Em 2012, estive na Argentina, o que é sempre uma oportunidade para atualizar-se com sua literatura. A viagem me inspirou duas pequeníssimas séries de poemas traduzidos:
Argentina I: http://opalcoeomundo.blogspot.com.ar/2012/07/antologia-de-viagem-argentina.html
Argentina II: http://opalcoeomundo.blogspot.com.ar/2012/07/antologia-de-viagem-argentina-ii.html
Tento agora mais uma, apesar de meus modestos talentos para a tradução, uma vez que o meio editorial brasileiro não tem sido muito generoso com a poesia argentina contemporânea - já não o é com a brasileira!
Começo, naturalmente, com Julián Axat, pois uma das razões da viagem foi o lançamento do seu mais novo livro (http://opalcoeomundo.blogspot.com.ar/2013/05/edicao-argentina-de-calcio-e-lancamento.html).
As histórias de musulmán o biopoética dizem respeito a menores vítimas de violência; escolhi, porém, um poema que, apesar de aparentemente não tratar do assunto (a referência explícita é a Paul Celan), dele nasce, o que é revelado na segunda parte do livro, "Passagens em espelho", em que, benjaminiamente, Axat expõe sua fábrica poética, trazendo, "torcidos", recortados, os materiais textuais de que compôs os poemas da primeira parte, "Mal sobre ruínas do bem".
Incluí os poucos livros que consegui ler na rápida viagem. O eu lírico que deambula no livro de Emiliano Cruz Luna; a poesia explicitamente spinoziana de Liliana Lukin em La Ética demostrada según el orden poético; a poesia de viagem de Carlos Aprea; e um longo e audaz poema em que se cruzam sexo e história, Nova Iorque e genocídio armênio, o impressionante Káukasos de Ana Arzoumanian; deste, traduzi apenas um fragmento.
Julián Axat (La Plata, 1976), musulmán o biopoética (La Plata, Libros de la talita dorada, 2013).
Mal sobre ruínas do bem
31. A poesia é / a boca
Ninguém /
testemunha /
pela Testemunha / ou
Ninguém
é poeta Testemunha
Ninguém testemunha?
Ninguém
testemunha
pela Testemunha
O poeta não?
O poeta Ninguém?
Paul Celan Ninguém?
A Testemunha é Ninguém
mas / é Testemunha
O poeta testemunha / logo
é Ninguém
Passagens em espelho (Bitácora)
31. a poesia é / a boca
... Você não sabe / você quer me defender / mas você não vive onde vivo / você come bem / se veste bem / você não é perseguido pela polícia o tempo inteiro / seus irmãos não são assassinados / você quer me defender / mas primeiro teria que saber as coisas que vivo / o que é viver da forma como meus filhos vivem numa fossa / e estão / expostos à morte / no dia-a-dia...
(Palavras pronunciadas por Romina, mãe do menor A.D, dirigidas a uma Assessora de Menores de La Plata, durante uma audiência judicial realizada em 8/10/2012)
... E sabe por quê? / Porque não têm outra saída / se o menor não faz nada / o agarram do mesmo jeito / e se está metido em algo / também... / então, é melhor estar, não?...
(Palavras pronunciadas por uma mãe tentando justificar seu filho durante uma audiência judicial. Registro em campo próprio. Realizada em 14/5/2010)
Emiliano Cruz Luna (San Justo, 1976), Desocupez (Buenos Aires: Ediciones del Dock, 2010).
Lenda do abismo nas colinas Mossman
Logo aconteceu, distanciando-se o navio não se distinguia;
mas ele ali sustentou seu obscuro humor humano.
A disgressão do rumo não é possível em um mundo sem pegadas,
a pátria não me espera, já ninguém tem
minhas lembranças, meu nome
pesa menos do que o ar sobre o céu.
Devo andar em outubro ou em sua luz falsa
a baía tende a fraturar-se
a comida já não faz falta
tenho frio
o vento é parte de meus ossos
trazendo-me a melodia da última palpitação
do voo último do pássaro do Adormecido.
Pássaro e voo nas mãos detenho, ergo uma pena
branca de uma de suas asas até minha boca e daí
a pena cai para meu peito esquerdo, muda de cor;
tornando-se pele cola-se em minhas costelas que já são parte do solo.
Liliana Lukin (Buenos Aires, 1951), La Ética demostrada según el orden poético (Buenos Aires: Ediciones La Cebra, 2011).
XXI
Às vezes sonho como estratégia
contra a devastação.
Neste senho vou veloz
como se cavalgasse
fugindo de outra mordida.
Tudo em redor se trata
de morder sobre o aberto
e tornar mais profundo
o dano para ver sua tristeza.
No meu cavalgar difícil
é a ação de fugir e
difícil a ação de ser mordido,
enquanto trato de erguer no ar
crianças, que no sonho ainda estão
inteiras e difícil a ação de crianças
que vão subindo na minha garupa:
centenas de crianças escamoteadas
às mandíbulas que povoam o mundo.
Ao despertar, tocarei a cama,
não como se buscasse o amado,
senão como quem volta
de um sonho de grandeza
e é surpreendido pela luz,
sabendo que, outra vez,
perdeu uma batalha.
Carlos Aprea (La Plata), Pueblos fugaces (City Bell: Libros de la talita dorada, 2012).
Guandacol
Na rota a Jachal,
perseguindo a derradeira luz do dia,
somos um navio em plena cordilheira,
cento e vinte colisões contínuas
mareiam como um mar.
Transtornados, famintos,
avistamos a respiração de uma baleia,
gaivotas negras como condores,
outros navios de carga nos perseguem
e um sal amargo
nos resseca a boca.
Alguém nos grita pelo caminho
que não bebamos a água do próximo rio,
que está morta,
que a mataram os da mina.
Ana Arzoumanian (Buenos Aires, 1962), Káukasos (Buenos Aires: Activo puente, 2011).
..................
Eu uma negra que está
aqui
agora,
porque não esteve
na Anatólia
nesse momento.
Aqui como um barco
que te busca na orla
dos portos
do mar
que não se enche,
para que me vejas
enquanto afundo.
A corda
com que enforcaram
as meninas
nas plantações.
Eu, uma negra
consumida
por chicotadas.
Todas as manhãs
do mundo
eu
um povo vencido
assisto
ao nascimento
de uma nação.
