O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCVI: Jair Bolsonaro, Carlos Alberto Brilhante Ustra e outros militares

Esboço esta nota por causa da trama recentemente descoberta de militares que conspiraram em 2022 para matar Lula e Alckmin, depois de eleitos em 2022, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre Moraes.

Quando resolvi escrever um livro sobre o processo em que a família Almeida Teles conseguiu o reconhecimento judicial, o Ilícito absoluto, não imaginava o quanto teria mencionar Jair Bolsonaro. São mais de noventa menções no texto. É claro que eu sabia que citaria o voto que ele proferiu em 2016, humilhando o país diante do mundo por homenagear um torturador no parlamento contra a presidenta eleita, Dilma Rousseff. 

Esse voto ignominioso, lido no plenário sem que nenhum deputado lembrasse que Carlos Alberto Brilhante Ustra já tinha sido declarado torturador pelo Judiciário brasileiro, aparece na introdução do livro; chamei-o de "elogio fúnebre" que "veio atrasado", pois o outro militar havia sido enterrado meses antes após uma longa doença (não, ele não foi assassinado).

Ele apareceu em parte por causa de Olavo de Carvalho, admirado tanto por Brilhante Ustra quanto por Bolsonaro; ele representou uma conexão entre ambos no soi-disant pensamento da extrema-direita brasileira, embora aquele ideólogo concedesse que a família Almeida Teles poderia ter razão no processo contra o coronel reformado.

Bolsonaro, quando subiu à presidência da república, chamou o falecido militar de herói nacional e convidou a viúva, Joseíta Brilhante Ustra, para trabalhar em sua equipe; ela recusou, mas ele a recebeu no Planalto algumas vezes.

Bolsonaro cortejou a extrema-direita militar e louvou os crimes de lesa-humanidade da ditadura mais de uma vez durante sua carreira política. Depois de Brilhante Ustra ter sido citado judicialmente pela família Almeida Teles, aconteceu um tumulto nos meios militares, que chegou ao governo federal e, em 2007, o Clube Militar no Rio de Janeiro fez um evento em defesa da extensão dos efeitos da Lei de Anistia aos agentes da repressão.

Militantes contra a violência do Estado e por memória, verdade e justiça protestaram; Brilhante Ustra saiu pela porta dos fundos e Bolsonaro soltou uma de suas frases emblemática: o "erro foi torturar e não matar", como se a ditadura não tivesse também matado. É um dos eventos em que os dois se cruzaram e que menciono no Ilícito absoluto:



Os dois se cruzaram no âmbito da extrema-direita militar e sua indisposição com o regime democrático. Não à toa, Bolsonaro passou a citar como seu livro de cabeceira A verdade sufocada, o compêndio de inverdades históricas de defesa da ditadura e ataque à esquerda e à democracia (nele, Vladimir Herzog é considerado suicida) que Brilhante Ustra publicou na época da propositura da ação pela família Almeida Teles.

Citei no livro trabalhos de Piero Leirner e de Marcelo Pimentel sobre como Bolsonaro foi escolhido informalmente como o candidato das Forças Armadas depois da reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Na minha pesquisa, achei mais uma coisa: o apoio de Brilhante Ustra desde 2005 (uma carta aberta de Joseíta) a Bolsonaro como único representante das Forças Armadas no Congresso Nacional:




Aparentemente, Bolsonaro foi grato a esse apoio em uma época em que ele não detinha tanto prestígio, e em que outros colegas provavelmente não partiriam para o banditismo político para protegê-lo.
Anos depois, Amelinha e Janaína Teles gravaram depoimentos sobre a tortura no DOI-Codi chefiado por Carlos Alberto Brilhante Ustra para o programa eleitoral de Fernando Haddad em 2018; o programa gerou repercussão e logo foi tirado do ar pela Justiça Eleitoral a pedido da campanha de Bolsonaro. Ambas receberam ameaças anônimas.
O governo de Bolsonaro repetiu várias características da ditadura militar, algumas das quais listei no trecho abaixo, e marcou-se pelo negacionismo da ciência e da história.




Não por acaso, também dois órgãos que se ocupavam da justiça de transição, tentando remediar graves violações de direitos humanos da ditadura, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia, foram extintos pelo governo de Bolsonaro. Escrevei que isso parecia dizer algo sobre as Forças Armadas de hoje; copio o trecho, pois já disse isto tantas vezes:

[...] o engavetamento das recomendações da CNV, o golpe de 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 parecem indicar algo além disso: a batalha continua, e as Forças Armadas mantêm seu ativismo pelo negacionismo histórico, isto é, pela negação dos crimes de lesa-humanidade da ditadura que comandaram.

Exatamente por isso, Bolsonaro continuava a ser uma ameaça à democracia. Francisco Assis, em 2018, na crônica para o jornal português O Público "Um canalha à porta do planalto", falou do caso da família Almeida Teles e do escândalo (ao menos para pessoas não fascistas) de o ídolo de Bolsonaro ser um torturador, um torcionário. Quatro anos depois, na campanha de 2022, Antonio Prata fez algo parecido lembrando de Janaína e Edson Teles, crianças diante dos pais torturados, em crônica publicada na Folha de S.Paulo. Escrevi no Ilícito absoluto que a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 parecia indicar que o "risco era muito real":




A tentativa de golpe de 2023 foi precedida pelo malogro em 2022 dos atentados planejados, agora sabemos. Os preparativos e a tentativa de assassinar o presidente e o vice presidente eleitos, Lula e Alckmin, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, seriam evidentemente apenas o começo: não é verossímil que o banditismo golpista parasse aí, pois já começaria em um patamar acima do primeiro de abril de 1964, que não buscou inicialmente assassinar João Goulart.
Viria enfim o trabalho "que a ditadura não fez", de matar trinta mil, segundo as palavras do Bolsonaro mais jovem, e provavelmente enganosas, pois o assassinato de indígenas bem pode ter chegado a essa cifra? 
É hora de tratar essa gente e os seus aliados, eleitos ou não, financiadores e/ou propagandistas como os inimigos da democracia que são. Falta saber se o país já possui instituições para isso, o que seria, de fato, uma novidade histórica, ao contrário de golpes de Estado, tentados ou efetivados.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCV: Mais notas sobre o Vinte de Novembro e a ditadura

2024 foi o primeiro ano em que o 20 de Novembro, o Dia da Consciência Negra, foi comemorado como feriado nacional. Tratava-se de antiga reivindicação dos movimentos negros para consagrar a data do assassinato de Zumbi, chefe do Quilombo de Palmares, pelo colonialismo português em 1695. Esse Quilombo durou um século e foi a mais longa rebelião de escravos da história.

Dez anos atrás, escrevi neste blogue "Notas sobre o 20 de Novembro e o racismo na ditadura", em que tentei explicar que a ditadura era racista e negava a discriminação racial alegando que se tratava de uma invenção dos comunistas para criar tensões sociais, em uma espécie de, segundo o jargão da doutrina de segurança nacional, de "guerra psicológica adversa".

Concluí em 2014 dizendo que a data deveria ser feriado nacional, o que finalmente foi alcançado por meio da aprovação do projeto do senador Randolphe Rodrigues, que se converteu na Lei 14.759 de 21 de dezembro de 2023.

Os movimentos negros seguiram a estratégia de alcançar vitórias locais, com feriados municipais e estaduais, para depois chegar à dimensão nacional. Eu trabalhava na Prefeitura do Rio de Janeiro quando o então prefeito Cesar Maia foi ao Judiciário tentar impedir que o 20 de Novembro se tornasse feriado municipal. A Prefeitura, felizmente, acabou derrotada com uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2000 (no Recurso Extraordinário 251.470-5 RJ) que consagrou a autonomia municipal na criação de feriados.

No caso da lei do Município e São Paulo, o julgamento no STF aconteceu em 2022, e só os Ministros indicados por Jair Bolsonaro votaram contra a instituição do feriado. Ambos julgaram que o valor histórico e cultural da data não tinha maior valor jurídico diante da competência da lei federal em matéria de Direito do Trabalho, postulando assim a inefetividade dos direitos culturais e do combate ao racismo, tal como previstos na Constituição da República. 

Houve até o momento em que a discriminação específica contra os negros foi negada em matéria de racismo religioso, alegando-se que "todos sofrem" preconceito:


O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA - Senhora Presidente, permita-me? Ministra Cármen tem razão nas suas preocupações. Em momento nenhum, divirjo nesse aspecto. Acho que esse é um ponto comum. Sei dos preconceitos, não da mesma forma, mas segmentos religiosos também sofrem preconceitos, não tão percebidos. 

