava entrevista e contava que na madrugada a polícia retorna e forja apreensões de drogas com jovens menores de 18 anos e os prende por tráfico.
    Não quero poetizar, mas quem falou de crack mesmo? É, a cracolândia é muito mais que o uso de drogas.

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  2. Prezada Joana d'Arc,
    obrigado pelo seu relato. Essa moça que é poeta, pelo que escreveu, deve amar Vinicius de Morais, para quem a vida era a arte do encontro.
    Concordo plenamente que "a cracolândia é muito mais que o uso de drogas"; reduzi-la isso interessa apenas a quem acha que repressão e segregação bastam.
    Outro problema é que a droga não é simplesmente uma questão policial, e não é apenas uma questão de saúde, mas algo que se articula com as outras dimensões da vida urbana. Qualquer intervenção que seja feita na região tem que partir, desde sua concepção, do objetivo de articular essas duas dimensões que mencionei com as de moradia, de educação, de emprego, de meio ambiente...
    Temo, porém, que, mesmo que a administração de Kassab quisesse fazê-lo, não teria a competência técnica para tanto.
    Abraços, Pádua.

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