O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Desarquivando o Brasil XV: A justiça brasileira e a negação dos direitos humanos

Com texto de André Petry, entrevistas de Alexandre Oltramari, reportagem de Luciano Patzsch, José Edward, Cláudia Campos, Virginie Leite e Maurício Lima, a antiga revista Veja, em nove de dezembro de 1998, publicou uma longa matéria com torturadores que exerceram suas funções durante a ditadura militar.
O professor e jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, membro da Comissão de Anistia, a quem tive o prazer de entrevistar no ano passado, chamou atenção para essa matéria, que eu não conhecia. Ela pode ser lida nas seguintes ligações:

http://veja.abril.com.br/091298/p_042.html
http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html
http://veja.abril.com.br/091298/p_050.html

Há pouco, uma colega de faculdade falou-me de antropóloga argentina que afirmou não existir, no Brasil, problema de memória, e sim apenas de justiça. Infelizmente, a pesquisadora estava muito errada, pois a memória tem sofrido ataques constantes ultimamente: sabemos que o Supremo Tribunal Federal criou versões falsas da história recente para justificar a impunidade dos agentes da repressão, que juristas de prestígio nos meios de comunicação continuam afirmando que o STF nunca foi pressionado pela ditadura e combatem a Comissão da Verdade, que o engajamento dos juristas de direita na ditadura é providencialmente recalcado nas celebrações acadêmicas e nas publicações jurídicas etc.
Por que é importante ressaltar que isso, de fato, aconteceu? A resposta a essa pergunta corresponde a não menos do que a importância da História.
A resposta também é importante para a justiça. A perpetuação da impunidade, em certos casos, está ligada ao negacionismo no Poder Judiciário brasileiro.
Esse negacionismo não se estende apenas aos acontecimentos do passado, mas aos próprios sistemas internacionais de direitos humanos. Um exemplo foi o de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo contra Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina, e também contra a União Federal e o Estado de São Paulo, por causa dos atos de violação dos direitos humanos durante a ditadura militar. A ação imputava, entre outros, atos de tortura aos réus.
A juíza Diana Brunstein, da 7a. Vara Federal, estendeu a impunidade para além dos limites supremos da decisão da ADPF 153, dando-lhe repercussão no campo civil que o próprio Supremo Tribunal Federal não concedeu, e negou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já tivesse decidido o Caso Araguaia!
Destaco trecho da brilhante apelação do Ministério Público Federal, assinada pela procuradora Eugênia Augusta Gonzaga:

Ressalte-se, para começar – e com a máxima vênia –, o equívoco da magistrada, a qual considera que a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda não havia se pronunciado sobre o caso brasileiro de omissão quanto à responsabilização das violações aos direitos humanos perpetradas durante a ditadura militar na data em que prolatou sua sentença.
Por isso foram apresentados embargos de declaração, os quais foram rejeitados sem a correção desse erro de fato e justificando-se que:

"Este juízo lastreou sua decisão na forma de fundamentação e alicerçando-se no direito interno e na Constituição Federal Brasileira, não lhe competindo dirimir conflitos entre Tratado Internacional e o Direito Interno."

Não se trata, porém, de “dirimir conflitos entre Tratado Internacional e o Direito Interno”, mas sim de definir qual o direito aplicável à espécie e, sobretudo, analisar a vinculação dos órgãos judiciários pátrios à decisão de Tribunal internacional ao qual soberanamente o Brasil se vinculou. Nesse contexto, o erro de fato apontado através dos Embargos de Declaração é de extrema relevância, pois a sentença ignorou norma jurídica concreta, de efeito direto sobre o teor da decisão prolatada.

É possível imaginar que alguns juízes brasileiros não leiam jornais nem se interessem em se informar a respeito de processos judiciais de grande repercussão, mas é um tanto inesperado que não estejam a par dos casos que julgam.
De qualquer forma, isso condiz perfeitamente com a curiosa posição da juíza de que não lhe cabe tratar de conflito de normas, um dos pontos que meus alunos estudam no primeiro semestre da faculdade de direito (continuam a estudá-lo depois, claro). Trata-se de algo que se começa a estudar desde o começo da formação, pois é um tópico fundamental para qualquer profissão jurídica - até mesmo para a magistratura, imagino. Creio que se trata, neste caso, de um exemplo eloquente de denegação da prestação jurisdicional.
A duvidosa excelência técnica dessa decisão é uma constante no Judiciário brasileiro em casos que envolvem direitos humanos. Na minha tese, pude lembrar disto:

O desconhecimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelos agentes públicos mais diretamente ligados à aplicação do Direito foi verificado por recente pesquisa que teve como universo os magistrados da primeira instância da Justiça Estadual do Rio de Janeiro, comarca da Capital. 66% dos entrevistados nunca aplicaram a Convenção Americana de Direitos Humanos e 24% só o faziam raramente. 79% não estavam informados sobre o funcionamento dos sistemas da ONU e da OEA de proteção dos direitos humanos. Em relação ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e ao de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 74% e 75%, respectivamente, são os índices dos magistrados que nunca os aplicaram. 93% nunca participaram de alguma entidade ou movimento de direitos humanos. 40% nunca estudaram a respeito de direitos humanos. No entanto, os resultados poderiam ter sido bem piores se o universo da pesquisa não tivesse sido reduzido: quarenta por cento dos questionários não foram respondidos, seja porque o juiz se recusou, sem motivo, a respondê-lo, ou a receber o pesquisador, ou por ter declarado que o seu trabalho não tinha... relação com os direitos humanos (CUNHA..., 2005)

Os resultados da pesquisa coordenada por José Ricardo Cunha, que eu cito acima, foram publicados no número 3 da Revista Sur.
Ressalte-se que o aparentemente vasto desconhecimento e/ou desinteresse dos direitos humanos por magistrados brasileiros (movido pelo preconceito de classe? uma questão a se investigar) está diretamente relacionado à negação da justiça aos cidadãos.

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