O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Vitor Silva Tavares, 1937-2015, o grande editor português

Morreu nesta segunda, de manhã, Vitor Silva Tavares em razão de uma infecção cardíaca. Alberto Pimenta, que publicou tantos livros com ele, me telefonou para dar a notícia, e O Público publicou na internet uma boa matéria, cuja leitura recomendo, "Morreu Vitor Silva Tavares, um editor radical": http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/morreu-vitor-silva-tavares-editor-da-etc-1708485
Radical, por que razão? Por ser realmente um editor, por publicar apenas o que gostava, por não ser um prestador de serviços editoriais ou simplesmente um farejador das modas do mercado? Por isso também. Há a trajetória dele, de jornalista, editor e escritor (bissexto), sempre em luta com a censura do fascismo português, seja na metrópole, seja em Angola. Sua trajetória dialoga diretamente com a história portuguesa recente, do fim do salazarismo ao desmonte neoliberal de Portugal de hoje.
Como, no Brasil, não se sabe tanto assim da literatura e do meio editorial portugueses, já ouvi bobagens sobre ele como afirmar que era um editor de "clássicos". Não é verdade: ele publicou diversos estreantes (inclusive estreantes brasileiros, como foi meu caso em 2002, uma opção nada comercial) e, dos clássicos, muitas vezes optou por títulos desconhecidos, como fez com Berlioz e seu Eufonia. Editou o então jovem Herberto Helder na Ulisseia e, depois, na & etc. Editou Adília Lopes e tantos outros.


A revista & etc  foi criada em janeiro de 1973 e terminou em outubro de 1974, permanecendo a editora. Vejam no Centro de Artes as capas dos 208 primeiros livros e a variedade dos autores.
Preconceitos de classe não eram com ele, tampouco os de gênero; publicou Djuna Barnes, por exemplo, e outras autoras lésbicas. Ele não se distinguia apenas pelo que publicava, mas também como o fazia: além do cuidado (diversos livros seus são primorosos no projeto gráfico, e a identidade visual da editora é sempre reconhecível no quadrado da capa dos objetos retangulares que ele produzia), seu modo de produção era de esquerda: não ficava com os direitos autorais, nada cobrava dos autores, não especulava, e o dinheiro que fazia, quando fazia, com um livro, servia para produzir outros. Nunca reeditava, com exceção do livro que a justiça portuguesa apreendeu e queimou (!) nos anos 1980, O Bispo de Beja. Ele nunca aceitava subsídios públicos ou de outra natureza, de outra forma não se sentiria independente. Na entrevista que deu a mim e a Fabio Weintraub em 2007, ele explicou desta forma:
VST - Quando noutras entrevistas me perguntam: "Que linhas segue o & etc do ponto de vista conteudístico?" - tenho grande dificuldade em responder. O mais fácil é apresentar o catálogo e pedir que tirem as próprias conclusões. As linhas de força estão patentes no catálogo. Não é uma, serão várias. Então qual é o denominador comum? O modo de produção. Esse é exatamente o mesmo hoje, como quando nasceu. E é esse modo de produção que é político. Porque é fácil fazer catilinárias contra a exploração capitalista, contra a globalização das multinacionais. Eu, em qualquer café, posso estar a falar três horas sobre isso e, entretanto, na minha vidinha, no meu comportamento, cá estou eu. Não é verdade? Ora, aqui temos outro modo de produção - aí está a resposta, a resistência, a resistência política. Aí também se notam certas coisas. O Lafargue que eu publiquei não foi apenas o da Religião do Capital. No ano em que se comemorou o grande centenário do Victor Hugo, publiquei um livro do Lafargue que arrasa com o Hugo...
K - A lenda do Victor Hugo...
VST - ... a que eu pus o título O anti-Hugo. A gente lê esse livrinho do Lafargue e desaparece o Victor Hugo como pai da humanidade.



