Como se sabe, trata-se do relatório, com mais de sete mil páginas, de Comissão de Inquérito criada pelo Ministério do Interior (chefiado pelo General Albuquerque Lima) em 1967 para investigar o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que tinha há muito se tornado um dos agentes de genocídio, estupro, tortura, escravização, remoção forçada, desvio da renda indígena etc. O presidente da Comissão foi o procurador Jáder de Figueiredo Correia, integrada ainda por Francisco de Paula Pessoa, Udmar Vieira Lima, e que contou com o trabalho do secretário Max Luiz Almeida Nóbrega.
A leitura do relatório completo não será feita por muitos, imagino, mas creio que todos devem ler o ofício ao Ministro (no "Relatório Jáder Figueiredo ao Ministro do Interior"), ao menos as dezesseis primeiras páginas e sua visão geral do que contém o documento, e o espantoso de que existia "na estrutura administrativa repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, os monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça."
Na página 16 começa a lista dos que são apontados como autores de irregularidades e crimes contra os índios, até a 67, com indicação das condutas ilícitas e das folhas correspondentes no relatório.
Bessa Freire destaca que o próprio chefe do SPI, o major da Aeronáutica Luiz Vinhas Neves, que já havia sido apontado como responsável pelo massacre de índios Cinta Larga, foi acusado no relatório de locupletar-se (bem como sua companheira), de "extraordinária ganância", "espantosa dilapidação do patrimônio indígena", "chantagem e extorsão" etc. Faço notar que a lista de ilícitos que lhe foram atribuídos inclui o então governador do antigo Estado do Mato Grosso (que englobava o atual Estado e o Mato Grosso do Sul), Pedro Pedrossian, com a transferência ilegal de 35 mil hectares de terras indígenas para o Estado (vejam ao lado).
Lembro dele por causa de Pedro Pedrossian Filho, que divulgou no facebook, em 27 de agosto de 2015, uma notícia falsa sobre os índios Guarani Kaiowá, o que acabou por desencadear uma série de comentários de ódio e de ameaças aos índios.
Em 29 de agosto, o índio Semião Vilhalva foi morto, em nova onda de ataques contra esse povo por grupos paramilitares ruralistas.
Voltando aos massacres dos anos 1960: alguns dos efeitos do Relatório Figueiredo dessa extensa investigação foram o fim do SPI e a aprovação da lei de criação da Funai. No entanto, o relatório desapareceria do mapa, o AI 5 viria no fim de 1968 e, a partir de 1969, o governo Médici intensificaria o genocídio indígena.
Falta ainda realizar uma análise crítica de todo o relatório, extensa tarefa para que a academia pode contribuir. Lembro que o achado não foi fruto da pesquisa acadêmica, e sim dos esforços militantes de memória e verdade que se intensificaram no Brasil após o surgimento da Comissão Nacional da Verdade. Marcelo Zelic, do Tortura Nunca Mais/SP e da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, o encontrou no fim de 2013 no Museu do Índio, pesquisando em apoio à CNV. Outras Comissões da Verdade já usaram esse documento em seus relatórios, como a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva".
Sobre as pesquisas que ainda se devem fazer, penso agora em dois pontos:
a) A postura inercial de alguns pesquisadores (principalmente historiadores) de que as Comissões não trouxeram novidade alguma deve ser superada, e as pesquisas que elas fizeram deve servir de base para novos trabalhos sobre a história recente, que poderão ter reflexos em vários campos, inclusive na esfera judicial;
b) No campo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, não se pode parar a pesquisa no Relatório Figueiredo: o período imediatamente posterior, com os projetos de integração e colonização, teria sido ainda pior em termos de massacres e remoções forçadas, pela documentação (embora muito parcial) já conhecida.
No tocante ao ponto a, além da presença eventual de acadêmicos entre os pesquisadores de algumas comissões, inclusive a CNV, deve-se lembrar que as descobertas e avanços deste período recente devem-se em muito aos militantes de movimentos sociais. Por sinal, os esforços desse militantes (alguns deles, também acadêmicos, como Janaína Teles), especialmente dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, foram dos principais fatores para a criação das diversas Comissões da Verdade que funcionaram e estão a funcionar no Brasil. Foram eles que lutaram pela criação de locais de memória como o Memorial da Resistência em São Paulo, e levaram o governo federal a publicar obras como Direito à memória e à verdade, de 2007, com o "um resumo do processamento de todos os casos que foram levados à CEMDP [Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos] ao longo de 11 anos".