Woodrow Wilson e sua dislexia
escrevendo
a história do povo americano.
A dislexia de Wilson
invadindo o México,
com sua incapacidade
para ler
ou escrever
outorga a autonomia
aos povos do império otomano.
Deformações.
Eu estou aqui
porque não estive
ali
nesse momento.
Uma negra
que não dorme nunca
toda inteira.
......................
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
sexta-feira, 31 de maio de 2013
terça-feira, 28 de maio de 2013
Edição argentina de Cálcio e lançamento de Musulmán o biopoética, de Julián Axat
Lançarei na Argentina, nesta quarta-feira, 29 de maio, às 18:30h, no Salón Auditorio Islas Malvinas (La Plata, calle 19 esq. 50) a tradução para o espanhol de Cálcio, livro de poesia que saiu originalmente pela editora Averno, de Lisboa, a convite de Manuel de Freitas. Agora, ele integra a coleção Los detectives salvajes (da editora Libros de la talita dorada), que congrega obras de autores que foram vítimas do terror de Estado, bem como escritores que abordem temas afins: http://librosdelatalitadorada.blogspot.com.br/2013/04/padua-fernandes-calcio.html
O poeta Aníbal Cristobo, argentino que viveu algum tempo no Brasil, tem bastante experiência com a poesia em português (por sinal, estreou em livro no Brasil, com Teste da Iguana) e hoje está na Espanha, fez a tradução. A capa continua a aproveitar a arte de Cláudio Mubarac.
Os poemas do livro tratam de tais assuntos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/11/novo-livro-calcio.html. Recentemente, Leonardo D'Ávila escreveu resenha sobre a edição portuguesa para o Sopro: http://culturaebarbarie.org/sopro/resenhas/calcio.html#.UaQ2MpwQNOY
Julián Axat, o editor da coleção, lançará na mesma ocasião o seu próprio Musulmán o biopoética. O título já revela o Agamben que está presente nesta poesia, dedicada aos menores pobres na Argentina, cuja situação, Axat o sabe desde sua experiência como defensor judicial em La Plata, não pode ser descrita apenas como "em conflito com a lei" (como usualmente se diz no direito). E, em analogia aos escrachos, escreveu: "Se não há justiça/ há poesia": http://librosdelatalitadorada.blogspot.com.br/2013/04/julian-axat-musulman-o-biopoetica.html
Creio que os dois livros têm em comum não questões formais (as soluções que encontramos, cada um em sua língua, são diferentes), e sim temas de biopolítica. É uma honra para mim aparecer com Axat, um dos melhores poetas de sua geração em língua espanhola nos dois lados do Atlântico.
Clicando sobre as imagens, as contracapas poderão ser lidas; Axat escreveu a de meu livro; Guido L. Croxatto, a de Musulmán.
Participará do lançamento o jornalista Horacio Cecchi, do Página 12.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
Ato em memória de Olavo Hanssen e campanha contra a Lei de Anistia (Desarquivando o Brasil LIX)
Neste último sábado, dia 25 de maio, ocorreu um "Ato público pela punição dos crimes da Ditadura Militar" em homenagem a Olavo Hanssen, militante do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), operário da indústria química, torturado e assassinado pela repressão política após ser preso durante as comemorações do Dia do Trabalho em 1970. Tratou-se de uma iniciativa do Projeto Memória da Oposição Metalúrgica, da corrente O Trabalho do PT, do deputado estadual Adriano Diogo e da vereadora Juliana Cardoso (ambos do PT), do grupo Juventude Revolução e do Teatro Studio Heleny Guariba.
O ato tinha sido anunciado na página de Adriano Diogo (PT/SP) (http://www.adrianodiogo.com.br/noticias/internas/id/1955/justi-a-para-olavo-hanssen/), presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://www.al.sp.gov.br/comunidade/comissao-da-verdade-do-estado-de-sao-paulo-rubens-paiva. No anúncio ou nesta ligação https://www.youtube.com/watch?v=vGUN9sNZUnA, pode-se ver um curta-metragem sobre a vida do militante assassinado, que é interpretado por Edgard Castro.
Já escrevi sobre Olavo Hanssen outras vezes, especialmente aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/04/desarquivando-o-brasil-v-o-assassinato.html. Seu caso logrou a primeira condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. Ele fora assassinado após ser preso em uma grande operação policial montada para o Primeiro de Maio de 1970, cujos papéis encontrei no Arquivo Público do Estado de São Paulo: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/desarquivando-o-brasil-lviii-o-primeiro.html
O ato ocorreu onde ele foi preso, na Vila Maria Zélia; foi uma boa escolha. O local ficou repleto, com presença de membros de partidos identificados com a esquerda como o PT (da corrente Trabalho), PSOL, PSTU, e organizações como o MST, o Tortura Nunca Mais, e sindicatos filiados à CUT, o dos Químicos do ABC e dos Químicos de São Paulo. Paulo Vannuchi, atual candidato do Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também lá estava.
O dia escolhido também foi significativo, mas de forma não prevista pelos organizadores. A Folha de S.Paulo havia publicado um editorial a favor da Lei de Anistia.
Sabemos que o jornal escreve em interesse próprio, e não do interesse geral, que não se manifesta na manutenção da tradicional cultura da impunidade. Lembremos do importantíssimo livro Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 da historiadora Beatriz Kushnir, que mostrou como o grupo Folha foi capaz até mesmo de emprestar veículos para a repressão política. Sugiro também a leitura dos textos desta ligação: http://caesdeguarda-jornalistasecensores.blogspot.com.br/, e a audição do depoimento de Ivan Seixas de como a Folha da Tarde anunciou a morte de seu pai antes de a repressão assassiná-lo (http://www.viomundo.com.br/radio/o-servico-sujo-do-grupo-folha-ao-regime-militar.html.