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Principalmente os de matriz africana. Não são os evangélicos que sofrem, não são os católicos. 

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA - Sofrem também.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Os católicos também, como sofreram a vida inteira. Agora, no Brasil, a religiosidade dos cultos atingidos por estes bárbaros preconceitos são os de matriz africana, na esteira exatamente dessa cultura. 

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA - Todos sofrem.


Esse tipo de negação foi política de Estado durante a ditadura militar. Para acrescentar apenas mais um exemplo, entre tantos possíveis, àqueles que indiquei em 2014, menciono este relatório do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, de 11 de setembro de 1969, categorizado como pertinente ao campo "estudantil". Investigava-se a articulação de "universitários de cor" ("de cor": denominação eufêmica para os negros que era muito usada pelos racistas) por um movimento denominado "Grupo de Integração do Negro na Sociedade".



O documento, assim, como o que citarei mais adiante, está no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo. 

Destaco este trecho do relatório:




Nele, lê-se, a respeito da proposta que apareceu na Faculdade de Direito da USP, que "sua própria denominação não faz sentido, visto não existir em nosso país o problema do segregacionismo", afirmando porém que havia poucos "elementos de cor" no meio universitário - o que deveria ser prova do contrário, isto é, de que o problema efetivamente existia.

O relatório segue afirmando que o fracasso da iniciativa decorria desse problema, da falta de articulação com os movimentos (aparentemente, os policiais tinham bons contatos dentro do pessoal do Clube 220, onde teriam achado suas fontes para essa afirmação) e do AI-5 e suas "modificações ocorridas na situação política nacional" (outro eufemismo!) que desencorajaram a participação na campanha.

Aquelas modificações significavam severas limitações aos direitos de reunião, de associação e de expressão, razão pela qual o estudo da questão não pode desvincular-se da teoria dos movimentos sociais. A ditadura combatia o associativismo popular e buscava enquadrar os movimentos como ameaças à segurança nacional; tratei disso mais demoradamente em artigo, "Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância durante a ditadura militar no Brasil". 

Na segunda metade da década de 1970, com a Abertura, os movimentos negros conseguiram rearticular-se. O Movimento Negro Unificado foi criado em 1978 em São Paulo e manteve a defesa da data do 20 de Novembro, data bem mais pertinente para as lutas da população negra do que o dia da Lei Áurea, o 13 de Maio.

Como exemplo, lembro deste relatório policial sobre um debate do Dia da Consciência Negra, que ocorreu na PUC de São Paulo em 1983 e congregou Thereza Santos, que o DEOPS/SP, como se vê abaixo, não sabia quem era, Milton Barbosa, do Movimento Negro Unificado, e o sociólogo Florestan Fernandes.



A questão continuava a ser sensível e a merecer relatórios policiais. Note-se que os três debatedores eram marxistas; deles, apenas Milton Barbosa continua vivo, e segue atuante. A luta antirracista concentrava-se na esquerda, da qual Thereza Santos esperava ajuda para a "conscientização negra". Sobre a questão do 20 de Novembro, lê-se que "Florestan Fernandes disse que 13 de Maio não é uma data importante na vida do negro e sim na do branco". 

Com efeito, era o que os movimentos defendiam: a figura de Zumbi como referência, e não a da Princesa.

É significativo que, quando os militares voltaram ao poder, na administração federal passada, o candidato que lhes serviu de representante tenha ofendido quilombolas mais de uma vez, e que seu governo tenha sido marcado pelo eclipse das políticas contra a discriminação racial, o que incluiu a Fundação Palmares, cujo presidente nessa época (punido em abril de 2024 pela Controladoria-Geral da União por assédio moral) desfez homenagens a personalidades negras, tirou o machado de Xangô da identidade visual da Fundação e queria mudar-lhe o nome para Princesa Isabel! 

Agora, como seu antigo chefe, além de ter sido derrotado nas eleições de 2022 (concorreu a deputado federal), está inelegível por oito anos. Kaô Kabecilê, Xangô, o orixá da justiça.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Despacificar o país ou Uma volta pela lagoa, de Juliana Krapp

O sangue da menstruação, mas também o do aborto e até o das chacinas estão entre as coisas que escorrem nos poemas de Uma volta pela lagoa, de Juliana Krapp (Círculo de Poemas, 2023). Há momentos mais elusivos no livro, que outros leitores preferirão, porém o que me convenceu foi o cruzamento entre as violências domésticas e públicas e o seu vetor comum, o patriarcalismo.

Muito apropriadamente, o primeiro poema chama-se "Meu pai" e não tem nada da ternura que outros poetas encontram a tratar dessa figura (como "Pai", de Fabio Weintraub, em Novo endereço): pregos, revólver, cassetete, farda, cova rasa; "[...] o sangue/ do meu pai corre em mim como corre o medo de que me pegue em flagrante".

No entanto, quem morre no poema é o pai, de um tumor e, antes dele, com a ajuda da filha, o cabrito que ela ajudou a segurar enquanto o pai o abria com a faca: "[...] meu pai enterrou/ a faca bem na testa do cabrito eu vi o mesmo lugar/ onde nele crescia o tumor eu ouvi o urro eu vi o sangue/ brotar instantâneo [...]".

Pode-se pensar em tanta coisa: numa inversão da cena do sacrifício (não realizado) de Isaac por Abraão, especialmente em relação à questão do gênero, mas também numa radicalização da "estranha ideia de família/ viajando através da carne", de Drummond, com ênfase na violência. Por sinal, vejo também uma espécie de alusão a Carlos Drummond de Andrade no poema "Casa", em que a aparição dos ratos lembra "Edifício Esplendor".

Depois desse momento familiar, nada mais adequado do que outro, o que dá título ao livro, um poema sobre aborto; destaco este momento de ternura e coágulo:


Estou seguindo em velocidade mais baixa que o normal
talvez para te proteger
o que não faz sentido
algum amanhã você não vai mais existir será
apenas um pouco de sangue
extraído de mim como fazem
os homens ao sugar do chão
o petróleo penso
se o que sairá
é mesmo sangue
do meu sangue decerto
substância se avolumando em coágulo e estigma a contagem
de hormônios única prova
de uma vida
que não houve


É interessante que o poema aluda a um lugar desde o título, provavelmente no Rio de Janeiro, como outros momentos do livro. A conhecida canção de Laura Nyro sobre aborto, "Gibsom Street", faz o mesmo, pois o trauma tem um local de nascimento; revisitar o endereço reviva-o.

Mais adiante, "Caju" alude ao cemitério do Rio de Janeiro na Zona Portuária em termos quase alquímicos: a matéria morre para se transmutar: "[...] a água que cresce/ como germe escuro  ao redor calafrio/ ante a morte ante aquilo que reverbera/ manchas de sangue sob os tonéis o úmido/ tornado negro [...]"; perto do fim, chega a "nesga de mar/ insidioso que nada retém nem desloca". O poema, dessa forma, realiza com uma fluidez notável essa passagem de imagens do sangue para o mar nesse espaço de morte.

O mar ressurge em "Bandeira", poema com que me identifiquei porque escrevi certa vez (nos Cinco lugares da fúria) sobre a bandeira nacional sendo impossivelmente pintada com secreções corporais durante uma sessão de tortura. Krapp imagina isto:


[...] eles podem
sobretudo estirá-la no assoalho
onde fazem as execuções e então logo será a imagem
autêntica de um país pacificado a firmeza o arrojo
da pátria a acolher o imobilismo você pode
usar um estilete sobre base sólida para recortar as estrelas
e pregá-las na blusa à moda do Terceiro Reich


Castro Alves, claro, viu antes de todos nós que a bandeira nacional é uma mortalha (em "O navio negreiro"); no entanto, como o problema não foi resolvido, pois o Estado continua a ser uma máquina genocida, temos que continuar a dizer essas coisas.

No poema de Krapp temos uma interessante imagem da apropriação dos símbolos nacionais pelos fascistas de hoje. O termo pacificação, que foi muito usado no Rio de Janeiro pelas políticas populistas de segurança do Estado (que tratam como inimigo interno as populações periféricas e racializadas), significa a paz das valas comuns.

Krapp, falando desse sangue derramado, opera no sentido oposto: uma denúncia da suposta "paz'". Essa denúncia tem sido feita por alguns dos melhores artistas brasileiros. Na música popular, pode-se lembrar de O Rappa e sua música "Minha alma (A paz que eu não quero)", com a letra de Marcelo Yuka.

