O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 19 de setembro de 2015

Doações a campanhas eleitorais e a fuga à Constituição como método hermenêutico: breve nota sobre um voto na ADI 4650

Em 17 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente, nos termos do voto do ministro relator, Luiz Fux, a ação direta de inconstitucionalidade que atacava doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais e a partidos políticos, ADI 4650, proposta pelo Conselho Federal da OAB. A decisão aplicar-se-á nas eleições de 2016.
Escrevo esta pequena nota por causa de algumas reações que vi sobre o voto do ministro Gilmar Mendes.
A petição inicial da ação foi inspirada pelo Seminário sobre Reforma Política da OAB, de que Luís Roberto Barroso, que ainda não estava no STF, foi relator. Barroso não é responsável pela peça, no entanto. A segunda nota da petição, que pode ser lida em alguns sítios (no STF: http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=1432694&tipo=TP&descricao=ADI%2F4650) refere-se à genealogia da argumentação adotada:
A presente Ação Direta de Inconstitucionalidade tem origem em representação dirigida à Presidência do Conselho Federal da OAB pelo Conselheiro Federal Cláudio Pereira de Souza Neto e pelo Procurador Regional da República Daniel Sarmento. As razões constantes da representação são ora adotadas, com acréscimos veiculados nos pareceres da Dra. Daniela Teixeira e do Dr. Eduardo Mendonça, apresentados, respectivamente, ao Plenário do Conselho Federal e à Comissão Nacional de Estudos Constitucionais.
Barroso é citado na petição, mas apenas para dizer que o rei está nu:
Como destacou o Prof. Luis Roberto Barroso, na qualidade de relator do Seminário sobre a Reforma Política organizado pelo Conselho Federal da OAB, “a conjugação de campanhas milionárias e financiamento privado tem produzido resultados desastrosos para a autenticidade do processo eleitoral e para a transparência das relações entre o Poder Público e os agentes econômicos”.
Parece bem plausível, de fato. Toffoli também é citado e, provavelmente, as chances de êxito em uma ação no STF aumentam se se pode apoiá-la em artigos de dois Ministros. Há mais outro, porém, a que logo vou referir.
A inicial cita alguns autores, como Marcelo Neves, Michael Walzer, Rawls, no exercício de ecletismo a que normalmente os advogados se dedicam quando escrevem petições. O que não está nada errado: em uma petição, devemos nos fundamentar em todos os argumentos, mesmo os que são teoricamente incompatíveis entre si, para tentar mostrar que, mesmo partindo de caminhos ou de autores muito diferentes, chega-se à posição defendida, que seria a correta, ou a mais correta. Em termos acadêmicos é que não se pode fazer isso sem fazer notar as diferenças em questão, e é por isso que tantos trabalhos acadêmicos no campo do direito, quando feitos por gente que tem formação em direito, apresentam fraquezas como julgar muito semelhantes Aristóteles, Marx e Rawls.
Aqui, se trata do mundo do fórum, em que esse ecletismo é oportuno. E àqueles autores foi acrescentado o nome de... Gilmar Mendes. A OAB teve o cuidado de citá-lo exatamente no tocante à validade do princípio da igualdade de chances entre os partidos políticos, o que deve ter embaraçado o ministro (que, afinal, acabou votando contra si mesmo, algo constrangedor para um magistrado, e, em duplo embaraço, também para um teórico, posição que ele tem reivindicado com seus livros e intervenções). Vejam este passo da petição:


Dito princípio de igualdade de chances tem plena aplicabilidade no sistema constitucional brasileiro, como afirmou o Ministro Gilmar Mendes, no voto proferido no julgamento do Recurso Extraordinário nº 630.147/DF:
Portanto, não se afigura necessário despender maior esforço de argumentação para que se possa afirmar que a concorrência entre os partidos, inerente ao próprio modelo democrático e representativo, tem como pressuposto inarredável o princípio da 'igualdade de chances'.
O princípio da igualdade de chances entre os partidos políticos abrange todo o processo de concorrência entre os partidos, não estando, por isso, adstrito a um segmento específico. É fundamental, portanto, que a legislação que disciplina o sistema eleitoral, a atividade dos partidos políticos e dos candidatos, o seu financiamento, o acesso aos meios de comunicação, o uso da propaganda governamental, dentre outras, não negligencie a idéia de igualdade de chances sob pena de a concorrência entre agremiações e candidatos se tornar algo ficcional, com grave comprometimento do próprio processo democrático
” (grifo nosso).
A petição foi muito bem elaborada em termos estratégicos e, de fato, buscou-se fundamentá-la nos princípios democrático e republicano. Vi um ou dois advogados reclamando do suposto ativismo do tribunal na decisão finalmente tomada pelo STF, que acolheu parcialmente o pedido da OAB, mas creio que se trata de um parti pris contrário à força normativa dos princípios que, no entanto, recebem tanto destaque na Constituição.
A própria OAB se antecipou a essa crítica citando nada menos do que Gilmar Mendes (nesse ponto, ele também votou contra si mesmo, ressaltando o constrangimento duplo a que me referi) na referência ao princípio da proporcionalidade, aplicado na hipótese de o Estado deixar de realizar os valores constitucionais e, assim, o Judiciário ser chamado a garanti-los de maneira positiva. Há os que chamam essa aplicação de "ativismo", mas simplesmente corresponde a uma atribuição necessária da jurisdição constitucional quando o Legislativo está a solapar a eficácia daqueles princípios. Vejam a citação que a OAB faz na petição:
De acordo com o Ministro Gilmar Mendes: 
Quanto à proibição de proteção insuficiente, a doutrina vem apontando para uma espécie de garantismo positivo, ao contrário do garantismo negativo (que se consubstancia na proteção contra excessos do Estado) já consagrado pelo princípio da proporcionalidade. A proibição da proteção insuficiente adquire importância na aplicação de direitos fundamentais de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção do direito fundamental.

A violação à proporcionalidade, na sua faceta de proibição à proteção deficiente, é manifesta no caso, diante da constatação de que as normas legais impugnadas não protegem de maneira suficiente a igualdade, a democracia e o princípio republicano - princípios de capital importância na ordem constitucional brasileira.
Para refutar a posição da OAB, seria necessário desdizer-se, e/ou demonstrar a invalidade desses princípios no ordenamento jurídico brasileiro, ou a sua inefícácia, ou alguma forma teoricamente nova de eficácia amordaçada (pois a eficácia contida gera efeitos...), ou então tentar desvincular a legislação eleitoral dos princípios democrático e republicano, o que seria absurdo, tendo em vista sua importância no exercício dos direitos políticos.
O Ministro Gilmar Mendes, como se sabe, pediu vista do processo em 2 de abril de 2014 e interrompeu o julgamento depois que a maioria do tribunal já havia chegado à posição favorável à ação, apesar do voto contrário e solitário de Teoria Zavascki.
Já que os movimentos brasileiros pela reforma política, em geral, concordavam com a ação da OAB,
 o pedido de vista, ocorrido antes das eleições de 2014 e os bilionários negócios que nela se travaram, foi objeto de contestação por ativistas em atos cobertos pela denominação "Devolve, Gilmar". Em abril de 2015, estudantes de Direito da Federal da Bahia tentaram entregar ao ministro um bolo pelo aniversário do visto: https://www.youtube.com/watch?v=tFBT_hH8_UU
A CUT, o MST, a Consulta Popular, a Marcha Mundial de Mulheres e o Levante Popular da Juventude  acreditavam que o pedido de vista se aparentava com uma manobra protelatória, enquanto a atual legislatura votava a chamada reforma política, e realizaram um ato em primeiro de abril deste ano em Brasília.
Mais notável, tendo em vista o espírito de corpo, foi que membros da magistratura também se manifestassem: a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) solicitaram, em 14 de abril deste ano, que o ministro apresentasse enfim seu voto.
Cumpre notar que o tempo em que o processo ficou com Gilmar Mendes não é nada excepcional dentro do padrão do STF de descumprimento sistemático do próprio regimento, segundo pesquisa da FGV Rio. No relatório O Supremo e o tempo, de Joaquim Falcão, Ivan A. Hartmann e Vitor P. Chaves, com dados até o fim de 2013, lemos que
O total de pedidos de vista formulados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal é de 2.987. Desses, 124 não haviam ainda sido devolvidos até 31 de dezembro de 2013. Os outros 2.863 já haviam sido devolvidos. A média de duração daqueles ainda não devolvidos é de 1.095 dias. Entre os já devolvidos é de 346 dias. Há vários processos com múltiplos pedidos, seja do mesmo ministro, seja de ministros diferentes. Se contarmos apenas aqueles processos que passaram por uma decisão colegiada no mesmo período – 99.876 processos, então os pedidos de vista foram feitos em 2,2% daqueles processos nos quais eram uma possibilidade.
Entre os pedidos de vista devolvidos, 2.215 foram fora do prazo. Outros 648 foram devolvidos dentro do prazo: 22,6% do total.