Pode-se também assistir à conversa entre a historiadora e o jornalista Alípio Freire, com a mediação de Lino Bocchini e Thaís Barreto: http://www.youtube.com/watch?v=DApaHeBzF_Y. Idelber Avelar comentou esse programa: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/04/06/relacoes-da-midia-com-a-ditadura-sobre-um-historico-debate-da-falha-de-sao-paulo/
O editorial tomava partido de um dos artigos publicados na seção Tendências/Debates. No mesmo dia, 25 de maio, o jornal publicou textos opostos para a questão de se a Lei de Anistia deve ser revista. Um dos textos era de Luiza Erundina, que apresentou, na Câmara dos Deputados, projeto para dar interpretação autêntica dessa lei, com o fim de excluir dos "crimes conexos" "os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos". A deputada federal (PSB/SP) apresentou-o para que o Brasil possa cumprir a sentença do caso Gomes Lund e outros, em que o Brasil foi condenado em razão da Guerrilha do Araguaia, cujos mortos estão em boa parte desaparecidos, e os agentes da repressão continuam impunes. Expliquei essa condenação nestes dois pequenos textos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/12/brasil-argentina-e-os-desaparecimentos.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/cumpra-se-ato-pelo-cumprimento-da.html
O projeto da deputada federal Luiza Erundina (PSB/SP) foi elogiado no ato em homenagem a Olavo Hanssen. Adriano Diogo (que pode ser visto em pé, o primeiro à esquerda na mesa), em forte discurso, criticou o texto oposto, de autoria de um dos membros da Comissão Nacional da Verdade, José Paulo Cavalcanti Filho, que escreveu diversos contrassensos jurídicos (não à toa, trabalhou no ministério da justiça da presidência de Sarney), velhas posições reacionárias já atacadas por, notadamente, Deisy Ventura, a cujo estudo sobre a Lei de Anistia sempre remeto: http://educarparaomundo.wordpress.com/2010/11/08/a-interpretacao-judicial-da-lei-de-anistia-brasileira-e-o-direito-internacional-deisy-ventura/
É notável que a CNV tenha este membro que, se não tem se destacado especialmente pelo afinco em suas funções, notabilizou-se pelas seus pronunciamentos contrários à justiça de transição.
Adriano Diogo indagou: "Passados 43 anos da morte de Olavo, o que é que estamos fazendo?"; e trato da importância do ato em lançar um movimento pela revisão da Lei de Anistia.
Ivan Seixas, que também está na Comissão Estadual da Verdade, já havia falado da relação entre a impunidade dos torturadores de ontem com a dos torturadores de hoje, a atacar os jovens negros e brancos nas periferias. E tratou da inversão histórica: nos anos 1970, militantes como ele queriam matar os agentes da repressão, enquanto os empresários protegiam-nos; hoje, os combatentes contra a ditadura desejam que aqueles agentes sobrevivam para serem julgados e punidos, enquanto os antigos financiadores e mandantes esperam que morram, com medo do que possa ser revelado.
Na segunda mesa, falaram antigos companheiros de Olavo Hanssen, entre eles Ana Lúcia Di Giorgi, Dulce Muniz, Franco Farinazzo, Geraldo Siqueira e Tullo Vigevani, e militantes como Raphael Martinelli, da antiga ALN, que encerrou as falas. A mesa foi aberta por uma de suas irmãs, Alice Hanssen, que pode ser vista de pé na quarta foto. Ela ressaltou o compromisso com os trabalhadores e com a igualdade, o que se estendia à questão de gênero: contou que seu irmão mais velho foi a primeira pessoa que ela ouviu defendendo a igualdade entre mulheres e homens, e ele, para estarrecimento da mãe, lavava louça em casa. E continuou: "Ele lutou por uma democracia. Não é a democracia que nós temos que ele queria." Prevenindo que diria algo que alguns dos que estavam ali não gostariam de ouvir, afirmou que seu irmão desaprovaria a corrupção na política de hoje...
A atriz Dulce Muniz narrou os acontecimentos do dia da prisão, e que foi ele que notou que aquele local estava "coalhado" de policiais; na prisão, ele sempre se preocupou com ela (que era dez anos mais jovem) e no último diálogo deles, quando ele já não conseguia mais andar, foi carregado para a portinhola da cela para saber se ela estava bem.
Geraldo Siqueira, que era da mesma célula do PORT, contou como, no dia em que foram presos, Hanssen o fez lavar as mãos, sujas de tinta de uma pichação "Abaixo a ditadura", para não despertar suspeitas. Na prisão, Hanssen o alertou para não deitar com a cabeça junto à porta - e isso foi providencial, pois logo depois os carcereiros entraram "arrombando", o que o teria machucado gravemente. Siqueira foi solto enquanto o militante mais velho ainda estava vivo, mas já muito mal em razão das torturas. Mesmo assim, deitado, conseguiu virar-se, sorrir e erguer o polegar para ele, o que interpretou como um gesto de esperança.
Raphael Martinelli foi torturado com Hanssen e explicou que os policiais queriam saber do militante do PORT os nomes da direção do partido no Rio Grande do Sul, que nunca revelou. Martinelli, um dos fundadores do PT, aproveitou para fazer diversas críticas ao partido, à CNV, ao imposto sindical, ao ritmo da reforma agrária.
Com a leitura de uma carta aberta à presidenta Dilma Rousseff, o ato assumiu o caráter de lançamento de uma campanha contra a Lei de Anistia.
O evento começou depois das 16 horas e durou até quase 19, e contou com a participação do Grupo Cultural Luther King, regido por Martinho Lutero Galati, que cantou, entre as mesas, a "Suíte dos Pescadores", de Dorival Caymmi no arranjo de Damiano Cozzella (já a cantei, e não é fácil; vejam-na: https://www.youtube.com/watch?v=b8Nvr7Xx_Jo), música que, Ivan Seixas explicou, era cantada sempre que um preso político era libertado ou transferido. Concluídas as falas, o grupo ainda cantou e tocou "A Internacional".
Após esse momento musical, ocorreu o lançamento da biografia de Olavo Hanssen por Murilo Leal (Olavo Hanssen: uma vida em desafio, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013), que foi membro do PORT. O trabalho editorial foi modesto; nada há em iconografia, exceto a foto da capa. O texto poderia ser melhor também: parte significativa destina-se ao que soa como ajuste de contas entre a esquerda, com críticas às orientações do antigo partido. Não há muitas referências, e algumas são feitas de forma errada, como no caso dos documentos do acervo do arquivo Público do Estado de São Paulo, em que há uma confusão com os dossiês.
No entanto, o livro tem o grande mérito de, além de ser único, corrigir o nome de Hanssen. Sua irmã Alice, de quem Leal tomou o depoimento, esclareceu que ele foi sempre publicado erradamente, com apenas um s.
