O nome que as Forças Armadas desejavam emplacar à frente da educação brasileira desde, pelo menos, março de 2019 (como lembrou
Cyrus Afshar), Carlos Alberto Decotelli da Silva, foi apontado como ministro e recebeu muitos elogios em certa imprensa, tendo recebido matérias de capa do
Estado de S.Paulo e d'
O Globo no dia em que escrevo estas linhas.
No entanto, ele apresenta-se como doutor sem ter o título, segundo o próprio reitor da Universidade de Rosário,
Franco Bartolacci, instituição argentina em que declarou ter cursado o doutorado:
Seria mais um exemplo de título acadêmico imaginário na atual administração? Os outros casos de títulos fictícios, no previsível exercício da ética pública própria do governo Bolsonaro, não suscitaram nenhuma consequência institucional (um exemplo é o do ministro condenado por improbidade administrativa). Desta vez a questão seria ainda mais séria, em princípio, por envolver o próprio Ministério da Educação. Vejam como se iniciava o currículo em uma primeira versão do dia 26 de junho, especialmente em "Formação acadêmica":
O ministro informava que havia concluído o doutorado em 2009 na Universidade de Rosário sob a orientação de um professor brasileiro, Antônio de Araujo Freitas Junior, com a tese "Gestão de Riscos na Modelagem dos Preços da Soja".
No mesmo dia, após a manifestação do reitor da Universidade de Rosário, ele alterou o currículo para criar uma categoria inexistente na legislação brasileira, a do doutorado sem tese e sem orientador:
Quem não defende tese não é doutor, simples assim (e não se trata, no caso, de um título por notório saber, até por falta de motivo para tanto). A jornalista
Mônica Bergamo informou que a tese de Decotelli teria sido
reprovada (algo relativamente raro no doutorado).
O currículo lattes corresponde ao cerne de uma plataforma dos pesquisadores nacionais alimentada por nós mesmos; quando o publicamos nessa plataforma gratuita, fazemos uma declaração pública de que os dados são verdadeiros, "em observância aos artigos 297-299 do Código Penal Brasileiro":
Trata-se, nada menos, dos
crimes de falsificação de documento público, falsificação de documento particular e falsidade ideológica.
Um jornalismo de
qualidade menos intensa simplesmente se preocupou em reproduzir declarações do próprio ministério sobre o assunto, o de que o ministro "concluiu créditos" do curso. Isso não significa ter concluído o doutorado - para tanto, é necessário defender (com sucesso) uma tese diante de uma banca de professores internos e externos à instituição.
Entretanto, outra simples averiguação do próprio currículo lattes parece apontar que talvez a declaração do ministro seja realmente falsa: o currículo do professor que era indicado como seu orientador,
Antonio de Araujo Freitas Junior, NÃO INCLUI Decotelli entre suas orientações de doutorado:
O currículo foi atualizado em maio de 2020. Esta ausência é estranhíssima e corresponde a mais um indício de que o título de doutorado do novo ministro da educação do governo Bolsonaro não existiria.
O ministro anterior, que saiu às pressas do Brasil para os Estados Unidos, não tinha doutorado e não pretendeu fingir o oposto; como expliquei no ano passado,
o conselho universitário da Unifesp resolveu autorizar excepcionalmente um concurso que não exigisse doutorado para o cargo para o qual Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub acabou passando.
Um detalhe inquietante: tanto Decotelli da Silva quanto Araujo Junior, que foi apontado como seu orientador na versão anterior do currículo, trabalham na mesma instituição, a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro; seria possível que ela não desconhecesse até este momento, em 26 de junho, que o doutorado não existiu, ou não com este orientador (que é a versão que Decotelli passou a dar nesse mesmo dia)? Os currículos lattes são coletados pelas instituições de ensino todo semestre.
Como ela poderia ter aceito essa informação se um membro da própria Diretoria Acadêmica, o professor Araujo Junior, poderia facilmente desmenti-la?
Outra questão é o pós-doutorado na Bergische Universität Wuppertal. Curiosamente, o nome de Decotelli da Silva realmente aparece no sítio da instituição, porém nenhuma das ligações correspondentes está a funcionar, como esta entrevista sobre suas atividades de pesquisa:
Archiv - UWID (https://www.uwid.uni-wuppertal.de/nc/de/news/archiv/blaettern/6.html)
erfüllen muss:- Es soll zum einen verschi... mehr Interview mit Prof. Carlos Alberto Decotelli über seine Forschungsaktivitäten. 1. Wie war Ihr erster Eindruck einer deutschen Universität? Einhergehend mit der Frage
nach dem
https://www.uwid.uni-wuppertal.de/nc/de/news/archiv/blaettern/6.html (https://www.uwid.uni-wuppertal.de/nc/de/news/archiv/blaettern/6.html)
20 Feb 2019
Quem sabe poderemos consultar depois? De qualquer forma, um não doutor não pode fazer pesquisa de pós-doutorado.
As pessoas que não pertencem ao meio acadêmico provavelmente não poderão entender bem as implicações de uma eventual declaração falsa de título acadêmico de um ministro da educação (embora, para os padrões éticos deste governo, não haja problema em um ministro atuar na área em que já foi condenado por improbidade administrativa). O doutorado, para um pesquisador, confere um grau de autonomia que os outros títulos, com menos valor (graduação, especialização, mestrado), não possuem, como de pedir financiamentos, liderar grupos de pesquisa, ascender a cargos mais altos na máquina universitária.
A se confirmar que o título realmente não existe, veremos a que ponto chegaram a educação e a ética pública neste novo governo militar, que já prestigiou Decotelli com a presidência do
Fundo Nacional da Educação.