O relatório mostra que há pedidos de vista que superam o tempo de 19 anos. Ivan Hartmann afirma que, na prática, os ministros do STF exercem um "poder de veto" "ilegal". E antidemocrático, evidentemente.
Neste mês, a Câmara dos Deputados aprovou as doações ocultas para os partidos políticos, previsão de perspectiva paradisíaca para corruptores e corrompidos, eis que acaba, ou acabaria, com toda a transparência no financiamento de políticos, atrapalhando investigações criminais na matéria. Em todo esse processo, devemos ressaltar o papel  primordial do Estado do Rio de Janeiro, pois dele vieram o principal articulador da reforma, o deputado (investigado na operação Lava Jato) Eduardo Cunha (PMDB) e o seu relator na Câmara, Rodrigo Maia (DEM).
Com tal andamento no Congresso, que seguiu em sentido contrário ao que o STF iria decidir, não fora o pedido de vista de Gilmar Mendes, este ministro enfim devolveu o processo (nada menos do que no dia seguinte ao da aprovação da reforma política), não sem uma modesta autorreferência: "foi a mão de Deus que me fez pedir vista".
Já fiz notar que o ministro teria que votar contra si mesmo em duplo embaraço dobrado. Tentei entender como ele o fez, identificando os métodos de hermenêutica constitucional que me pareceram empregados.

a) O uso da obviedade inconsequente como razão de decidir: O nobre ministro revela-nos que "A relação entre dinheiro e política é extremamente complexa e uma breve pesquisa sobre a realidade de outros países comprova que não há fórmulas universais para a regulação da matéria."
De fato, não há formas universais nem para os deuses que pretendem ser universais, muito menos no direito. Essa obviedade foi o que conseguiu deduzir a partir do que fez sob o nome de direito comparado.

b) Rebaixamento metodológico do direito comparado: É absurdo teoricamente, embora comum no Judiciário brasileiro, cujos padrões técnicos não costumam ser exigentes na matéria, pretender que o mero arrolamento e descrição de soluções jurídicas em países diferentes corresponda a um estudo de direito comparado. A afirmação "Para não me alongar demasiadamente na análise do direito comparado", no voto do nobre ministro, depois de superficiais arrolamento e descrição do financiamento de campanha em três países estrangeiros, é de profunda ignorância dos métodos de direito comparado, algo bem mais sério do que isso, que deveria levar em conta as diferenças estruturais dos sistemas jurídicos e políticos envolvidos (para evitar, por exemplo, a ideia de que a norma de um sistema poderia ser tranquilamente "transplantada" para outro) e que deveria começar pela justificativa da escolha dos sistemas que estão sendo comparados, o que não é feito em momento algum: por que os casos dos Estados Unidos, França e Alemanha seriam os mais relevantes para o Brasil?
Rebaixar o direito comparado a obviedades inconsequentes teve, claro, repercussões nas razões de decidir.
Note-se que a análise de Gilmar Mendes passa por cima deste fato que a OAB esclareceu em dezembro de 2013: "A proibição discutida agora no Brasil já é realidade em 36 países, entre eles França, Canadá, Portugal, Bélgica e EUA. Quase a metade dos países do continente americano também proíbe empresas de fazerem doações eleitorais. Na França, a proibição ocorre desde 1995."