Eu mesmo caía nesse erro e publiquei na Revista Histórica, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, um artigo, com meu então orientando Diego Marques Galindo, hoje advogado, em que escrevemos Hansen: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao36/materia02/
Na capa de seu prontuário no DOPS/SP (reproduzo aqui os documentos, guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo), o nome já estava errado. Citei neste blogue a decisão que trancou o inquérito penal militar que fingiu apurar as circunstâncias de sua morte em 1970; o nome, no decorrer dos autos, era Hansen. Documentos de prisões anteriores, no entanto, citam às vezes seu nome corretamente. Apenas às vezes. Em alguns deles, ele se torna Haussen (exibo um exemplo ao lado). O sobrenome chegou a ser metamorfoseado, em um registro, em Hansan.
O sobrenome estabiliza-se, mutilado de um s, em 1970, e dessa forma, ele foi reproduzido pelos sindicalistas que protestaram contra sua morte, pelo MDB, pela imprensa da época (reproduzo um exemplo da Tribuna da Rio, mas há vários, seu caso foi amplamente noticiado, apesar da censura), pelas autoridades policiais. E, como Hansen, seu caso chegou à OEA e à OIT...
Os dossiês sobre direito à memória e à verdade do governo federal e do Estado de São Paulo (que têm outros problemas) mantêm o erro. Mais recentemente, a seção do Rio de Janeiro da OAB também o divulgou dessa maneira (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/terra-sem-lei-iii-e-desarquivando-o.html). Outro exemplo foi o escondido monumento aos mortos da USP pela ditadura militar, inaugurado durante as férias, "Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos durante o regime militar (1964-1985)"; veja-se na última foto deste texto.
Na última foto de nota que escrevi em 2011, pode-se notar como até os trotskistas grafam Hanssen equivocadamente: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/desarquivando-o-brasil-viii-e.html
A biografia escrita por Murilo Leal, no entanto, não menciona essas flutuações ortográficas, e chega ao ponto de citar outras obras, notícias e documentos corrigindo o nome de Hanssen, escrito erradamente por esses outros autores, sem indicar que está retificando o texto alheio.
Além do erro metodológico de alterar as citações sem o indicar, há outra questão: não se trata de mera falha ortográfica, o problema tem dimensão histórica e política.
O fato de que, mesmo neste caso, que não é de um desaparecido, de um morto do qual temos documentação (provavelmente incompleta, mas em boa parte conhecida), não conhecêssemos corretamente nem mesmo o nome da vítima, é extremamente significativo do esforço enorme que deve ainda ser realizado em relação à memória e à verdade no Brasil.
A tarefa é vasta e coletiva, e não contará com o apoio da maior parte dos veículos de comunicação - o partido tomado pela Folha de S.Paulo revela-o. A estratégia de ocultamento das reais dimensões da última ditadura (ou "regime", segundo a Reitoria da USP), realizada também pela grande imprensa (que tanto colaborou com as autoridades), impediu-nos de saber até hoje o número de mortos. Houve quem dissesse que a repressão teve apenas quinhentas vítimas. As dimensões do genocídio indígena multiplicam esse montante.
O recente relatório elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição, também supera bastante aquele velho número: http://www.forumverdade.ufpr.br/wp-content/uploads/A_%20EXCLUSAO-Versao_18_setembro.pdf
É notável que parte significativa dessas mortes haja ocorrido antes da Constituição de 1988 e durante o governo Sarney. O malogrado governo do velho arenista, no entanto, está simultaneamente fora, em termos de abrangência temporal dos trabalhos, e dentro da Comissão Nacional da Verdade, na qual conta com um representante, José Paulo Cavalcanti Filho, contrário à justiça de transição. Representante que encontra não só cargos oficiais, como grandes veículos que veiculam seus pequenos pareceres.
P.S. 1: O Secretário Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, Rogério Sottili, falou na primeira mesa, e a Secretaria publicará os anais do evento. Na grande imprensa, o ato não teve chance de aparecer.
P.S. 2: A Carta Aberta à Presidenta, em que se diz "Clamamos mais uma vez, para todas as autoridades democraticamente constituídas no país, que os criminosos da ditadura devem pagar perante a justiça por seus crimes.", foi publicada nesta ligação da Confederação Nacional do Ramo Químico: http://www.cnq.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=903:olavo-hanssen-militante-quimico-do-abc-morto-pela-ditadura-foi-homenageado
O ato tinha sido anunciado na página de Adriano Diogo (PT/SP) (http://www.adrianodiogo.com.br/noticias/internas/id/1955/justi-a-para-olavo-hanssen/), presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": http://www.al.sp.gov.br/comunidade/comissao-da-verdade-do-estado-de-sao-paulo-rubens-paiva. No anúncio ou nesta ligação https://www.youtube.com/watch?v=vGUN9sNZUnA, pode-se ver um curta-metragem sobre a vida do militante assassinado, que é interpretado por Edgard Castro.
Já escrevi sobre Olavo Hanssen outras vezes, especialmente aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/04/desarquivando-o-brasil-v-o-assassinato.html. Seu caso logrou a primeira condenação do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. Ele fora assassinado após ser preso em uma grande operação policial montada para o Primeiro de Maio de 1970, cujos papéis encontrei no Arquivo Público do Estado de São Paulo: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/desarquivando-o-brasil-lviii-o-primeiro.html
O ato ocorreu onde ele foi preso, na Vila Maria Zélia; foi uma boa escolha. O local ficou repleto, com presença de membros de partidos identificados com a esquerda como o PT (da corrente Trabalho), PSOL, PSTU, e organizações como o MST, o Tortura Nunca Mais, e sindicatos filiados à CUT, o dos Químicos do ABC e dos Químicos de São Paulo. Paulo Vannuchi, atual candidato do Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, também lá estava.
O dia escolhido também foi significativo, mas de forma não prevista pelos organizadores. A Folha de S.Paulo havia publicado um editorial a favor da Lei de Anistia.