O irônico e terrível "Romance de formação", de Krapp, não é um romance, claro, porém conta bem a história da formação de crianças de classe média assistindo à tortura e à chacina de crianças pobres nas ruas:


Cadáveres na porta de casa
grumos de sangue
ainda morno
esfregados com vassoura de piaçava água
da mangueira levando tudo embora

Ora amarrados uns aos outros
ora apenas uma cabeça
apartada do corpo ou um corpo
que lembra um tronco
à semelhança da árvore
convulsionada após o incêndio


No final, vemos o eu lírico passar de uniforme escolar, desviando a vista de tudo isso, com a menção à "blusa branquíssima", que devemos ler numa chave racial, creio; afinal, o poema começa com o verso "Cadáveres por todos os lados" (isolado e sem enjambement, o que é pouco frequente nesta poética) e os meninos são chamados de ratazanas e gambás pela vizinhança. Certamente não são brancos.

Os poemas mais elusivos usam também essas imagens de sangue e violência, porém dissolvidas em outras; alguns desses poemas parecem parafrasear Ana Cristina Cesar; cito "O que é realidade o que é ficção", que é um dos pontos altos deste livro. Esta passagem poderia estar em A teus pés:


é que seus poderes estão crescendo
agora que está virando mulher
mocinha
vespa-assassina
barata medusa todo carnaval

Há até um poema chamado "Ana C." que questiona essa poeta em termos nada condescendentes, porém com a bela imagem final da "mudez lasciva de vozes/ barganhando/ na água envenenada/ sob a folhagem escura".

"Conversa séria", outro poema mais próximo do fim, parece vir de outra autora: sua ironia é mais próxima da superfície, talvez para que leitores masculinos consigam entendê-lo: "[...] não é razoável/ que você os critique por frequentarem debates políticos/ enquanto não se importam com as mulheres que limpam suas privadas [...]".

Aqui também há uma operação de despacificação desses momentos maiores ou menores da ordem patriarcal. Para a autora, todos eles são igualmente importantes. Este verso, de "Gavetas em tempos difíceis" parece sintetizar essa poética: "Parecem miudezas, são molotov".



sábado, 21 de setembro de 2024

Teoria jurídica do exorcismo ou ufologia intestinal

 

A Justiça condenou cientistas que desmentiram que os vermes fossem transmitidos por ETs.

Maurina morreu porque os vermes bloquearam seu intestino por ela ter trocado o tratamento médico pelo exorcismo de ETs.

Os exorcistas de ETs ganharam indenização milionária pela angústia e pelas lágrimas derramadas após terem sido denunciados por cientistas.

Milhares de pacotes de exorcismo foram vendidos depois da notícia de que a Justiça condenou cientistas que desmentiram que os vermes fossem transmitidos por ETs.


Os cientistas que desmentiram os vermes foram condenados pela Justiça e transmitidos para os ETs.

Maurina morreu porque seu intestino foi contrário aos vermes que bloquearam os cientistas.

Os exorcistas de ETs denunciaram que a indenização gerou angústia e lágrimas porque os cientistas morreram no cárcere sem pagar nada.

Milhares de pacotes de Justiça foram vendidos depois da notícia de que os exorcistas condenaram cientistas que desmentiram que os ETs fossem transmitidos por vermes.


Os ETs condenaram cientistas que provaram que a Justiça era transmitida por vermes.

Maurina morreu porque a Justiça bloqueou seu intestino quando ela abandonou o tratamento médico pelos cultos religiosos interplanetários.

A Justiça ganhou indenização milionária dos cientistas pela angústia e pelas lágrimas que derramou em solidariedade aos ETs e exorcistas.

Milhares de pacotes de vermes foram vendidos depois da notícia de que os ETs condenaram cientistas que desmentiram que a Justiça fosse transmitida por exorcistas.


Os vermes condenaram cientistas que desmentiram que o Sol girasse em torno da Justiça e dos ETs.

Maurina morreu porque exorcistas e vermes bloquearam a translação da Terra em torno do Sol.

Os exorcistas de ETs decretaram a paralisia da Terra diante do Sol e ganharam dos cientistas uma indenização milionária na Justiça.

Milhares de pacotes de viagem ao Sol foram vendidos depois que os cientistas abandonaram a profissão porque as verbas dos magistrados são avistadas além da Terra.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCIV: Ciclo no SESC-SP de pesquisas acadêmicas e jornalísticas sobre a ditadura


 

Começa no dia 17 de setembro o ciclo "Pesquisas acadêmicas e jornalísticas sobre a ditadura civil-militar no Brasil" com encontros semanais no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Ele vai até 24 de outubro deste ano, 2024.

Eu fui convidado para falar por causa de meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura (Patuá, 2023), que é... uma pesquisa acadêmica ou jornalística? Roubei de ambos os métodos. A editora chamou de ensaio. Trata-se principalmente de uma obra NÃO destinada a especialistas em Direito. Prefiro chamar de não ficção, simplesmente, situada no campo da justiça de transição.

Se, por causa do Ilícito absoluto, alguém estiver duvidando da qualidade da programação, veja as obras que serão discutidas pelo próprios autores:


19/9 - "Vala de Perus: uma biografia" e "Eu só disse meu nome: a história de Alexandre Vannucchi Leme em livro e podcast".
Com Camilo Vannuchi.

26/9 - A Casa da Vovó, uma biografia do DOI-Codi (1969-1991).
Com Marcelo Godoy.

3/10 - Cativeiro sem fim - as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil.
Com Eduardo Reina.

10/10 - A persistência do passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires.
Com Deborah Neves.

17/10 - Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura.
Com Pádua Fernandes.

24/10 - "Pela Memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, Presente!" e "A revolta das vísceras".
Com Mariluce Moura e Tessa Moura Lacerda.


Nesse mesmo livro meu, tive a oportunidade de usar como referência as obras de Marcelo Godoy e de Eduardo Reina que serão discutidas no Ciclo. Mariluce Moura é a única ex-presa política incluída, sua filha Tessa e Camilo Vannuchi são familiares que lidam com a memória e a verdade: ela, filha do desaparecido Gildo Macedo Lacerda  (companheiro de Mariluce), ele, primo de Alexandre Vannucchi Leme, um morto político. A historiadora Deborah Neves representa a pesquisa acadêmica. Marcelo Godoy e Eduardo Reina apresentarão suas investigações jornalísticas. Uma variedade bem-vinda de olhares, portanto.

Inscrições, de 18 a 60 reais, por meio desta ligação: https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/pesquisas-academicas-e-jornalisticas-sobre-a-ditadura-civil-militar-no-brasil


Desarquivando o Brasil CCIII: Onde está o relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva" foi a primeira criada no país, antes mesmo da Nacional, por iniciativa do então deputado estadual e ex-preso político Adriano Diogo em 2012. Esse raio que caiu no céu nublado da transição política brasileira deflagrou uma série de comissões regionais, sindicais, universitárias etc., que representaram um marco distinto do Brasil em relação a todos os outros países, que tiveram a cada vez uma só comissão funcionando. 

A Alesp ( Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) derrubou o relatório da Comissão, contudo, de maneira informal: embora a mensagem usual do servidor seja a de que o serviço está indisponível por sobrecarga ou (falta de) manutenção, às  vezes ele abre. Tentei umas cem vezes na semana anterior e em duas a página abriu.


Além de a Comissão "Rubens Paiva" ter inspirado a criação de várias outras, ela teve o mérito de introduzir no debate das comissões questões que não estavam na agenda da Comissão Nacional. Algumas delas, a "Rubens Paiva" conseguiu fazer que fossem acolhidas no relatório da CNV, como gênero, infância, povos indígenas e homossexualidades. Outras não, como a perseguição à população e ao movimento negros, tema tratado no relatório dessa comissão estadual, mas relegado pelo documento análogo da nacional.

O relatório foi apresentado em março de 2015. A Alesp jamais o imprimiu, apesar de a "Rubens Paiva" ter sido uma comissão do Poder Legislativo estadual, presidida pelo então deputado estadual Adriano Diogo (o Executivo estadual, que estava nas mãos do PSDB, nunca desejou criar uma comissão da verdade própria). Houve uma iniciativa para editá-lo e imprimi-lo na legislatura de 2015-2019, mas o então presidente da Assembleia, o então deputado Fernando Capez, acabou vetando-a.

Já escrevi em outra nota neste blogue como até mesmo pesquisadores premiados sofrem para ter acesso ao relatório, que, apesar dos quase dez anos, continua mantendo atualidade, tendo em vista que não se avançou tanto no assunto e, em alguns pontos, houve retrocesso, especialmente a partir do golpe de 2016. 

O Memórias Reveladas, que deveria ter tudo, não sei por que motivo só apresenta o tomo I e a introdução do II:

https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/

Faltam ao MR, portanto, milhares de páginas. Também falta incluir no portal relatórios de várias outras comissões, o que mostra como o trabalho ainda está parado por lá.