c) Edulcoramento da história: Os passeios supostamente históricos nas linhas do tempo que alguns magistrados fazem são, em geral, completamente estranhas a qualquer noção consequente de tempo histórico, mas parecem ser apreciadas pelos seus autores em razão do verniz intelectual que elas aparentemente concedem. É melhor não fazê-las, porém o voto do ministro não a evita, dizendo mesmo, a respeito da Primeira República, que  "a totalização da apuração dos votos era realizada pela denominada Comissão de Verificação da Câmara dos Deputados. Este órgão poderia funcionar normalmente, mas tinha natureza eminentemente política, visando a preservar os interesses do Governo Central. " Eufemismos para fraude eleitoral e pacto oligárquico.
Esse ponto não foi importante, por si, para a decisão tomada (ao contrário do que ocorreu na ADPF da lei de anistia, em que o absurdo histórico era necessário para a decisão tomada), porém encaminhava logicamente para o ponto seguinte.

d) A negação da realidade como razão de decidir: O financiamento privado das campanhas tem sido uma fonte de corrupção, e não o oposto, uma garantia de lisura e moralidade administrativa. As alegações do ministro sobre as virtudes do financiamento privado não se escoram em dados reais. Cito apenas Silvio Caccia Bava, do Le Monde Diplomatique brasileiro, sobre a atual legislatura:
62% dos deputados federais eleitos – 320 parlamentares – receberam doações de apenas 5% das empresas que financiaram campanhas eleitorais naquele ano. E assim se formam as bancadas dos interesses privados. Esses gastos também são considerados um bom investimento, uma vez que, para cada real investido nas campanhas eleitorais, as empresas obtêm R$ 8,50 em contratos públicos, segundo pesquisa do Instituto Kellogg Brasil. Entre as principais empresas doadoras em 2010 estão: Camargo Corrêa, OAS, Andrade Gutierrez, Siderúrgica Gerdau, Banco Alvorada (Bradesco), BMG, Itaú/Unibanco, Santander, JBS/Friboi, Ambev, Votorantim Comércio de Energia. Os investimentos são altos.
Gilmar Mendes imagina o contrário, pressupondo que as empresas gostam de financiar a oposição, e não o governo, e por isso sem essas doações a oposição não poderia competir: "não apenas o financiamento privado não viola a isonomia, como tem a ela servido, visto que, sem que pudesse contar com o apoio financeiro das pessoas jurídicas, os partidos de oposição não teriam a menor chance de competir em níveis razoáveis com o partido que ocupa o Governo. Assim, a legislação atual é garantidora de alguma competição democrático-eleitoral no país."
Não se trata apenas de mera criação de uma realidade paralela: há outro problema, essa realidade é inconsistente internamente, pois, ao mesmo tempo em que afirma que o financiamento privado é que garante a competitividade, ele denuncia que o sistema atual faz o PT ser o maior beneficiário das doações:
E é nessa quadra da história, com o alforje cheio, que o Partido dos Trabalhadores defende a vedação, ou ao menos a expressiva restrição, do financiamento privado de campanha. É impossível acreditar que o Partido que mais se beneficiou de doações privadas, legais ou não, nos últimos anos, tenha agora se convertido a uma posição contrária a qualquer espécie particular na política eleitoral.
O voto do ministro possui nítido teor partidário, em um ataque aberto ao PT, o que logo faz lembrar que ele foi nomeado pelo presidente da república anterior a Lula. Uma vez que o voto partia da negação da realidade tal qual a conhecemos, não era de se estranhar que ele partisse para ficções conspirativas, envolvendo PT e OAB em um conluio inédito, aproveitando para atacar um de seus colegas e o Plano Nacional de Direitos Humanos, é realmente inesperada em sua ausência de suporte fático e de ousadia imaginativa:
Segundo consta da própria inicial (nota 2), a petição baseou-se na produção intelectual dos juristas Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento (Professor da UERJ), Daniela Teixeira e Eduardo Mendonça.
Portanto, como podemos constatar da análise dos diversos documentos que compõem a própria ação, sua propositura resultou de um esforço conjunto de diversos advogados do Rio de Janeiro, a partir do relatório do Prof. Roberto Barroso, em promover a reforma política pela via judicial, uma vez que não haveria consenso entre os parlamentares.
Mas, vejam, esta tem sido, também, a preocupação do Partido que está no poder há 4 mandatos. Tanto que chegaram a incluir o apoio a projetos legislativos que veiculassem a exclusividade do financiamento público de campanhas eleitorais entre os objetivos estratégicos do Partido, que já se confundia com o Estado, lançados no Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH3 (Decreto 7.037/2009, atualizado pelo Decreto 7.177/2010).
O que houve, portanto, foi a absorção de um projeto de poder, defendido por um partido que já se confundia com o Estado brasileiro, por parte da sociedade civil organizada, no caso pela OAB.
O ministro Lewandowski, que presidia a sessão de julgamento, concedeu a fala ao representante da OAB, que teve que explicar que até que o então presidente do Conselho Federal da OAB, Ophir Cavacante Junior, era sabidamente um crítico do PT (cliquem neste pequeno exemplo). Com a elegância característica, Gilmar Mendes retirou-se da sala: https://www.youtube.com/watch?t=2&v=2rCsjFXGiQ8 O Colégio de Presidentes dos Conselhos Seccionais de OAB divulgou uma nota no mesmo dia  17 contra o comportamento do nobre ministro.
O caráter partidário do voto evidencia-se principalmente, no entanto, em ignorar os interesses políticos, de grande monta, dos políticos profissionais que defendem o financiamento privado. Nesse sentido, o voto é mais revelador pelo que calou do que pelo que afirmou sobre supostas conspirações.
O voto foi mudo em relação a diversos partidos e políticos, bem como, em certo sentido, deixou sob silêncio a Constituição da República.