Perto do fim da ditadura, outros militantes organizaram o projeto Brasil: Nunca Mais, que continua sendo um acervo indispensável para o entendimento do período (com cerca de 900 mil páginas). Outro documento imprescindível é o Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos políticos no Brasil, organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, pelo Instituto de Estudo da Violência do Estado (IEVE) e o Grupo Tortura Nunca Mais de Rio de Janeiro e Pernambuco, na versão de1995, publicado pelo Estado de Pernambuco. Depois, foi revisto e ampliado, em edição da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, e pode ser baixado gratuitamente do portal da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva".
A pesquisa de jornalistas, como Carlos Fico ressaltou em certa ocasião, também foi fundamental.
Em alguns casos, como na Comissão da Bahia, ou na de Juiz de Fora, houve parceria com universidades, mas isso não foi a regra. A aliança entre militantes, acadêmicos e jornalistas, cada um com suas estratégias de pesquisa, poderia ter sido mais comum. Os acadêmicos teriam muito a ganhar com isso; lembremos que as recomendações das comissões da verdade universitárias, divulgadas no ano passado, não foram nada inspiradoras. Além disso, há instituições de ensino superior em que a homenagem ao autoritarismo perdura, como é o caso da Unicamp, que permanece honrando o militar que ocupava o ministério da educação em 1973, o então coronel Jarbas Passarinho. O Conselho Universitário se recusou a retirar-lhe a honraria, o que foi novamente denunciado pela Comissão da Verdade e Memória "Octávio Ianni", dessa universidade, no relatório final, publicado em primeiro de abril de 2015:
Embora reconheça que o Conselho Universitário tenha, recentemente, mantido a concessão do título de Doutor Honoris Causa,em 1973, ao então Ministro da Educação, Cel. Jarbas Gonçalves Passarinho, reitera e solicita ao Reitor, que encaminhe o assunto em tela, ao Conselho Universitário para que este reconsidere sua mais recente decisão de manter a referida concessão. Desnecessário lembrar que o agraciado foi um dos chefes militares mais atuantes na ditadura, tendo cometido várias arbitrariedades e punições na Academia. Tal recomendação se fundamenta no Relatório Final da CNV que estabelece: “Cassar as honrarias que tenham sido concedidas a agentes públicos ou particulares associados a esse quadro de graves violações (...)”.É possível cogitar até que dificuldades institucionais, ligadas ao legado autoritário nas universidades, inviabilizem esse tipo de iniciativa. Vejam o caso da USP e esta nota crítica da Adusp, publicada no final de março de 2014, a respeito da tumultuada criação e da discreta atuação da comissão da verdade dessa instituição. Lembre-se da professora da Química e militante da ALN (Ação Libertadora Nacional), desaparecida, Ana Rosa Kucinski, cujo caso foi ignorado até recentemente pela universidade. Ela foi demitida da instituição (que, assim, colaborou com a versão falsa da ditadura sobre sua morte) como se a tivesse abandonado.
Foi a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" que teve que levar o pleito da família adiante, em audiência pública que conseguiu fazer no espaço do centro acadêmico da Química em 2013, depois de a USP, por mais de uma vez, ter recusado a mandar representantes para que se fizesse uma audiência na Alesp. Esta fraquíssima notícia do Jornal da USP, "Comissão da Verdade homenageia Ana Rosa Kucinski em audiência pública" não conta, por exemplo, que o diretor da faculdade de Química simplesmente deixou o local minutos antes de a audiência começar; a diretoria se fez ausente. Rosa Cardoso, da CNV, estava no evento e falou, mas a comissão da USP simplesmente fez que não era com ela - só foi se ocupar o problema bem depois.
A nota que escrevi na época, pois assisti a essa audiência, conta com mais detalhes o que ocorreu: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/10/desarquivando-o-brasil-lxx-ana-rosa.html
Por isso, fiquei chocado quando vi, em evento no IRI/USP de balanço das comissões da verdade, um dos membros da comissão da USP falar do caso diminuindo a luta da família contra a instituição, especialmente de Bernardo Kucinski, e o papel das outras comissões.
Como estamos em pleno processo de desmanche do ensino superior brasileiro, seja pelo crescimento dos conglomerados privados (com o correspondente dumbing down), seja pelo estrangulamento das instituições públicas, creio que, além das dificuldades políticas, haverá também as de caráter econômico para pesquisar o período -- e são essas as que mais pesarão, saindo do terreno das comissões da verdade, para os grupos de pesquisa. Os pesquisadores acadêmicos precisarão de bastante criatividade para vencer esses problemas, além de lembrar, e me refiro ao ponto b, que as milhares de páginas do Relatório Figueiredo não bastam, seja porque há mais documentação sobre o mesmo período, seja porque o genocídio indígena não se encerrou nos anos 1960.