Dito isso, o relatório completo da Comissão "Rubens Paiva" pode ser procurado neste arquivo da internet, o Wayback Machine:

https://web.archive.org/web/20180530004044/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/

Esta edição digital foi premiada em 2015 com Menção Honrosa do Viva Leitura do Ministério da Cultura.

Para facilitar o acesso, indicarei abaixo os capítulos do relatório, que foi dividido em quatro tomos. Faço isto não só pelos pesquisadores, que não estão a conseguir encontrá-lo na situação atual, mas pelo direito à memória, à verdade e à justiça, que é coletivo, vai muito além da esfera das pesquisas acadêmicas e pode servir para fundamentar reivindicações de movimentos sociais.



INTRODUÇÃO

https://web.archive.org/web/20181220221144/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/Introducao.pdf


TOMO I: Recomendações gerais e recomendações temáticas

Este tomo divide-se em quatro partes temáticas. Basta clicar sobre os títulos dos capítulos para abri-los.

Parte I: Estruturas e Sistemas da Repressão

Cadeias de Comando: a Formação da Estrutura Nacional de Repressão Política

Repressão Política: Origens e Consequências do Esquadrão da Morte

Métodos e Técnicas de Ocultação de Corpos na Cidade de São Paulo

A Formação do Grupo de Antropologia Forense para Identificação das Ossadas da Vala de Perus

O “Bagulhão”, a Voz dos Presos Políticos Contra a Ditadura

A Perseguição aos Militares que Resistiram à Ditadura

A Militarização da Segurança Pública

O Financiamento da Repressão

Conexões Internacionais na Ditadura: Operação Condor e o General Paul Aussaresses

O Legado da Ditadura na Educação Brasileira

A parte I completa (648 páginas): 

https://web.archive.org/web/20181220143110/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_1_Completa.pdf


Parte II: Grupos Sociais e Movimentos Perseguidos ou Atingidos pela Ditadura

Perseguição à População e ao Movimento Negros

Violações aos Direitos dos Povos Indígenas

Verdade e Gênero

Infância Roubada

A Perseguição aos Trabalhadores e ao Movimento Operário

A Perseguição ao Movimento Estudantil Paulista

Ditadura e Homossexualidades: Iniciativas da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva

Ditadura e Saúde Mental

A parte II completa (579 páginas):

https://web.archive.org/web/20190105120309/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_2_Completa.pdf


Parte III: Ações de Resistência e Medidas de Justiça de Transição

A Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil

A Atuação dos Advogados na Defesa dos Presos Políticos

As Ações Judiciais das Famílias Teles e Merlino

Imprensa de Resistência à Ditadura

Lembrar os 50 anos do Golpe Militar, Lembrar suas Vítimas, Lembrar a Resistência, Construir a Verdade e Alcançar a Justiça!

Contribuições da Comissão da Verdade para o Trabalho de Memória e de Justiça

A parte III completa (586 páginas):

https://web.archive.org/web/20231116003752/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_3_Completa.pdf


Parte IV: Arquivos e Memória

Lugares de Memória, Arqueologia da Repressão e da Resistência e Locais de Tortura

Alesp na Ditadura


A parte IV completa (98 páginas): 

https://web.archive.org/web/20181220221133/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Completa.pdf


TOMO II: Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985)

Este é diferente do anterior: ele compõe-se de um capítulo de natureza introdutória tratando da história do Dossiê Ditadura: Mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985), da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, a principal fonte desta seção do relatório, e dos perfis individuais dos mortos e desaparecidos. Clicando em cada uma deles, temos a história de sua militância, de sua morte ou desaparecimento e os responsáveis por isso, bem como os documentos consultados, que podem ser baixados (em alguns casos, infelizmente os links estão quebrados).

Ele corresponde, pois, ao volume III do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, com a diferença de que só inclui pessoas nascidas em São Paulo e/ou que nesse Estado sofreram desaparecimento forçado ou morte, bem como apresenta nomes que não aparecem na CNV, como Paulo Roberto Pinto.

Esses perfis nunca foram editados para o formato de um texto impresso. Este tomo apenas existe nesta versão digital.

  • Capítulo introdutório:

https://web.archive.org/web/20181220221158/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-ii/

  • Sumário para os mortos e desaparecidos políticos; clicando nos nomes, aparecem os perfis. Pode-se filtrar a busca por organização, inclusive com a opção "nenhum/não consta":

https://web.archive.org/web/20181220015417/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/

O Dossiê Ditadura da Comissão de Familiares, na última edição, de 2009, foi incluído como um dos documentos do relatório e pode ser baixado (sem capa e folha de rosto) aqui:

https://web.archive.org/web/20191005181449/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/livros/downloads/Livro-Dossie-ditadura.pdf


TOMO III: Transcrições das audiências

Esta seção reúne as transcrições das audiências públicas da Comissão "Rubens Paiva". Foram realizadas 156, porém nem todas foram transcritas, especialmente as últimas, porque não houve tempo, bem como algumas das que foram realizadas fora da Alesp, porque não foram gravadas.

Aqui, pode-se ver o panorama geral das audiências, com a possibilidade de filtrá-las por local: 

https://web.archive.org/web/20181220223413/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-iii/

O número de páginas impressiona, porém é menor do que o anunciado: a empresa que fez a edição digital por algum motivo duplicou algumas transcrições, por isso o número real é um tanto menor.

Por causa do problema do encerramento da Comissão, em contraste com a vontade política de continuar a fazer audiências, de 2015 só temos uma das que foram realizadas (sem duplicação do texto, aliás). É possível que a Alesp tenha o texto das outras audiências desse ano, mas nunca procurei. Vejam mais adiante a lista de audiências, que continua intacta no sítio da Alesp.


TOMO IV: Contribuições

Esta seção compreende contribuições de equipes externas à da Comissão "Rubens Paiva". O trabalho da Comissão não tem assinatura individual dos pesquisadores, ao contrário do que ocorre aqui.

  • Relatório sobre os casos de tortura e morte de imigrantes japoneses 1946-1947 (269 páginas):

https://web.archive.org/web/20181221050323/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-iv/downloads/IV_Tomo_Relatorio-sobre-os-casos-de-tortura-e-morte-de-imigrantes-japoneses-1946-1947.pdf

  • Relatório sobre a morte de Juscelino Kubitschek (986 páginas):

https://web.archive.org/web/20181221050511/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-iv/downloads/IV_Tomo_Relatorio-sobre-a-morte-de-juscelino-kubitschek.pdf

  • Relatório do grupo de trabalho sobre a repressão no campo no estado de São Paulo, 1946-1988 (69 páginas):

https://web.archive.org/web/20181221050704/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-iv/downloads/IV_Tomo_Relatorio-de-atividades-do-grupo-de-trabalho-sobre-a-repressao-no-campo.pdf


LIVROS PUBLICADOS PELA COMISSÃO:

Foram três, o primeiro de 2013, os outros de 2014. Foram todos distribuídos gratuitamente em formato impresso. 

  • Sentença da Corte Interamericana (136 páginas):

https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20481_arquivo.pdf

  • "Bagulhão": a voz dos presos políticos contra os torturadores

Edição digital: https://web.archive.org/web/20181221001259/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/livros/bagulhao/

Edição em pdf (36 páginas): https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20480_arquivo.pdf

  • Infância roubada:

Edição digital (está incompleta): https://web.archive.org/web/20181221030746/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/livros/infancia-roubada/

Edição em pdf (316 páginas): https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf


VÍDEOS DA COMISSÃO:

Dezenas de vídeos das audiências e biografias de alguns dos mortos e desaparecidos políticos, bem como reportagens de origem vária. Permanecem disponíveis no canal da Comissão no Youtube: https://www.youtube.com/user/comissaodaverdadesp


LISTAS E BUSCAS RELATIVAS AO RELATÓRIO:

  • Busca dos documentos pesquisados pela Comissão: 

https://web.archive.org/web/20181220112419/http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/arquivos/

Pode-se procurar por tipo de documento; por exemplo, revistas.

  • Lista dos casos investigados, com ligação para vídeos:

https://www3.al.sp.gov.br/historia/comissao-da-verdade/fichaVideosGerais.html

  • Lista de audiências e reuniões (inclusive as que não foram transcritas):

https://www.al.sp.gov.br/alesp/agenda-comissao-da-verdade/


BREVE BALANÇO DA COMISSÃO:

Este texto não está no relatório, porém foi escrito pela "assessoria da Comissão". Uma vez que ele menciona 147 audiências públicas, e a 147a., sobre violações de direitos de povos indígenas, ocorreu em 23 de outubro de 2014, enquanto a seguinte, sobre o mesmo tema, em 3 de novembro, é possível que tenha sido escrito nesse intervalo para a Revista do ILP, que é da Alesp. Eu não lembro quando foi concluído.

