O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 28 de maio de 2011

Matrimônio igualitário no Brasil? O calor dos afetos


O conhecido advogado e professor de direito Ives Gandra da Silva Martins, que havia sido contrário à emenda constitucional n. 66 de 2010, que acabou com a exigência de um ano de separação judicial ou de dois anos de separação de fato para obtenção de divórcio, novamente pôde expor sua defesa do modelo católico de família, relegando outros modelos à falta ou a uma menor proteção jurídica.
A foto que tirei busca intepretar poeticamente essa menor proteção.
Citei na primeira nota do ano uma entrevista de Foucault que era destinada à revista canadense Body Politic. No início do texto, ele afirma que o sexo não é uma fatalidade, mas uma possibilidade de chegar a uma vida criativa. Todavia, creio que, na Argentina e, possivelmente, no Brasil, os movimentos pelos direitos civis dos homossexuais estejam se afastando bastante das vias sugeridas por Foucault nesse texto e alhures. Nessa entrevista de 1984, o autor francês pensa que seria "completamente contraditório" adotar às ligações homossexuais "o modelo da vida familiar".
Paradoxalmente, na rejeição desse modelo, o pensador radical aproxima-se de Ives Gandra da Silva Martins... Uma das ocasiões em que o pensamento de Foucault encontra-se com o de conservadores.
Em dois artigos semelhantes, um publicado na Folha de S. Paulo em 20 de maio de 2011 ("A Constituição 'conforme' o STF"), outro no Consultor Jurídico o autor brasileiro propugnou que o Supremo Tribunal Federal errou no julgamento das ADI 4277 e ADPF 132. Nessa ocasião, o tribunal reconheceu os efeitos da união estável para casais do mesmo sexo.
O excelso jurista não me parece encontrar excelsos argumentos. É obrigado, no plano fático, a tentar apoiar-se no argumento da fecundidade do casal, critério importante para o casamento religioso católico, mas não de nosso direito civil, o que não o torna condição para o matrimônio civil.
No plano constitucional, tenta fundamentar-se na tese de que o STF roubou o papel do constituinte. Trata-se da questão do originalismo constitucional, usado nos EUA para negar direitos às minorias (como os negros), com sua tentativa de deixar o direito estagnado na pretensa vontade do legislador.
No entanto, o STF não criou novos direitos, apenas os estendeu a uma categoria discriminada em ofensa ao princípio da isonomia, ele mesmo disposto na Constituição de 1988. Por sinal, esse é o papel do juiz desde a noção aristotélica de equidade.
Lembro que o maestro, ex-pianista, ex-empresário e irmão do eminente jurista possui uma visão semelhante a respeito dos relacionamentos afetivos. João Carlos Martins, no livro de entrevistas Conversas com João Carlos Martins (São Paulo: Editora Green Forest do Brasil, 1999), disse a David Dubal estas coisas:
O romance praticamente acabou. Talvez devêssemos retomar as práticas dos casamenteiros ou das famílias que escolhiam os cônjuges dos descendentes. Funcionava bem na Índia, até que a TV perverteu a idéia comum de liberdade.[p. 156]
Mesmo a Igreja Católica consentiu. Antes, não se permitia o divórcio. Uma anulação era possível apenas se nenhuma criança houvesse agraciado aquela casa; mas jamais com crianças. Afinal de contas, o que é um contrato nupcial sem filhos? Não tem razão de existir. [p. 157]

Percebe-se a igual matriz católica no pensamento dos irmãos. No entanto, teria o ex-pianista mudado de opinião - ou deveria tê-lo feito, tendo em vista os acontecimentos recentes? Veja o que ele diz sobre os países tropicais:

O Brasil é um país complexo. Muito selvagem, em alguns aspectos. De certo modo é indisciplinado. Como se sabe, um país só desenvolve grandes coisas se possui clima frio. Não congelado, mas frio. É por isso que o sul do Brasil é mais desenvolvido do que o norte, da mesma forma como a Argentina é ainda mais desenvolvida culturalmente do que o Brasil. [p. 169]

Não seria um sinal do avanço cultural argentino a aprovação do matrimônio igualitário? Creio que o músico deveria revisitar sua opinião sobre os relacionamentos afetivos a partir das "grandes coisas" realizadas pelo legislador ao sul.
Devo também dizer que discordo da preconceituosa explicação climática pois, se esse casamento foi aprovado, isso não se deveu ao frio, mas ao calor dos afetos.

2 comentários:

  1. Determinismo geográfico já é uma corrente de pensamento ultrapassada, só leigos e preconceituosos o utilizam; com relação aos ideais dos Gandra Martins (parecem um clã), estes são igualmente ultrapassados.

    Lucas Pereira

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  2. Prezado Lucas Pereira,
    de fato, essa família parece estar toda ultrapassada...
    Abraços, Pádua.

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