Sabemos que o jornal escreve em interesse próprio, e não do interesse geral, que não se manifesta na manutenção da tradicional cultura da impunidade. Lembremos do importantíssimo livro Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 da historiadora Beatriz Kushnir, que mostrou como o grupo Folha foi capaz até mesmo de emprestar veículos para a repressão política. Sugiro também a leitura dos textos desta ligação: http://caesdeguarda-jornalistasecensores.blogspot.com.br/, e a audição do depoimento de Ivan Seixas de como a Folha da Tarde anunciou a morte de seu pai antes de a repressão assassiná-lo (http://www.viomundo.com.br/radio/o-servico-sujo-do-grupo-folha-ao-regime-militar.html.
Pode-se também assistir à conversa entre a historiadora e o jornalista Alípio Freire, com a mediação de Lino Bocchini e Thaís Barreto: http://www.youtube.com/watch?v=DApaHeBzF_Y. Idelber Avelar comentou esse programa: http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/04/06/relacoes-da-midia-com-a-ditadura-sobre-um-historico-debate-da-falha-de-sao-paulo/
O editorial tomava partido de um dos artigos publicados na seção Tendências/Debates. No mesmo dia, 25 de maio, o jornal publicou textos opostos para a questão de se a Lei de Anistia deve ser revista. Um dos textos era de Luiza Erundina, que apresentou, na Câmara dos Deputados, projeto para dar interpretação autêntica dessa lei, com o fim de excluir dos "crimes conexos" "os crimes cometidos por agentes públicos, militares ou civis, contra pessoas que, de modo efetivo ou suposto, praticaram crimes políticos". A deputada federal (PSB/SP) apresentou-o para que o Brasil possa cumprir a sentença do caso Gomes Lund e outros, em que o Brasil foi condenado em razão da Guerrilha do Araguaia, cujos mortos estão em boa parte desaparecidos, e os agentes da repressão continuam impunes. Expliquei essa condenação nestes dois pequenos textos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2010/12/brasil-argentina-e-os-desaparecimentos.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/cumpra-se-ato-pelo-cumprimento-da.html
O projeto da deputada federal Luiza Erundina (PSB/SP) foi elogiado no ato em homenagem a Olavo Hanssen. Adriano Diogo (que pode ser visto em pé, o primeiro à esquerda na mesa), em forte discurso, criticou o texto oposto, de autoria de um dos membros da Comissão Nacional da Verdade, José Paulo Cavalcanti Filho, que escreveu diversos contrassensos jurídicos (não à toa, trabalhou no ministério da justiça da presidência de Sarney), velhas posições reacionárias já atacadas por, notadamente, Deisy Ventura, a cujo estudo sobre a Lei de Anistia sempre remeto: http://educarparaomundo.wordpress.com/2010/11/08/a-interpretacao-judicial-da-lei-de-anistia-brasileira-e-o-direito-internacional-deisy-ventura/
É notável que a CNV tenha este membro que, se não tem se destacado especialmente pelo afinco em suas funções, notabilizou-se pelas seus pronunciamentos contrários à justiça de transição.
Adriano Diogo indagou: "Passados 43 anos da morte de Olavo, o que é que estamos fazendo?"; e trato da importância do ato em lançar um movimento pela revisão da Lei de Anistia.
Ivan Seixas, que também está na Comissão Estadual da Verdade, já havia falado da relação entre a impunidade dos torturadores de ontem com a dos torturadores de hoje, a atacar os jovens negros e brancos nas periferias. E tratou da inversão histórica: nos anos 1970, militantes como ele queriam matar os agentes da repressão, enquanto os empresários protegiam-nos; hoje, os combatentes contra a ditadura desejam que aqueles agentes sobrevivam para serem julgados e punidos, enquanto os antigos financiadores e mandantes esperam que morram, com medo do que possa ser revelado.
Na segunda mesa, falaram antigos companheiros de Olavo Hanssen, entre eles Ana Lúcia Di Giorgi, Dulce Muniz, Franco Farinazzo, Geraldo Siqueira e Tullo Vigevani, e militantes como Raphael Martinelli, da antiga ALN, que encerrou as falas. A mesa foi aberta por uma de suas irmãs, Alice Hanssen, que pode ser vista de pé na quarta foto. Ela ressaltou o compromisso com os trabalhadores e com a igualdade, o que se estendia à questão de gênero: contou que seu irmão mais velho foi a primeira pessoa que ela ouviu defendendo a igualdade entre mulheres e homens, e ele, para estarrecimento da mãe, lavava louça em casa. E continuou: "Ele lutou por uma democracia. Não é a democracia que nós temos que ele queria." Prevenindo que diria algo que alguns dos que estavam ali não gostariam de ouvir, afirmou que seu irmão desaprovaria a corrupção na política de hoje...
A atriz Dulce Muniz narrou os acontecimentos do dia da prisão, e que foi ele que notou que aquele local estava "coalhado" de policiais; na prisão, ele sempre se preocupou com ela (que era dez anos mais jovem) e no último diálogo deles, quando ele já não conseguia mais andar, foi carregado para a portinhola da cela para saber se ela estava bem.
Geraldo Siqueira, que era da mesma célula do PORT, contou como, no dia em que foram presos, Hanssen o fez lavar as mãos, sujas de tinta de uma pichação "Abaixo a ditadura", para não despertar suspeitas. Na prisão, Hanssen o alertou para não deitar com a cabeça junto à porta - e isso foi providencial, pois logo depois os carcereiros entraram "arrombando", o que o teria machucado gravemente. Siqueira foi solto enquanto o militante mais velho ainda estava vivo, mas já muito mal em razão das torturas. Mesmo assim, deitado, conseguiu virar-se, sorrir e erguer o polegar para ele, o que interpretou como um gesto de esperança.
Raphael Martinelli foi torturado com Hanssen e explicou que os policiais queriam saber do militante do PORT os nomes da direção do partido no Rio Grande do Sul, que nunca revelou. Martinelli, um dos fundadores do PT, aproveitou para fazer diversas críticas ao partido, à CNV, ao imposto sindical, ao ritmo da reforma agrária.
Com a leitura de uma carta aberta à presidenta Dilma Rousseff, o ato assumiu o caráter de lançamento de uma campanha contra a Lei de Anistia.