O periódico, no entanto, somente o publicou em outubro de 2015, quando a Comissão já tinha se encerrado.

Mesmo não apresentando tudo, serve de orientação para entender o trabalho realizado:

https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/22018_arquivo.pdf


EXPEDIENTE:

Esta seção misturou pessoas que efetivamente escreveram o relatório com outras que apenas forneceram dados, e há quem apareça nela repetidas vezes, não sei por que motivo. Apresento-o, porém, como ele foi ao ar, e encerro esta nota com o nome destes que, de uma forma ou outra, contribuíram para um vasto trabalho de memória e verdade que o Poder Legislativo do Estado de São Paulo deveria recuperar.


Expediente

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

17ª Legislatura, Samuel Moreira – Presidente, Enio Tatto – 1º Secretário, Edmir Chedid – 2º Secretário

Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”

Membros efetivos, Adriano Diogo (PT) – Presidente, Marcos Zerbini (PSDB), André Soares (DEM), Ed Thomas (PSB), Ulysses Tassinari (PV)

Substitutos

João Paulo Rillo (PT), Mauro Bragato (PSDB), Estevam Galvão (DEM), Orlando Bolçone (PSB), Regina Gonçalves (PV) 

Assessoria

Amelinha Teles, Ivan Seixas, Renan Quinalha, Ricardo Kobayaski, Tatiana Merlino, Thaís Barreto, Vivian Mendes

Comissão de redação do relatório

Álvaro Okura (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva), Amanda Brandão (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva), Amelinha Teles, Ângela Mendes de Almeida, Carlos Ungaretti Dias, Danilo Morcelli (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva), Luiz Felipe Loureiro Foresti, Maria Carolina Bissoto (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva), Pádua Fernandes (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva), Raquel Oliveira de Brito, Renan Quinalha, Thaís Barreto (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva), Vivian Mendes (PNUD – Comissão Nacional da Verdade/ Comissão “Rubens Paiva)

Colaboradores do Relatório

Grupo de Trabalho Juscelino Kubitschek (GT – JK), André Wallace Simonsen, Bruna Karina Cassarotti Brasil, Clara Laura Rodrigues da Silva, Fabrício Augusto de Sousa Nascimento, Felipe Brandão Ribeiro, Gabriella de Alarcón Guimarães, Geovana Pedrozo da Silva, Giuliano Cardoso Salvarani, Guilherme Augusto Ramos Alves, Hanna Manente Nunes, Karina Rodrigues Camargo, Lea Vidigal Medeiros, Lucas Bueno Marinho de Moura, Luccas Gianini Cartocci, Marco Aurélio Cezarino Braga, Marina Carvalho Marcelli Ruzzi, Matheus Zuliane Falcão, Mateus Maia de Souza, Raquel Requena Rachid, Regina Estela Correa Vieira, Renan Honório Quinalha, Roberta Costa Haddad, Rodrigo Blanco Galvão, Victor Takamori Maruyama Monteiro

Grupo de Trabalho nº 13 da Comissão Nacional da Verdade, sobre Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical (GT-13)

Alcides Ribeiro Soares, Amanda Menconi, Antonio C. M. Brunheira Júnior, Carolina Alvim de Oliveira Freitas, Claudia Costa Daniella Cambaúva, Edgar Fogaça, Ernesto Carlos Dias, Fabíola Andrade Iram Jácome Rodrigues, Ivan Akselrud de Seixas, Jean François Germain Tible, Jorge Luiz Souto Maior, José Carlos Arouca, José Carlos Quintino, Lee Flores Pires Luci Praun, Magnus Farkatt, Milena Fonseca Fontes, Murilo Leal Pereira Neto, Pedro Maurício Garcia Dotto, Raphael Martinelli Richard de Oliveira Martins, Rodolfo Machado, Rosângela Batistoni, Rosi Aparecida Soares, Salvador Pires San Romanelli Assumpção, Sebastião Neto, Sofia Dias Batista, Sueli Bossam, Vanessa Miyashiro, Vicente Garcia Ruiz Yamila Goldfarb

A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas de Vala de Perus

Aline Feitoza Oliveira, Ana Paula Moreli Tauhyl, André Strauss, Felipe Quadrado, Luana Antoneto Alberto, Márcia Lika Hattori, Mariana Inglez, Marina Di Giusto, Marina Gratão, Patrícia Fischer, Rafael Abreu Souza

Depoimento: um flash do negro sob a repressão da ditadura

Joel Rufino dos Santos

Relatório sobre os casos de tortura e morte de imigrantes japoneses – 1946 e 1947 na audiência pública do dia 10 de outubro de 2013

Mario Jun Okuhara

Relatório de atividades do grupo de trabalho sobre a repressão no campo no Estado de São Paulo, 1946-1988

Clifford Andrew Welch, Danilo Valentin Pereira, Gabriel da Silva Teixeira, Ivan Akselrud de Seixas, Leonilde Servolo de Medeiros, Luciana Carvalho e Souza, Maria Aparecida dos Santos, Osvaldo Aly Júnior, Pietra Cepero Rua, Rafael Aroni, Yamila Goldfarb

A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos

Janaína Teles

Violações aos Direitos dos Povos Indígenas

Benedito Antônio Genofre Prezia, Luiz Dias Fernandez,

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCII: A Vala de Perus e os cemitérios sepultando a memória política

No dia 4 de setembro de 2024, ocorreu o aniversário de trinta e quatro anos da abertura da Vala de Perus. A descoberta dessa vala clandestina foi uma das confirmações do que os familiares de mortos e presos políticos afirmavam há anos: a ditadura militar matava e escondia os corpos. O Município de São Paulo participava dessa operação de crimes de lesa-humanidade por meio de seu sistema funerário, onde os restos mortais eram ocultados.

A Vala foi descoberta graças a Antônio Pires Eustáquio, funcionário que desconfiou das inumações sem registro de sacos de corpos no local. Por essa razão, ele foi homenageado em 2023 pela Câmara Municipal de São Paulo. 

A abertura da Vala aconteceu em 1990, na prefeitura de Luiza Erundina. Antes dessa primeira mulher prefeita da cidade, não havia condições políticas para isso. Deve-se lembrar que seu antecessor foi Jânio Quadros, cuja gestão autoritária levou a uma prorrogação da ditadura militar no Município de São Paulo, segundo a Comissão da Verdade da Prefeitura. 

Criméia de Almeida e Antônio Pires Eustáquio

Lá não havia 1049 corpos; esse era o número de sacos, e em alguns deles há mais de um indivíduo. E eles não eram todos opositores políticos, que são a minoria neste universo que inclui indigentes, mortos pela epidemia de meningite, assassinados pelo esquadrão da morte, ou seja, os indesejados da ditadura. 

O descaso com que esses remanescentes ósseos foram tratados no Unicamp (a primeira instituição que tentou identificá-los), no tempo em que ficaram lá, levou a mais misturas. Cito a respeito um capítulo do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva", "A Formação do Grupo de Antropologia Forense para Identificação das Ossadas da Vala de Perus", escrito pela primeira equipe do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Universidade Federal de São Paulo que trabalhou com eles:

Em 2013, a Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, o Ministério Público Federal, com a participação da Polícia Federal, solicita à Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) um diagnóstico, a partir de 21 caixas com suspeitas de ser um desaparecido político, com base em amostra selecionada na etapa da Unicamp e refinada pela USP. Além disso foi feita uma avaliação das fichas de análise originais produzidas pela Unicamp. O resultado fora alarmante: muitos dos ossos nunca haviam sido limpos, estavam mofados e com fungos, as caixas molhadas, a umidade gerada por inúmeros plásticos grossos que envolviam os conjuntos ósseos também causou diversos danos, assim como sacos de tecidos que os envolviam acabaram por aderir aos fragmentos de ossos afetando a integridade dos mesmos; nas 21 caixas havia uma mistura de ossos, representando, portanto, 22 indivíduos; do conjunto, onde estaria suspeito de ser um desaparecido do sexo masculino, havia quatro mulheres e, na classificação etária havia pessoa com mais de 55 anos e um subadulto menor de 20 anos (EAAF, 20135). Ainda em 2013, um dia depois de um ato inter-religioso em homenagem às vítimas da ditadura, o columbário do Araçá fora invadido por pessoas até hoje não identificadas, o que evidenciou a vulnerabilidade em que se encontravam os remanescentes ósseos.