e) Fuga à Constituição como método de hermenêutica constitucional: Pode-se perguntar: onde está o fundamento constitucional do voto do nobre ministro? Como ressaltei, a petição inicial da OAB soube estrategicamente escorar-se em posições do próprio Gilmar Mendes para que ele tivesse dificuldades em afirmar, como fez, que a inicial encontra "dificuldades em demonstrar ofensa direta à Constituição. Alega-se afronta aos princípios democrático, republicano, da igualdade e da proporcionalidade."
Ele não deixa de fazer a afirmação, mas não se mostrou capaz de fundamentá-la em uma análise de princípios constitucionais, que não é de fato realizada, e sim substituída por ataques à OAB, ao PT e ficções conspiratórias.
Nesse sentido, o voto não atende à exigência constitucional de motivação das decisões judiciais. Ao lê-lo, parece que a Operação Lava Jato (que envolve Eduardo Cunha e políticos da oposição ao PT, mas isso não é levado em conta pelo nobre ministro) é o constituinte originário do Brasil, combinada com a ideia absurda que as doações da empresa asseguram a igualdade de condições entre os partidos:
Ora, a competição eleitoral, corolário do princípio democrático, tem sido viabilizada justamente pelas contribuições privadas, em especial, das pessoas jurídicas. A Operação Lava Jato revelou ao país que o partido do poder já independe de doações eleitorais, uma vez que arrecadou somas suficientes ao financiamento de campanhas até 2038, pelo menos.
Se é assim, evidente que a procedência desta ação direta implicaria a violação da igualdade de chances, que decorre dos princípios democrático e republicano, tendo em vista que a própria alternância de poder restaria comprometida, risco real vivenciado pelo país e que por ora parece estar afastado, em razão das revelações feitas pela Operação Lava Jato.

Alguns podem indagar qual é o fundamento constitucional dessa posição, ou mesmo se se trata de uma decisão judicial. O nível da argumentação jurídica chega aos píncaros nesta observação: "A partir da interpretação que pretendem dar a esses princípios, em breve estaremos, com base neles, a anular os 7 x 1 que a seleção brasileira levou da Alemanha na Copa de 2014."
Não lembro se Gilmar Mendes já criticou Lula pelo abuso de metáforas futebolísticas. De qualquer forma, pode-se ver aí talvez uma influência estilística do ex-presidente no pensamento constitucional do nobre ministro.
Influências de constitucionalistas, que, no entanto, seriam mais previsíveis, não são fáceis de discernir. Kelsen é citado, porém para o estremecimento dos restos do velho jurista. Desse ponto, parto para o último que decido destacar de um voto tão rico em interesse político e sociológico, mas não em termos de teoria constitucional.

f) Fuga à teoria como método de decisão judicial: O relator da ação, ministro Luiz Fux, citou Dworkin no seu voto, que o Supremo Tribunal Federal já publicou na internet (embora esteja em revisão: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4650relator.pdf):


