O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Desarquivando o Brasil CLXVI: Aldir Blanc, a censura e a revolta

Aldir Blanc, aos 73 anos, deixou-nos neste dia, mais uma vítima do coronavírus (segundo Jair Bolsonaro, uma "gripezinha"). Seu gênio para a poesia da canção não se esgotou, muito pelo contrário, na celebrada parceria com João Bosco. Apenas para dar o exemplo de um dos momentos mais fulgurantes dessa obra está em "Catavento e girassol", uma de suas músicas com Guinga, que retrata a cidade partida do Rio de Janeiro em uma canção de amor problemático (cito "Meu catavento tem dentro/ O vento escancarado do Arpoador/ Teu girassol tem de fora/ O escondido do Engenho de Dentro da flor").
O importante disco da grande voz da cantora e atriz Adriana Capparelli, "Pequeno circo íntimo", concede-nos um panorama largo dessas parcerias da grandeza poética de Blanc: https://tratore.com.br/um_cd.php?id=21481. Além de João Bosco e Guinga, temos parceiras com outros grandes músicos: Cristóvão Bastos, Moacyr Luz, Ivan Lins e Roberto Menescal e Silvio da Silva Jr.
No entanto, quero lembrar o Aldir Blanc daquela parceria lançada por Elis Regina por conta deste tópico de justiça de transição, pois a parceria nasceu e produziu a maior parte de seus frutos durante a ditadura militar. Um dos frutos da parceria foi o hino informal da anistia, gravado pela primeira vez no disco "Elis, essa mulher", de 1979, a canção "O bêbado e a equilibrista". Como hoje mesmo já ouvi jornalista errando o título da música, seja por machismo estrutural, seja por falta de interpretação de texto, e já tive uma discussão sobre isso no trabalho, lembro que é A equilibrista; na música, quem dança na corda bamba de sombrinha é a esperança, não o bêbado.
Cantei-a algumas vezes no CoralUSP no arranjo de Damiano Cozzella. O público sempre gostava. Na época, foi liberada para a censura; copio nesta nota documentos que estão no Arquivo Nacional, no Fundo Divisão de Censura das Diversões Públicas:


"Liberada para gravação e divulgação pública". Outro samba, anterior, teve mais problemas. A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". No capítulo "Perseguição à população e ao movimento negros", do tomo I, parte II, "Grupos Sociais e Movimentos Perseguidos ou Atingidos Pela Ditadura" do Relatório, a censura à canção "O Mestre-sala dos mares" é mencionada como exemplo do racismo da doutrina de segurança nacional:
Um dos casos célebres foi o do samba “O Mestre Sala dos mares”, de João Bosco e Aldir Blanc, que cantava o líder negro da Revolta da Chibata, João Cândido. O samba foi gravado por Elis Regina em 1974, com a letra alterada por força da censura.
O marinheiro João Cândido liderou essa revolta contra os castigos corporais, típicos dos que se usavam contra os escravos (como a chibata), que a Marinha adotava contra os marinheiros. A revolta ocorreu em novembro de 1910. A Marinha desrespeitou a anistia votada pelo Congresso Nacional, assassinou vários dos rebelados. João Cândido morreu no ostracismo, expulso das Forças Armadas.
Ele ficou conhecido como “Almirante Negro” pelo povo. João Bosco e Aldir Blanc, no entanto, foram impedidos de chamá-lo assim pela censura – tornou-se um “navegante negro” – e a referência à tortura contra os negros foi silenciada: o verso, originalmente “rubras cascatas jorravam das costas dos negros”, teve que ser alterado para “rubras cascatas jorravam das costas dos santos”. Lembra Aldir Blanc que ele e Bosco foram acusados pelos censores de fazer “apologia ao negro”. 
A ditadura militar era, claro, um regime racista, o que é comum entre regimes genocidas, como este o foi. Cito mais um trecho do Relatório:
A doutrina de segurança nacional era intrinsecamente racista [...] O racismo dessa doutrina manifestava-se, entre outros fatores, na negação oficial do racismo e nas práticas discriminatórias do regime contra a população negra, que não se davam apenas no campo da segurança pública: havia a censura, que também seguia a ideologia do branqueamento e da invisibilização do racismo. 
Fora do Brasil, no México, Elis Regina cantou a letra não censurada, com "marinheiro" , "Almirante Negro", "fragatas" e a tortura aos negros: https://www.youtube.com/watch?v=0rlMoZMZWaA. Trata-se de um registro de 1981 feito pela televisão mexicana. Na primeira versão do samba, que tinha como título "O dragão do mar", foram passagens que incomodaram os censores.


O veto apontou conteúdo esdrúxulo e mensagem negativa, por causa do tema dos castigos de chibata na Marinha, as "lutas inglórias", "o trabalhador do cais e sua negritude sofrida", bem como a própria Revolta histórica dos marinheiros contra seus superiores:



A letra teve de ser alterada e suavizada; "gritava não" decaiu em "gritava então". Se a palavra "chibatas" acabou permanecendo, as referências aos negros foram cortadas, salvo em "o navegante negro", embora aqui também esteja a mão do racismo da censura: deveria ser o "Almirante", e não o "navegante".
João Bosco ainda canta a letra modificada pela chibata. Elis, contudo, sempre foi a voz da revolta (entre outras canções no México, ela interpreta "Conversando no bar/ Saudades dos aviões da Panair", de Milton Nascimento e Fernando Brant, outra crítica à ditadura daquela época).
No livro de Luiz Fernando Vianna, Aldir Blanc: Resposta ao tempo - Vida e letras (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013), temos essa passagem do compositor sobre suas filhas mortas e outras perdas:
Tive duas mortes fundamentais muito cedo, as gêmeas. Isso me ancora a uma espécie de respeito pelo passado. Depois, começa a morrer tudo em volta. Meu caderno de telefones é um cemitério: uma cruz atrás da outra. Estou pressionado por essa evidência [...]
De fato, ele partiu numa época de pandemia e de outras crises no Brasil e no mundo, em que parece "morrer tudo em volta".


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