Essa primeira equipe, formada em 2014, era formada por Rafael Abreu Souza, Márcia Lika Hattori, Ana Paula Moreli Tauhyl, Luana Antoneto Alberto, Marina Di Giusto, Marina Gratão, Aline Feitoza Oliveira, Felipe Quadrado, Patrícia Fischer, Mariana Inglez e André Strauss.

O trabalho de identificação dos remanescentes, que é um dever oriundo do direito à memória à memória e à verdade, sofreu percalços também depois de 2014; na volta dos militares ao poder, com a tomada de poder por Bolsonaro, ele ficou praticamente paralisado. Agora retornou. 

O ato de 4 de setembro de 2024 foi organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comunidade Cultural Quilombaque e o Projeto de Identificação de Remanescentes Ósseos do CAAF-Unifesp. 

Eu estava lá. A administração do cemitério Dom Bosco tentou IMPEDIR o registro do ato, que ocorreu no singelo memorial, um muro com uma inscrição no local onde era a vala, longe da área de velório. Amelinha Teles, da Comissão de Familiares, telefonou para o secretário municipal de direitos humanos e conseguiu a liberação.

A tentativa de censura é uma consequência da privatização do serviço funerário municipal, que não teve como consequência apenas o aumento do custo e a perda de qualidade no atendimento à população, mas também essas restrições de caráter político, embora o monumento, ele mesmo, não tenha sido privatizado.

Amelinha Teles, Adriano Diogo, Tereza Lajolo falaram da história da Vala. Lajolo foi a relatora da histórica CPI da Vala de Perus, criada em 1990 na Câmara dos Vereadores para investigar esse crime da ditadura; meu telefone tinha pouca memória, por isso não consegui gravar nada de sua fala, que foi a mais didática em explicar as descobertas da CPI. 

Tereza Lajolo e Aline Feitoza Oliveira

Laura Petit falou dos desaparecidos do Araguaia (entre eles, seus três irmãos; apenas Maria Lúcia Petit foi encontrada); Criméia Alice Schmidt de Almeida, ela mesma ex-guerrilheira do Araguaia, também. Vivian Mendes falou do aniversário de morte de Manoel Lisboa e Emmanuel Bezerra, dirigentes do Partido Comunista Revolucionário; ele seria rememorado no mesmo dia, às 15 horas, no cemitério Campo Grande, também em São Paulo.

Vivian denunciou que a administração do cemitério Campo Grande não sabia do memorial para os mortos da ditadura que lá existe e que, evidentemente, está em mau estado de conservação. Ocorre o mesmo com a memória política da ditadura, que os monumentos para os mortos e desaparecidos materializam e os remanescentes ósseos encarnam.

Cleiton Fofão falou do trabalho cultural que faz na Quilombaque com a memória dos Queixadas e da Vala de Perus, e da importância de Antônio Pires Eustáquio, e denunciou o apagamento do memorial de grafite (que será refeito) pela administração atual do Dom Bosco.

A imprensa não estava lá em Perus. Ela participa do esquecimento desta memória política da luta contra a ditadura. Estes singelos vídeos talvez sirvam de lembrança.









segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCI: Um livro premiado e um relatório desaparecido: a tese de Mônica Tenaglia e o relatório da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

O livro As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira, de Mônica Tenaglia, que a UnB publicou em 2024, ganhou menção honrosa no prêmio Capes de teses em 2020 na área de Ciências Sociais Aplicadas I e venceu o primeiro Jabuti Acadêmico, em agosto de 2024, na categoria de História e Arqueologia.

O tema é importantíssimo: os arquivos e as comissões da verdade brasileiras. As comissões, a partir do trabalho de décadas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos (coligido no Dossiê Ditadura), pesquisaram e produziram uma documentação sobre graves violações de direitos humanos que serviu de fundamento para as movimentações no incipiente campo de justiça de transição no país. Por se relacionarem com o direito à memória e à verdade, o acesso e a disponibilização dos acervos das comissões correspondem a uma necessidade da democracia. 

A Revista do Arquivo [do Estado de São Paulo] publicou em 2016 volume sobre o assunto, do qual um artigo aparece entre as fontes da tese, mas não o texto que prefigura a problemática da autora: "A ditadura revisitada" já analisa se as comissões trataram dos arquivos em suas recomendações e como ocorreu o acesso à documentação na pesquisa.

Tenaglia trabalhou com relatórios de nada menos do que vinte comissões da verdade. Escrevo esta breve nota porque me surpreendeu que as informações sobre uma das comissões da verdade para que trabalhei, a do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", estivessem em geral equivocadas.

Aparentemente, ela não encontrou o relatório inteiro da Comissão: a autora diz que ele tem 1912 páginas (p. 147 do livro físico; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), mas esse número corresponde a apenas o primeiro tomo (o terceiro, com as transcrições das audiências, é muito mais longo, e o quarto não é nada curto) e sem a introdução, como se pode ver no texto disponível portal Memórias Reveladas, que não possui o relatório completo da Comissão "Rubens Paiva": https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/comissao-rubens-paiva-tomo_i_completo.pdf

Na ficha sobre a Comissão, Tenaglia afirma que não encontrou a nota metodológica (p. 146; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), que, de fato, não aparece em uma seção separada, mas existe e está na introdução do relatório, que aparentemente não foi encontrada - e nem poderia ter sido, se a pesquisadora só leu o texto de 1912 páginas, que contém os capítulos temáticos, mas é estranhamente desprovido dessa seção.

Tenaglia afirma que a Comissão não apresentou recomendações aos arquivos (p. 252 no livro físico; na tese disponível na biblioteca virtual, p. 211); no entanto, o que ela identifica e lista como "recomendações das comissões da verdade aos arquivos" podem ser encontradas em versões análogas no relatório da Comissão "Rubens Paiva"; listo-as:


Introdução:

- Imediata abertura de todos os arquivos da ditadura, em especial da polícia técnico-científica do Estado de São Paulo.

Capítulo O financiamento da repressão

6. Que sejam abertos todos os arquivos que existirem sobre a formação da Operação Bandeirante (Oban), sendo nomeados os seus financiadores.

Capítulo Métodos e técnicas de ocultação de corpos na cidade de São Paulo

3. Criar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas/plantas dos cemitérios, livros de registros dos sepultamentos e demais documentação);

Capítulo A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas da Vala de Perus

13. Fomentar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas dos cemitérios, salvaguarda da documentação como os livros de registro de entrada);

Capítulo A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil

4. Abertura dos documentos sobre a Guerrilha do Araguaia;

5. Investigação e responsabilização pela queima de arquivos relativos à Guerrilha do Araguaia;

Capítulo As violações de direitos dos povos indígenas

9. Destinação de fundos para fomento à pesquisa e difusão sobre as graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, incluindo pesquisas acadêmicas, obras de caráter cultural e a reunião de documentação pertinente;

Capítulo A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos

4. Abrir e investigar os arquivos militares e os arquivos vinculados à Operação Condor para apurar os crimes de estado que se deram fora do aparato do judiciário;


Essas recomendações temáticas aparecem duas vezes no relatório: no final dos respectivos capítulos e, para que pudessem ser lidas todas em conjunto, no final da introdução. Lembro que na enquete que fiz em 2018 com pesquisadores de treze comissões da verdade para a InSURgência, revista do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha) reiterou que as recomendações sobre documentação não estão sendo cumpridas - assim como as outras.

Tenaglia afirma que "não foi possível localizar os acervos documentais de outras comissões da verdade locais no portal [Memórias Reveladas]" (p. 283 do livro físico; p. 208 da tese na biblioteca virtual da UnB), e que só o relatório da Comissão Nacional estaria lá. Trata-se de um equívoco. O portal, de fato, não tem todas, mas algumas estão lá, inclusive aquelas 1912 páginas da Comissão "Rubens Paiva":

Comissões estaduais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/

Comissões municipais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/municipais

Comissões regionais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/regionais

A tese foi defendida em 2019; não lembro se naquele momento a informação não estava disponível; uma vez que o texto não foi realmente atualizado para a publicação do livro de 2024 (a ficha de meu exemplar físico indica esse ano; mas a versão digital é anterior, de 2023), talvez uma interrupção da disponibilidade explique esse erro.

Mais adiante, vemos que a autora pediu ao Poder Executivo informação sobre o acervo da Comissão "Rubens Paiva" e recebeu a resposta de que "não havia responsabilidade do estado pela informação solicitada" (p. 284; página 208 da tese na biblioteca virtual), o que era correto, pois se tratava de uma comissão do Poder Legislativo e o princípio da separação dos poderes aplica-se à questão. Provavelmente ela deixou de fazer o pedido de informação à Alesp, o que teria evitado outro problema: a localização do acervo físico da Comissão.