O importante caso a que Dworkin se refere, e chama de devastador, Citizens United versus Federal Election Commission, é referido muito ligeiramente no voto de Gilmar Mendes como "polêmico", sem uma análise aprofundada.
Li recentemente um artigo de um advogado brasileiro lembrando que essa causa não era igual à ADI 4650, o que é verdade, mas que perdia de vista, em primeiro lugar, o emaranhado da legislação eleitoral dos EUA que, conjugando formas múltiplas de doação com seus velhusco sistema eleitoral, serve perfeitamente para impedir que as minorias possam ser representadas (a imprensa plutocrática é tão bem sucedida em desinformar que há muitos que acham que os EUA adotam formalmente um sistema bipartidário...), e assegurar a substituição da vontade popular pelo arbítrio das grandes corporações.
Em segundo lugar, aquele artigo perdia de vista que a questão fundamental era a mesma, isto é, a de que o capitalismo tende sempre à plutocracia, e de que a limitação do poder político do capital é uma tentativa de compatibilizá-lo com a democracia. Tentativa falhada neste caso: revela-o a obscena tese jurídica de que o dinheiro é igual à fala, pressuposta no abrigo do financiamento eleitoral pela liberdade de expressão; dessa forma, realizam-se sorrateiramente, por meio das leis de financiamento, os efeitos do voto censitário dentro de um sistema com sufrágio universal.
No seu último livro, Crônicas do estado de exceção (Azougue, 2014), Idelber Avelar explica as duras consequências do soft money e comenta a decisão naquele caso, a qual vários juristas, entre eles Dworkin, criticaram:
[...] em nome próprio, as empresas já podem (de certa forma, sempre puderam, mas agora o fazem sancionadas por uma decisão da Suprema Corte) gastar o quanto quiserem para promover ou atacar quaisquer candidatos. A decisão, conhecida nos EUA como a que sacramentou o estatuto de personhood para as corporações (ou seja, deu a elas a condição de pessoa humana), trata o poder de o dinheiro comprar um pleito eleitoral como uma questão de liberdade de expressão.[...]
A decisão da Suprema Corte no caso Citizens United versus FEC confere ao capital um enorme poder de chantagem, já que qualquer político sabe que uma bateria de comerciais negativos na televisão, financiados com dinheiro ilimitado, pode sepultar uma candidatura, mesmo a de um deputado ou senador favorito à reeleição.


Não vou citar, no entanto, nenhum autor socialista, tampouco algum que faça uma crítica radical à democracia representativa. Vou apenas, já que os EUA foram invocados, indicar argumentos de Dworkin e Rawls, autores ignorados no voto do nobre ministro Gilmar Mendes.
O livro de Dworkin A virtude soberana: A teoria e a prática da igualdade, publicado no Brasil em 2005 em edição da Martins Fontes. O capítulo 10, "Liberdade de expressão, política e as dimensões da democracia", é anterior a essa decisão, mas pode servir para o debate: "o autogoverno significa mais que o sufrágio igualitário e eleições frequentes. Significa uma parcela de iguais, raciocinar juntos sobre o bem comum. Não poderemos nunca alcançar esse ideal plenamente -- nenhuma nação o poderia. Mas quando políticos estão encharcados de dinheiro, como nossos políticos estão, então nos arriscamos, não à simples imperfeição, mas à hipocrisia."
A petição da OAB cita obra mais recente de Rawls, porém o tema já o preocupava desde sua obra fundadora, Uma teoria da justiça. No capítulo IV, "Equal Liberty", no ponto 36, "Justice and the Constitution", ao tratar do financiamento públicos dos partidos políticos, lemos que "What is necessary is that political parties be autonomous with respect to private demands, that is, demands not expressed in the public forum and argued for openly by reference to a conception of the public good. If society does not bear the costs of organization, and party funds need to be solicited from the more advantaged social and economic interests, the pleadings of these groups are bound to receive excessive attention." -- "excessiva atenção", maravilhoso o eufemismo do filósofo!
No livro Liberalismo político, Rawls volta a essa questão no capítulo "A ideia da razão pública revisitada". Essa aposta no princípio da publicidade, de origem kantiana, deve sempre ressaltar que a lógica desse princípio não é a do mercado; em caso contrário, os interesses econômicos irão exatamente impedir o debate público sobre as questões que questionem sua dominação.

Não há dúvida de que isso ocorre também no Brasil, país em que a concentração dos meios de comunicação é notável. Certamente se manifestará também nesse campo a oposição à decisão recente do STF.

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