O evento começou depois das 16 horas e durou até quase 19, e contou com a participação do Grupo Cultural Luther King, regido por Martinho Lutero Galati, que cantou, entre as mesas, a "Suíte dos Pescadores", de Dorival Caymmi no arranjo de Damiano Cozzella (já a cantei, e não é fácil; vejam-na: https://www.youtube.com/watch?v=b8Nvr7Xx_Jo), música que, Ivan Seixas explicou, era cantada sempre que um preso político era libertado ou transferido. Concluídas as falas, o grupo ainda cantou e tocou "A Internacional".
Após esse momento musical, ocorreu o lançamento da biografia de Olavo Hanssen por Murilo Leal (Olavo Hanssen: uma vida em desafio, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013), que foi membro do PORT. O trabalho editorial foi modesto; nada há em iconografia, exceto a foto da capa. O texto poderia ser melhor também: parte significativa destina-se ao que soa como ajuste de contas entre a esquerda, com críticas às orientações do antigo partido. Não há muitas referências, e algumas são feitas de forma errada, como no caso dos documentos do acervo do arquivo Público do Estado de São Paulo, em que há uma confusão com os dossiês.
No entanto, o livro tem o grande mérito de, além de ser único, corrigir o nome de Hanssen. Sua irmã Alice, de quem Leal tomou o depoimento, esclareceu que ele foi sempre publicado erradamente, com apenas um s.
Eu mesmo caía nesse erro e publiquei na Revista Histórica, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, um artigo, com meu então orientando Diego Marques Galindo, hoje advogado, em que escrevemos Hansen: http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao36/materia02/
Na capa de seu prontuário no DOPS/SP (reproduzo aqui os documentos, guardados no Arquivo Público do Estado de São Paulo), o nome já estava errado. Citei neste blogue a decisão que trancou o inquérito penal militar que fingiu apurar as circunstâncias de sua morte em 1970; o nome, no decorrer dos autos, era Hansen. Documentos de prisões anteriores, no entanto, citam às vezes seu nome corretamente. Apenas às vezes. Em alguns deles, ele se torna Haussen (exibo um exemplo ao lado). O sobrenome chegou a ser metamorfoseado, em um registro, em Hansan.
O sobrenome estabiliza-se, mutilado de um s, em 1970, e dessa forma, ele foi reproduzido pelos sindicalistas que protestaram contra sua morte, pelo MDB, pela imprensa da época (reproduzo um exemplo da Tribuna da Rio, mas há vários, seu caso foi amplamente noticiado, apesar da censura), pelas autoridades policiais. E, como Hansen, seu caso chegou à OEA e à OIT...
Os dossiês sobre direito à memória e à verdade do governo federal e do Estado de São Paulo (que têm outros problemas) mantêm o erro. Mais recentemente, a seção do Rio de Janeiro da OAB também o divulgou dessa maneira (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/terra-sem-lei-iii-e-desarquivando-o.html). Outro exemplo foi o escondido monumento aos mortos da USP pela ditadura militar, inaugurado durante as férias, "Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos durante o regime militar (1964-1985)"; veja-se na última foto deste texto.
Na última foto de nota que escrevi em 2011, pode-se notar como até os trotskistas grafam Hanssen equivocadamente: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/desarquivando-o-brasil-viii-e.html
A biografia escrita por Murilo Leal, no entanto, não menciona essas flutuações ortográficas, e chega ao ponto de citar outras obras, notícias e documentos corrigindo o nome de Hanssen, escrito erradamente por esses outros autores, sem indicar que está retificando o texto alheio.
Além do erro metodológico de alterar as citações sem o indicar, há outra questão: não se trata de mera falha ortográfica, o problema tem dimensão histórica e política.
O fato de que, mesmo neste caso, que não é de um desaparecido, de um morto do qual temos documentação (provavelmente incompleta, mas em boa parte conhecida), não conhecêssemos corretamente nem mesmo o nome da vítima, é extremamente significativo do esforço enorme que deve ainda ser realizado em relação à memória e à verdade no Brasil.
A tarefa é vasta e coletiva, e não contará com o apoio da maior parte dos veículos de comunicação - o partido tomado pela Folha de S.Paulo revela-o. A estratégia de ocultamento das reais dimensões da última ditadura (ou "regime", segundo a Reitoria da USP), realizada também pela grande imprensa (que tanto colaborou com as autoridades), impediu-nos de saber até hoje o número de mortos. Houve quem dissesse que a repressão teve apenas quinhentas vítimas. As dimensões do genocídio indígena multiplicam esse montante.
O recente relatório elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Camponeses mortos e desaparecidos: excluídos da justiça de transição, também supera bastante aquele velho número: http://www.forumverdade.ufpr.br/wp-content/uploads/A_%20EXCLUSAO-Versao_18_setembro.pdf
É notável que parte significativa dessas mortes haja ocorrido antes da Constituição de 1988 e durante o governo Sarney. O malogrado governo do velho arenista, no entanto, está simultaneamente fora, em termos de abrangência temporal dos trabalhos, e dentro da Comissão Nacional da Verdade, na qual conta com um representante, José Paulo Cavalcanti Filho, contrário à justiça de transição. Representante que encontra não só cargos oficiais, como grandes veículos que veiculam seus pequenos pareceres.
P.S. 1: O Secretário Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, Rogério Sottili, falou na primeira mesa, e a Secretaria publicará os anais do evento. Na grande imprensa, o ato não teve chance de aparecer.
P.S. 2: A Carta Aberta à Presidenta, em que se diz "Clamamos mais uma vez, para todas as autoridades democraticamente constituídas no país, que os criminosos da ditadura devem pagar perante a justiça por seus crimes.", foi publicada nesta ligação da Confederação Nacional do Ramo Químico: http://www.cnq.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=903:olavo-hanssen-militante-quimico-do-abc-morto-pela-ditadura-foi-homenageado
quinta-feira, 16 de maio de 2013
Matrimônio igualitário e o Conselho Nacional de Justiça
Escrevo esta nota em virtude de perguntas que me fizeram sobre a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que "Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas do mesmo sexo." Seu texto pode ser lido nesta ligação: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolu%C3%A7%C3%A3o_n_175.pdf
A manifestação do CNJ deveu-se a requerimento do deputado Federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) e da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Rio de Janeiro. Nesse Estado, o Tribunal de Justiça, mais atrasado, ainda não regulara a questão, ao contrário dos Tribunais de outros Estados do país: http://jeanwyllys.com.br/wp/jean-wyllys-e-arpen-rj-solicitam-ao-cnj-a-regulamentacao-do-casamento-civil-igualitario-em-todo-o-brasil
A Resolução é inconstitucional? Creio que nem um pouco, e os consideranda já deixam clara sua perfeita fundamentação jurídica:
Voltemos, pois, às decisões mencionadas. Em maio de 2011, no julgamento das ações ADI 4277 e ADPF 132 (unificadas devido a seu objeto comum), sobre a união estável, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a isonomia entre casais com cônjuges do mesmo sexo e aqueles com sexos diferentes.