Tenaglia tentou entrar em contato pela internet com os "ex-integrantes" da Comissão (p. 289); na prática, contudo, ela só teve um membro atuante: Adriano Diogo. Os outros deputados estaduais listados não participaram das atividades. Não sei de quem a autora recebeu a resposta de que "apesar de o acervo estar disponível na página virtual da Comissão da Verdade, o acervo físico não foi constituído" (p. 289; na tese disponível na biblioteca virtual, na página 211), no entanto, ele não só foi constituído como ajudei a encaixotá-lo. O setor de documentação da Alesp recebeu-o. Encontrei um dos responsáveis pelo setor na semana passada e ele me assegurou de que o acervo continua lá.

O que foi interrompido foi o acesso on-line ao relatório e aos milhares de documentos nele referidos. O servidor da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo volta a responder-me, no momento em que escrevo, que "O servico [sic] requisitado esta [sic] temporariamente indisponivel [sic] devido a sobrecarga ou manutencao [sic]. Por favor tente novamente mais tarde."


A Comissão encerrou seus trabalhos no final da legislatura, em março de 2015. Esse também foi o final do último mandato de Adriano Diogo, e a nova legislatura não se interessou nem mesmo em publicar no Diário Oficial o relatório. Na presidência da Alesp pelo deputado Fernando Capez (2015-2019), houve uma movimentação, iniciada por Diogo, para que houvesse uma publicação em livro, porém Capez a barrou afirmando que não havia dinheiro para isso.
Nessa época, porém, os links funcionavam na maior parte. Na transição do portal Verdade Aberta, o primeiro que abrigou o relatório, para o da Alesp, já houve uma perda: links quebrados de documentação dos mortos e desaparecidos políticos e capítulos faltando do livro Infância roubada, sobre as crianças que foram atingidas pela ditadura (está disponível, porém, em outra parte do portal da Alesp: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf).
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" foi a primeira no país (ela antecedeu a Comissão Nacional) e sua criação inspirou a multiplicação de órgãos congêneres no Brasil, o que foi uma marca deste país: em outros, como na Argentina, África do Sul, Chile, Equador não houve mais de uma comissão da verdade funcionando simultaneamente. 
A Comissão "Rubens Paiva" introduziu temas como gênero e homossexualidades no debate das comissões. Um tema como a perseguição à população e aos movimentos negros, por exemplo, foi abordado por esta Comissão, e não pela Nacional.
Era importante que este trabalho de milhares de páginas voltasse a ficar disponível para que as iniciativas de memória, verdade e justiça partissem deste patamar de informação e de documentação, e não tenham que refazer (com o risco de lacunas e equívocos) o que já foi pesquisado.
O esquecimento institucional faz tabula rasa das pesquisas já consolidadas. A Alesp deveria resolver esse problema, que diz respeito à história do povo brasileiro e de sua própria história, eis que a "Rubens Paiva" foi uma das comissões mais importantes do Poder Legislativo de São Paulo.

domingo, 25 de agosto de 2024

César Braga-Pinto e as dissidências de gênero na literatura brasileira de 1850 a 1950

Saiu na revista 451 uma resenha que fiz, "O arco-íris e a nação", sobre os dois livros mais recentes em português de César Braga-Pinto: o volume de ensaios Poses e posturas: performances de gênero e sexualidade na literatura brasileira (1850-1950) e a antologia de contos O homem que passou por baixo do arco-íris: e outras histórias sobre sexualidades, gênero e dissidência entre 1880-1950, ambos publicados pela Alameda em 2023. São trabalhos fundamentais para rever a história da literatura brasileira, que não pode fugir do reconhecimento da importância dessas representações das dissidências de gênero, que foram mais influentes no Brasil, explica Braga-Pinto, do que na América hispânica.

As duas obras, juntas, somam mais de novecentas páginas. Por isso, tive de cortar alguns trechos para que a resenha coubesse dentro do espaço do periódico. Sacrifiquei Joaquim Manuel de Macedo, Coelho Neto e José Lins do Rego; doeu-me bastante fazê-lo, pois o ensaio sobre Coelho Neto, em especial, é muito esclarecedor. Parte da análise da antologia também teve que ser apagada, inclusive minha lembrança de Diadorim, talvez impertinente. Se alguém tiver curiosidade, e se isto servir para aguçar o interesse pelo trabalho de César Braga-Pinto, eis os trechos cortados:


[...] Com esse tipo de leitura, ele se interessa por autores secundários (que ele reconhece como tal), porém relevantes para o quadro analisado, e também por escritores canônicos (re)vistos por este prisma. [...]
A partir desses autores, o crítico realiza saltos teóricos de longo alcance; no primeiro ensaio, a partir do travestimento das mulheres que tentavam se alistar para lutar contra o Paraguai e o culto aos militares que se destacaram na Guerra da Tríplice Aliança, Braga-Pinto desvenda “uma genealogia da nacionalidade desracializada” e a criação do “protótipo do novo homem republicano” (p. 39), em um “período crítico na redefinição das categorias de gênero e, principalmente, de masculinidade do Brasil oitocentista” (p. 41).
O ensaio sobre Coelho Neto trata da figura do andrógino, que aparece diversas vezes em sua obra, destacando o romance Esfinge, de 1908, que explorou “questões de gênero (híbrido) e sexualidade” “de forma praticamente inaudita” (p. 57). Na comédia O patinho torto, dez anos posterior, com a personagem Eufêmia, que se revela um homem, “as categorias de gênero são atribuídas menos à biologia do que ao costume e à gramática” (p. 68).
[...]
João do Rio “manipula, em proveito próprio, o conceito de imitação, tornando-o um mecanismo de reconhecimento, sobrevivência, aceitação e ascensão social” (p. 168). Nesse brilhante ensaio, Braga-Pinto ainda corrige Davi Arrigucci Jr. e Brito Broca sobre a importância da recepção de Wilde, que ensejou uma “complexa negociação de novos valores estéticos, subjetividades e desejos” (p. 180).
O ensaio sobre José Lins do Rego centra-se no romance O moleque Ricardo e apresenta menos novidades do que os outros do livro; ele termina com uma curiosa tentativa de dirigir o brilhante diretor de cinema Hilton Lacerda para hipotética filmagem do romance, o que parece reproduzir uma postura de scholar a querer guiar os artistas.
[...]
Em outros textos, falei do paradigma da “medicina moral” como dominante no direito urbano brasileiro do fim do século XIX e início do XX. O mesmo se verifica na literatura da época: a partir de um enfoque cientificista, o discurso médico é empregado para legitimar condenações de cunho moral contra as chamadas dissidências de gênero: nos contos, uma personagem feminina de Medeiros de Albuquerque morre simplesmente por experimentar um primeiro orgasmo (e com um homem negro); a homossexualidade é categorizada como “anomalia estrutural’ no “barro humano” (Carlos Vasconcelos, p. 228). As histórias de travestis e transexuais muitas vezes se passam durante o Carnaval, mas, quando se dão fora dele, muitas vezes terminam com a morte violenta da personagem. Seria de se pensar se um romance genial Grande Sertão: Veredas não encontra parte de sua genealogia nesse tipo de literatura que trata de dissidências e gênero.
Braga-Pinto vê com simpatia um conto de Nestor Vitor que começa com um relacionamento amoroso entre dois rapazes, que não recebe condenação moral do narrador; no entanto, ele segue o mesmo paradigma: o personagem principal, depois do relacionamento com o rapaz, vai passando por um declínio social e psíquico; descobrimos que o pai havia enlouquecido. Incorporando a noção de tara familiar, o conto parece uma ilustração das teorias psicopatológicas da época. O conto renegado de Lygia Fagundes Telles, a obra que fecha o volume, significativamente chama-se “Tara”.
[...]


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Deu Fim

O ângulo de noventa graus

do pau de arara com a parede

assegura o dez por cento

de crescimento do PIB.


A precipitação de duzentos metros

de napalm nas aldeias

assegura o dez por cento

das fardas no garimpo.


-- Nunca falei em bolos. Confundiram com a palavra balas. Elas se multiplicam sobre vocês.


Dois milhões de francos 

para grampos e alicates 

assegura o dez por cento

das malas diplomáticas.


Menos vinte volts

para a cadeira do dragão 

assegura dez por cento

do valor dos fornos crematórios.


-- A ciência provou que o coração bate um milhão e quatrocentas mil e tantas vezes. Depois disso, paralisa-se. Por isso a ginástica acelera a morte, quase como se fosse um economista.