Poderíamos lembrar de vários documentos. Em 1970, médicos do Comitê Internacional da Cruz Vermelha vieram ao Brasil, e andaram pela Amazônia acompanhados de funcionários do governo brasileiro, para verificar a situação da saúde indígena. Eles não constataram massacres, o que foi o ponto propagandeado pelo governo federal. Havia, porém, diversos pontos constrangedores para a ditadura militar.
Os médicos afirmaram que não iriam se pronunciar sobre a questão de se estava a ocorrer ou não genocídio. Mas constaram um estado de imenso abandono dos índios pela Funai, deixando-os a mercê de fazendeiros (caso de tribo Bororó no Mato Grosso, dos Nambiquaras próximos da fronteira com Rondônia), de missões religiosas dos EUA que os tinham forçado a viver como em favelas (os Nambiquaras), de regiões em que seriam atingidos facilmente por epidemias (como os Gaviões) e outros problemas.
Constataram que o governo queria "aculturar" os povos indígenas, removê-los para áreas economicamente marginais e que esse processo, quanto mais "descontrolado e rápido", mais risco traria de que os índios sucumbissem, não apenas como "um membro de uma entidade tribal, mas também como ser humano" (vejam no documento ao lado, que está no Armazém Memória, assim como os demais desta nota).
Na CPI de 1977 sobre invasão das terras indígenas, o representante do CIMI, padre Antônio Iasi Júnior, afirmou que o tempo pior do genocídio veio depois, com a Funai (que ele significativamente compara ao Esquadrão da Morte) e os projetos de integração e de colonização da Amazônia (vejam aqui: http://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/parte-ii-cap2.html).
Naquela CPI, além da comprovação de que a Funai dava certidões negativas da existência de povos indígenas, de forma a permitir a tomada das terras desses povos por invasores e projetos de variada ordem, vê-se claramente que o Estado brasileiro violava abertamente a obrigação de demarcar as terras indígenas. Um dos casos mais escandalosos era nada menos do que o do Estado Amazonas, onde a Funai informava que não havia nenhuma terra demarcada (vejam o documento ao lado).
Creio que o Armazém Memória (http://armazemmemoria.com.br/centros-indigena/) contém agora no mínimo cem mil páginas de documentos digitalizados. Há muito material para os pesquisadores, acadêmicos ou não, analisarem. As organizações indígenas certamente participarão desse trabalho..
As investigações por comissões da verdade deveriam continuar, além disso. Entre as recomendações da CNV sobre as graves violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas, no volume II do relatório (lembro que há recomendações fora do volume I), temos a "Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo" e a "Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por órgãos públicos e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e educativa, incluindo-se investigações acadêmicas e obras de caráter cultural, como documentários, livros etc."
Trata-se de medidas necessárias. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, além de recomendar a criação de uma comissão federal "que apure as violações de direitos humanos sofridas pelos povos indígenas e comunidades tradicionais em território nacional", recomendou a "Instituição, por lei estadual, de uma Comissão com o mesmo objeto para investigar essas violações aos povos indígenas no Estado de São Paulo".
Não estou a ver a formação de nada parecido pelo governo federal, tampouco pelo Estado de São Paulo, que têm se desinteressado pelas recomendações das comissões e têm agido como se nada houvesse a resolver a respeito do legado autoritário da ditadura militar, o que inclui a lei de anistia. Dessa forma, tornam-se cúmplices desse passado.
Imagino que a inegável atualidade e a permanência das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas (como a falta de demarcação, as remoções forçadas, a construção de projetos da ditadura como a UH Belo Monte), que tornam premente a criação de uma comissão indígena da verdade, impedem politicamente que ela seja formada: a chamada transição democrática (se é que faz sentido ainda falar em transição) ocorreu de forma bem imperfeita, o legado autoritário está vivo e se mantém encarnado em empresas, empreiteiras, grileiros, jornais, rádios e nos três Poderes.
Provavelmente será necessário que a própria sociedade civil e as organizações indígenas resolvam criá-la por si mesmos, mais ou menos como os Mundurukus resolveram assumir o processo de demarcação de suas terras, numa lição de autonomia popular com que todos deveríamos aprender.
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