No primeiro comentário que fiz sobre a decisão (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil.html), lembrei que "O caso tem várias implicações - ainda mais porque a lei da união estável, no Brasil, permite a conversão em casamento, o que provavelmente gerará novas campanhas judiciais e publicitárias de ódio contra os homossexuais." Essas campanhas continuam, inclusive no meio jurídico.
Na segunda parte do comentário (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil_08.html), lembrei que certos argumentos da associação nazista que, junto com a CNBB, fez sustentação oral contra o matrimônio igualitário, referiam-se ao
O Conselho Nacional de Justiça apenas regulou a questão de forma que a Constituição fizesse sentido, já que não poderia subsistir uma exigência para casais do mesmo sexo que não existe para os de sexo diferente, em face do princípio da isonomia.
A Resolução faz menção a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ); esta outra corte de Brasília tem, no tocante à garantia da validade da legislação federal, o mesmo papel que o Supremo Tribunal Federal possui em relação à garantia da Constituição da República. Se o problema é apenas de lei federal, e não constitucional, a última palavra é do STJ. Por isso, ele se pronunciou a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o Código Civil no Recurso Especial 1.183.378/RS, (http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/39/Documentos/STJ%20Resp%20casamento%20homoafetivo%20acordao%202012.pdf).
Nesse caso, duas mulheres, em Porto Alegre, pleiteavam o direito de casar-se; os cartórios de registro civil negaram-no, e a justiça gaúcha (cujo suposto caráter "avançado" ainda permanece como um curioso mito), tanto em primero quanto em segundo grau, mantiveram a negativa, somente desfeita com a decisão do STJ:
O povo brasileiro, o que fez? Uma vez que o Legislativo e o direito escrito não o contemplavam, passou ele mesmo a criar suas formas de união familiar fora do Código Civil. Essas práticas sociais consolidaram-se e foram previstas na Constituição de 1988 (pela primeira vez na história do direito constitucional brasileiro) e, na década de 1990, bem atrasado em relação até o Judiciário, é que o Legislativo foi tratar da questão, com a lei n. 8971 de 1994...
Ou seja, também para casais heterossexuais, o Congresso Nacional brasileiro mostrou-se atrasado, reacionário, e desidioso. É notável que essa desídia seja uma constante histórica, e sempre acompanhada da reclamação de políticos e juristas conservadores, inconformados com que o povo assuma a criação dos próprios direitos, e que o Judiciário cumpra seu dever, reconhecendo-os à luz da Constituição.
A manifestação do CNJ deveu-se a requerimento do deputado Federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) e da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Rio de Janeiro. Nesse Estado, o Tribunal de Justiça, mais atrasado, ainda não regulara a questão, ao contrário dos Tribunais de outros Estados do país: http://jeanwyllys.com.br/wp/jean-wyllys-e-arpen-rj-solicitam-ao-cnj-a-regulamentacao-do-casamento-civil-igualitario-em-todo-o-brasil
A Resolução é inconstitucional? Creio que nem um pouco, e os consideranda já deixam clara sua perfeita fundamentação jurídica:
CONSIDERANDO a decisão do plenário do Conselho Nacional de Justiça, tomada no julgamento do Ato Normativo no. 0002626-65.2013.2.00.0000, na 169ª Sessão Ordinária, realizada em 14 de maio de 2013;CONSIDERANDO que o Supremo Tribunal Federal, nos acórdãos prolatados em julgamento da ADPF 132/RJ e da ADI 4277/DF, reconheceu a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo;CONSIDERANDO que as referidas decisões foram proferidas com eficácia vinculante à administração pública e aos demais órgãos do Poder Judiciário;CONSIDERANDO que o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento do RESP 1.183.378/RS, decidiu inexistir óbices legais à celebração de casamento entre pessoas de mesmo sexo;
Voltemos, pois, às decisões mencionadas. Em maio de 2011, no julgamento das ações ADI 4277 e ADPF 132 (unificadas devido a seu objeto comum), sobre a união estável, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a isonomia entre casais com cônjuges do mesmo sexo e aqueles com sexos diferentes.
No primeiro comentário que fiz sobre a decisão (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil.html), lembrei que "O caso tem várias implicações - ainda mais porque a lei da união estável, no Brasil, permite a conversão em casamento, o que provavelmente gerará novas campanhas judiciais e publicitárias de ódio contra os homossexuais." Essas campanhas continuam, inclusive no meio jurídico.
Na segunda parte do comentário (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil_08.html), lembrei que certos argumentos da associação nazista que, junto com a CNBB, fez sustentação oral contra o matrimônio igualitário, referiam-se ao
[...] problema do originalismo que, no direito constitucional dos Estados Unidos, serviu para legitimar a discriminação racial em nome da vontade dos "Founding Fathers". Se a constituição é um monumento petrificado pelas palavras do constituinte originário, os preconceitos e a servidão do pessado devem imperar sobre a progressividade dos direitos humanos.Apenas nessa visão conservadora, adotada, entre outros, por Ives Gandra da Silva Martins, é que se poderia sustentar a ideia de que o Supremo Tribunal Federal teria tomado o papel do legislador, ao reconhecer aquela isonomia. Expliquei-o em outra nota (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil-o.html):
Esse tipo de argumento, antes empregados contra os negros, foi e é usado para que os homossexuais nos EUA continuem como cidadãos de segunda classe.