Trinta por cento de fraude

no índice de preços

assegura dez por cento

dos votos no partido governista.


A economia de seis azeitonas

nos jantares empresariais

assegura dez por cento

a mais de desaparecimentos forçados.


-- Se tiverem fome, terão que migrar. Aceitarão até trabalho sem salário e os empresários poderão investir mais. A Economia lida com recursos finitos. Acabar com a fome não tem fundamento científico. Passe o caviar, por favor.


A duplicação de algemas

nas eleições de sindicatos

assegura dez por cento 

dos canapés das multinacionais,


assim como a triplicação 

de granadas na dívida externa

assegura dez por cento

da erudição do economista.


-- O povo deixou de me eleger. Mas jornalistas, políticos da esquerda, professores e editores escolheram-me seu representante perpétuo. A democracia funciona.


A quintuplicação dos ais

assegura há cinquenta e cinco anos

cem por cento do chicote

sobre as domésticas e outros animais.


 -- A democracia funciona.


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Subterrâneo do anjo e aniversário de Walter Benjamin

Como 15 de julho é dia de aniversário do filósofo Walter Benjamin (nascido em Berlim, 15 de julho de 1892; suicidado pelos nazistas em Portbou, 27 de setembro de 1940), vou  deixar aqui este poema que escrevi a partir da famosa Tese IX sobre o conceito de história.

Conto por que decidi finalmente abordar o tema, depois de pensar nele por muito anos. Gustavo Silveira Ribeiro me pediu um poema em 2022 para o terceiro número da revista Ouriço com o tema  de "poesia e história". A ideia realmente óbvia que eu tinha era partir de Benjamin, que escreveu tanto sobre poesia quanto sobre história e percebeu a necessidade de entender a história por meio dos poetas, especialmente, mas não exclusivamente, nos seus estudos sobre Baudelaire e Paris.

Ademais, Benjamin escrevia poeticamente, digamos assim, porque evidentemente refletia por meio de imagens. Comprova-o, entre outros textos, a Tese IX, com sua referência ao quadro de Paul Klee (aproveito e deixo aqui a referência a vídeos de Eduardo Sterzi para a revista FronteiraZ sobre poesia e imagem: https://www.youtube.com/watch?v=Qoa1RgwRfHM).



Eu guardei esse motivo do conceito de história por muitos anos em algum escaninho mental, adiando até o o momento em que me sentisse preparado, o que evidentemente jamais aconteceria. Resolvi finalmente enfrentá-lo com o pretexto da encomenda, que enviei no fim de 2022. Continuo com esse motivo; o "Subterrâneo do anjo" foi apenas o primeiro movimento.

Vejam os autores incluídos na revista, lançada em 2024 com o tema, finalmente alterado, da imaginação. Apesar de eu ter tratado de outras coisas, relativas à encomenda original, os editores tiveram a delicadeza de incluir meu poeminha. O próprio Walter Benjamin, que escreveu também sobre imaginação, está lá, por sinal. 

Essa é uma revista que tem muita procura (seus números esgotam, o que não acontece sempre com os periódicos de poesia), mas ainda está disponível para venda. Como o meu poema saiu lá com a formatação errada, deixo-o aqui também.



Subterrâneo do anjo


Pádua Fernandes





I


Na primeira vez em que fui assassinado pela polícia nacional,

a câmara de gás era portátil,

cabia no porta-malas da viatura.

Na primeira vez em que fui cremado pela polícia nacional,

dispensaram a viatura,

o campo de concentração era o meio de transporte para o país.

Na primeira vez em que a polícia nacional dispersou minhas cinzas,

o hasteamento da bandeira dispensou campos de concentração.

Na primeira vez em que a polícia nacional se cobriu de cinzas

a gentil brisa nascida do despir das togas

antes da sauna vespertina

removeu das fardas o pó.


– O poema mente: os editais para a construção de campos de concentração seguiram quase todas as regras, as empresas agroexportadoras em consórcio com os bancos de investimento venceram a concorrência.

– Mas o Ministério Público fez bem quando opinou pela nulidade do resultado, as empresas de seguro saúde têm notória especialização na matéria!

– O pedido de vistas de um Ministro interrompeu o julgamento quando já se tinha formado maioria para que o edital fosse interpretado de acordo com a Constituição: cotas raciais, sociais e de gênero deveriam ser impostas nos campos.


Na primeira vez em que a criança foi impedida de abortar

e a juíza apontou para o crucifixo do fórum

e o estupro celebrou a família tradicional

e a direita lançou campanhas eleitorais com vouchers para granadas

e a juíza perguntou se a criança acreditava em bonecas

que nasciam na barriga das meninas

e a ministra de direitos humanos explicou a felação infantil sem dentes

para os fiéis interessados

e os eleitores cobriam de cédulas a pastora morta durante o culto

até que ela ressuscitasse sob o peso asfixiante

e os juízes vedaram o aborto legal à criança

pois eram competentes para abortar a legalidade,

os escombros da repetição da primeira vez

fizeram sombra ao sol

e alguns se perguntaram

se era só a noite ou o fascismo;

outros, se era só o fascismo

ou o país. 


– O poeta erra: ele escreve como se existisse algo como o nascimento.

– Era melhor que ele não tivesse nascido. Mas isso pode ser remediado.


Na primeira vez em que morreram cem mil

e os liberais trocaram as políticas de saúde pela dispneia,

na primeira vez em que morreram duzentos mil

e os militares torturaram vacinas em nome da segurança nacional,

na primeira vez em que morreram trezentos mil

e o planeta foi considerado oficialmente plano,

na primeira vez em que morreram quatrocentos mil

e drogas para piolho foram enviadas para as aldeias,

na primeira vez em que morreram quinhentos mil

e a imprensa burguesa louvou a direção correta,

na primeira vez em que morreram seiscentos mil

e os parlamentares trocaram covas por votos,

na primeira vez em que morreram setecentos mil

e a bolsa disparava com os índices da fome,

na primeira vez em que morreu um milhão

e os algarismos foram considerados subversivos,

na vez alguma em que ninguém morreu,

jamais a produtividade do sistema político,

dos juros e do mercúrio

que substituiu os peixes nos rios pátrios

desceria a zero.


– Isto nem parece com poesia, ele faz é ativismo do movimento "Todas as árvores de pé", ramificação que brotou do movimento comunista internacional.

– É para derrubar o cara?

– Claro. Os versos sobre os milhões desviados para tratar a disfunção erétil das forças armadas ameaçam a higidez do Estado.


Na primeira vez em que não se via nada que não fosse polícia,

os olhos do capitão úmidos do adeus ao orçamento público

pingavam polícia,

o patrocínio latifundiário para os cantores da trilha sonora da tortura de camponeses

comprava a polícia,

o desaparecimento do boletim de ocorrência

da chacina de mulheres transexuais

ostentava a presença da polícia,

enquanto as gargalhadas do jornalista e do economista com a notícia de mais um estrangulamento de negros

(diminuição benfazeja do défice da previdência, explicou o economista;

este pessoal ruim de bola nem sabe posicionar o joelho em cima de um pescoço, criticou o jornalista),

queriam esconder a polícia.


– Com as escolas cívico-militares, nada disto será lido pelos estudantes.

– Se elas derem certo, eles não lerão mais nada!

– Assim, poderemos economizar a munição para alvos mais importantes, como alunos de cabelo africano.


A primeira vez em que a polícia nacional atirou no menino autista que não disse como se chamava

e as folhas caídas sobre o corpo encontrado uma semana após reproduziam o mapa do Estado,

a primeira vez em que a federação das indústrias inflou patos gigantes nas ruas

e o golpe de Estado era o que se via no espelho dos palácios,

a primeira vez em que juízes pegaram os papéis deixados sob o pau de arara

para ler nas manchas a lei que aplicariam,

ou aquela em que se decidiu pela incineração coletiva para privatizar com higiene os cemitérios,

ou nesta em que o desvio de verbas da educação para estandes de tiro

levou ao monopólio dos prêmios literários por rascunhos de oficina.


– Antes de explodirmos a casa, ele acrescentou: "Não há primeira vez. Que seja abolido o mito da origem". Não entendi.

– Não teve tempo de terminar o poema. Lerdo. A detonação é o espaço do verso.


Também na primeira vez em que a Terra se tornou redonda

assassinos, togas e cruzes se levantaram.



II


Moramos nos escombros.

Resistimos nos escombros.

Somos feitos dos escombros.

Neste país eles chegam até o céu.

Cairemos sobre vocês.


Nem mesmo voando escaparão

pois soterraremos o anjo.



Encerrada a ilusão das asas,

a história poderá começar.