Nada mais diferente do que as empresas que publicam Marx mas se apropriam de trabalho alheio e chamam os políticos repressores e não os movimentos sociais para falar de rebeldia.
Em 2013, a revista LER, que sempre ignorou a editora, concedeu-lhe um prêmio "carreira", que ele devidamente recusou; o comercialismo desse periódico era-lhe claramente incompatível. Essa recusa não foi noticiada na imprensa portuguesa, também uma agente desse comercialismo. Ignoro se, com sua morte, esse fato será finalmente divulgado por esses veículos.
Descobri a editora por meio da obra de Alberto Pimenta, que Vitor Silva Tavares publicava na época (ele o fez até há poucos anos; Pimenta passou então a publicar com outras editoras, especialmente de jovens). Ao lado, pode-se ver a capa do livro de 2005, Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, sobre a invasão dos EUA no Iraque, tema que continua premente, como a situação dos imigrantes do Oriente Médio nos mostra, e sua rejeição no continente europeu.
Vitor Silva Tavares, ao contrário da Europa de hoje, deixava suas portas abertas. No subterrâneo que a editora ocupava na rua da Emenda, em Lisboa, bastava apertar a campainha que ele abria o portão sem perguntar quem era o visitante. Pude testemunhar isso, fazia parte de seu temperamento. Na última vez em que estive em Portugal, no entanto, não consegui encontrá-lo: não era sempre que estava em seu subterrâneo.
Em O Público, Alexandra Lucas Coelho ressalta a história da apreensão de O Bispo de Beja: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/vitor-silva-tavares--etc-1613846. Hugo Pinto Santos explica como se compôs o último livro de Vitor Silva Tavares, Púsias: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/porta-fora-da-aula-de-poesia-1688041 Ainda não o tenho.
Tirei a foto acima em julho de 2007, dentro da editora (um espaço simples e orgulhoso), quando o entrevistamos para o finado K Jornal de Crítica. O jornal publicou, por falta de espaço, apenas parte da conversa. Neste blogue, pode ser lida inteira.


Em  "Oxigênios anárquicos", ele falou do seu passado em Angola, quando tentaram matá-lo em razão das denúncias que fazia como jornalista, e da escravidão, que ele testemunhou e os portugueses, na segunda metade do século XX, continuavam a impor na África.
É interessante o que conta de Almada Negreiros, Guimarães Rosa e das histórias com a censura, durante o salazarismo e depois -- sua editora foi a única que sofreu apreensão (e queima) de livros após a Revolução dos Cravos, e por uma obra que havia sido liberada originalmente em 1910...

É necessário, porém, destacar o volume que a Letra Livre publicou em homenagem aos 40 anos da editora 2013, & etc: uma editora no subterrâneo. O livro, coordenado por Paulo da Costa Domingos, apresenta textos de Vitor Silva Tavares e de outros escritores e colaboradores, bem como bastante arte, incluindo reprodução das capas, como as que tentei reproduzir ao lado.
É um volume importante para entender não só este inquieto editor, mas a história de Portugal nestas últimas décadas.
Algo do espírito de Vitor Silva Tavares fica em gerações mais jovens (com que ele mantinha contato), como na Averno do poeta Manuel de Freitas. Ele participa do livro publicado pela Letra Livre; cito-o  para terminar esta nota:
As décadas foram passando, e não lembro de muitas outras editoras em que a simples constatação da chancela me fizesse acreditar num livro, mesmo que nada soubesse do autor. Talvez a Hiena, certamente a Frenesi. Mas, já em pleno século XXI, o horizonte tornou-se desastroso; até editoras históricas, com algum à-vontade monetário, perderam o mínimo traço de personalidade, abdicaram contabilisticamente da poesia e de outros géneros suspeitos, tornaram-se bordéis contíguos e idênticos. Não assim a & etc, que, atenta ao que de melhor se vai fazendo em Portugal, editou Jorge Roque, José Miguel Silva ou Vítor Nogueira. Também editou, é certo, poetas que tenho muita dificuldade em admirar. Mas esse assumido sincretismo constitui, afinal, um dos méritos principais desta editora. [...] A & etc nunca foi um dique, nunca obedeceu a cartilhas. Será, isso sim, uma porta aberta para todos aqueles que não usam chaves emprestadas.

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