No plano constitucional, tenta fundamentar-se na tese de que o STF roubou o papel do constituinte. Trata-se da questão do originalismo constitucional, usado nos EUA para negar direitos às minorias (como os negros), com sua tentativa de deixar o direito estagnado na pretensa vontade do legislador.Ives Gandra, um jurista pré-aristotélico? Deixo essa tese para que os mais capazes do que eu desenvolvam ou refutem. Para o Amálgama, escrevi um texto (http://www.amalgama.blog.br/08/2011/casamento-e-homofobia/) que trata do caráter simultaneamente abstrato e histórico dos direitos humanos e da força normativa dos princípios constitucionais:
No entanto, o STF não criou novos direitos, apenas os estendeu a uma categoria discriminada em ofensa ao princípio da isonomia, ele mesmo disposto na Constituição de 1988. Por sinal, esse é o papel do juiz desde a noção aristotélica de equidade.
[...] como um ordenamento jurídico que apresente, em seus princípios gerais, o da igualdade, pode ser usado para legitimar a discriminação de homossexuais? Tortuosidades argumentativas e hermenêuticas costumam aparecer – afinal, como conciliar aquele princípio de origem iluminista com os preconceitos inspirados em livro religioso milenar? Há quem o faça, mas não são os ortodoxos.Ademais, a decisão do Supremo Tribunal Federal já tinha aberto a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, como expliquei em outra nota, "Matrimônio igualitário no Brasil: já e ainda não" (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/04/matrimonio-igualitario-no-brasil-ja-e.html), com uma questão a elucidar: "subsiste uma desigualdade: é necessário, de acordo com esse caminho legal, para casais do mesmo sexo, ter uma união estável para depois casar. Isso não faz muito sentido mesmo do ponto de vista da atual Constituição, uma vez que os de sexos diferentes não precisam seguir esse trâmite."
O caráter abstrato desse princípio permite-lhe ser historicamente moldável e abrigar causas que não foram pensadas em 1789, mas que hoje são prementes, como o da união entre pessoas de mesmo sexo; como escrevi em meu livro Para que servem os direitos humanos?, trata-se da capacidade histórica dos direitos humanos de se transformarem sem a necessidade de alterações jurídicas formais.
O Conselho Nacional de Justiça apenas regulou a questão de forma que a Constituição fizesse sentido, já que não poderia subsistir uma exigência para casais do mesmo sexo que não existe para os de sexo diferente, em face do princípio da isonomia.
A Resolução faz menção a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ); esta outra corte de Brasília tem, no tocante à garantia da validade da legislação federal, o mesmo papel que o Supremo Tribunal Federal possui em relação à garantia da Constituição da República. Se o problema é apenas de lei federal, e não constitucional, a última palavra é do STJ. Por isso, ele se pronunciou a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo e o Código Civil no Recurso Especial 1.183.378/RS, (http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/39/Documentos/STJ%20Resp%20casamento%20homoafetivo%20acordao%202012.pdf).
Nesse caso, duas mulheres, em Porto Alegre, pleiteavam o direito de casar-se; os cartórios de registro civil negaram-no, e a justiça gaúcha (cujo suposto caráter "avançado" ainda permanece como um curioso mito), tanto em primero quanto em segundo grau, mantiveram a negativa, somente desfeita com a decisão do STJ:
8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.
Os adversários da Constituição e da igualdade, entre eles membros do Ministério Público Federal, políticos do PT e do PMDB que decidiram questionar a Resolução (ver aqui: http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/05/procurador-e-deputados-questionam-decisao-do-cnj-sobre-casamento-gay.html), ao brandir a ideia de que houve um sequestro das competências do Legislativo e, com isso, um atentado à democracia, na verdade fundamentam-se em uma postura antidemocrática no tocante às fontes do direito. O voto do Ministro Luís Felipe Salomão, no Recurso Especial mencionado, já abordava essa questão, ao afirmar que
[...] a família é um fenômeno essencialmente natural - sociológico, cujas origens antecedem o próprio Estado.É dizer: família é uma instituição pré-jurídica, surgida das mais remotas experiências de aglomeração e vinculação pelo parentesco e reciprocidade, anterior por isso mesmo ao próprio casamento, civil ou religioso.Não pode o Direito - sob pena de ser inútil - pretender limitar conceitualmente essa realidade fenomênica chamada "família", muito pelo contrário, é essa realidade fática que reclama e conduz a regulação jurídica.
Essa realidade fática é que conduz a regulação jurídica. Isto significa que o casamento entre pessoas do mesmo sexo somente passou a ser reconhecido juridicamente porque existe socialmente. E mais: a própria sociedade, criando esse fato social, gera efeitos jurídicos que o Judiciário deve reconhecer, sob pena de agir antidemocraticamente.
A propósito, é corrente, desde a Antiguidade, que os direitos criem-se dessa forma: nascem como direito costumeiro, o próprio Judiciário reconhece-os e, um dia, o legislador acorda de seu sono feito de recessos, lobbies, cargos e mordomias, e resolve formalizar a matéria em direito escrito. Acreditar que só o Legislativo, e não também o povo, por meio de suas práticas, possa criar direitos, é profundamente antidemocrático - e nega, devo dizer, a própria realidade histórica do direito.
Para reforçar a ideia de isonomia, devemos lembrar que o mesmo atraso legislativo aconteceu com a união estável de casais com parceiros de sexo diferente no Brasil: diante de décadas e décadas de um Legislativo escravizado a preconceitos religiosos (os grilhões bíblicos permanecem lá, por sinal), a população brasileira não podia unir-se fora legalmente fora do casamento, o que se complicava, ainda, com a inexistência do divórcio.
Orlando Gomes, na interessante obra Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro
(reeditada pela Martins Fontes em 2003), explica o caráter senhorial e
privatista do Código Civil brasileiro de 1916: "o Código Civil, sem
embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros
povos, não se liberta daquela preocupação com o círculo social da
família, que o distingue, incorporando à disciplina das instituições
básicas, como a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato
de trabalho), a filosofia e os sentimentos da classe senhorial." (p.
22). O que o grande civilista afirmou a respeito dos direitos sociais, ou seja, o atraso do Código
em razão dos interesses conservadores, pode ser verificado também na
ordem do direito de família.
Ou seja, também para casais heterossexuais, o Congresso Nacional brasileiro mostrou-se atrasado, reacionário, e desidioso. É notável que essa desídia seja uma constante histórica, e sempre acompanhada da reclamação de políticos e juristas conservadores, inconformados com que o povo assuma a criação dos próprios direitos, e que o Judiciário cumpra seu dever, reconhecendo-os à luz da Constituição.
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