Antes mesmo de a revista sair, o escritor e então editor Fernando Matos Oliveira perguntou se eu poderia verificar se ela não se interessaria em publicar o livro pela Angelus Novus. Dessa forma, ela estreou em Portugal em 2003. No ano seguinte, o livro seria lançado pela 7Letras.
Na foto acima, vê-se a autora no lançamento de Os anões, com Fabio Weintraub. Aqui está a introdução aos contos em Ciberkiosk, anterior à sua estreia em livro:
VERONICA STIGGER
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Nascida em Porto Alegre em 1973, formou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é mestre em Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutoranda em Teoria e Crítica da Arte pela Universidade de São Paulo (USP).
Publicou ficção em VOX XXI; artigos teóricos na revista Arte e Ciência – Mito e Razão ("Arte e mito em Picasso") e no Caderno de Comunicações da Unisinos ("Ser ou não ser: eis uma questão de foto" e "A verdade está lá fora", análise de uma relação estrutural entre o seriado Arquivo X e o mito de Édipo, apresentado no 9.º Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação, texto publicado ainda em cd-rom e em via impressa no Caderno de Textos referente ao Encontro); resenhas na revista Superinteressante.
Sobre a literatura escrita por mulheres, perguntou-se-lhe o que achava do verso de Alberto Pimenta de as moscas de pégaso, "a escritora não tem cu". Stigger foi incisiva: há alguns anos, cerca de meia década atrás, escrevi em uma resenha de jornal que mulher não sabe escrever ¬ opinião que ainda sustento -¬, justamente por faltar a ela algo a que poderíamos dar o nome de cu. Parece-me que a mulher sente a necessidade de se afirmar como mulher a cada linha do texto ficcional. Quando leio um livro escrito por uma mulher, percebo a preocupação de a escritora lembrar ao leitor, a cada linha da obra, de que se trata de uma mulher escrevendo ¬ preocupação inexistente na literatura escrita por homens. Os homens não precisam fazer a barba para produzir literatura de qualidade, enquanto as mulheres, parece-me, acham imprescindível a troca do absorvente. Claro que não estou aqui me referindo a todas as escritoras, mas a uma boa parcela delas. Há exceções. Para mim, a literatura escrita por mulheres deveria ser algo mais do que apenas uma forma de afirmação das mulheres, uma espécie de chá das cinco que só interessa àqueles que participam do chá; deveria ser literatura. Nesse sentido, creio que as mulheres deveriam ter mais cu. Eu, pelo menos, tento.
Stigger convoca em seus contos surpreendentes imagens, como se fizesse da fanopéia uma arte da narração. Em meus contos, busco sempre uma imagem incomum, algum acontecimento (uma chuva de caralhos) ou algo (um gato verde, uma fila de homens nus) que fuja à normalidade, à realidade de nosso mundo, para tratar esse acontecimento, essa coisa como algo corriqueiro. Talvez essas imagens que crio funcionem como imagens de um inconsciente coletivo. Entretanto, se concordássemos que as imagens de meus contos assemelham-se a imagens do inconsciente coletivo, talvez tivéssemos de admitir que estou a criar mitos, o que não creio ser o caso.
Os três contos a seguir integram o livro inédito O trágico e outras comédias.
Do primeiro livro até hoje, muito ocorreu. Ela concluiu o doutorado com a Arte, mito e rito na modernidade: A dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch, a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp (que espero que seja logo publicada), foram publicados pela CosacNaify Gran Cabaret Demenzial (2007) e Os anões (2010), que apostam na diversidade de gêneros: conto, roteiro, teatro, poesia e ready-made. E há também a literatura infantil de Dora e o sol. Em todos esses livros, o leitor pode facilmente perceber o olhar da professora e pesquisadora de arte, que se revela na montagem heterogênea dos textos e na sensibilidade para os efeitos visuais.
Deve-se lembrar da recente exposição de frases que ela fez no SESC.
Na verdade, a poética de Veronica Stigger deriva muito mais das artes plásticas do que de modelos literários - daí a importância do ready made na sua literatura. Não é de estranhar que o livro Os anões seja, ele mesmo, um objeto, com projeto gráfico de Maria Carolina Sampaio.
Singularizam-na essa poética plástica, bem como a ausência de psicologia em boa parte de sua ficção, que recorda neste aspecto a influência dos mitos ameríndios que ela estudou na obra de Lévi-Strauss.
Abaixo, está uma pequena entrevista que fiz com ela neste ano e deveria ter saído em um periódico. Como isso não ocorreu, incluo-a aqui para terminar bem 2011 e anunciar 2012; pois Veronica Stigger fale de seu próximo livro, Sul, e menciona seu projeto amazônico-polonês. Uma nova pré-publicação, portanto.
Sul inclui o conto “2035”, já publicado em antologia de ficção de guerra. Aludindo a seu trabalho como crítica de arte, pode-se nele ver a violência como rito?
Veronica Stigger: Sim. Em “2035”, a violência não é gratuita, ela não só pode como deve ser compreendida dentro de uma lógica ritual – mais especificamente, sacrificial. O sacrifício, nos lembra René Girard, serve como uma forma de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e tensões internas de uma sociedade. Assim, ritualmente, ao se sacrificar a vítima, apaziguam-se essas violências e tensões e impede-se a eclosão de novos conflitos. A violência tem aí, portanto, um caráter expiatório. No conto em questão, percebe-se, pela descrição do cenário, que a narrativa se ambienta num lugar arruinado e desolado, num lugar que talvez tenha passado por uma catástrofe ou uma guerra. É possivelmente contra essa atmosfera de catástrofe e guerra que se atua ritualmente em “2035”. O que torna tudo mais complexo e terrível é que o conto não é narrado a partir do ponto de vista dos sacrificadores, mas do sacrificado.
Em Sul, “2035” parece fazer alusão ao bicentenário da Farroupilha. No entanto, pode-se dizer que, em comum com 2666 de Bolaño (autor que fornece uma das epígrafes do livro), temos nele a permanência de um estado de guerra?
VS: Sim. Como já mencionei, queria criar um clima de estado não tanto em guerra, mas pós-guerra. Esse estado é sugerido pela descrição do cenário: uma terra arrasada, desértica, em que as pessoas temem sair às ruas e se comunicar umas com as outras. Como o título deixa claro, “2035” se passa no futuro, na data das comemorações dos duzentos anos da Revolução Farroupilha. O conto se originou de um convite para participar de uma coletânea de narrativas em que cada escritor deveria inventar uma história que dissesse respeito a uma determinada guerra. A mim, coube a Guerra dos Farrapos. Lembrando-me das grandes comemorações dos cem anos da Revolução Farroupilha, com bandeiras da Alemanha nazista (entre outras) balouçando no Parque Redenção, queria imaginar como seriam as comemorações dos duzentos anos da guerra, num futuro próximo. Foi aí que me veio à mente esse cenário de destruição. Não tenho uma visão muito otimista do meu sul...
Borges fornece outra das epígrafes de Sul. No entanto, não se pode afirmar que a concepção stiggeriana de sul é muito diferente da de Borges, bem mais violenta e visceral? Tanto em “Mancha” quanto em “O coração dos homens”, o sul é também o sul do corpo.
VS: De fato, pode-se pensar o sul em “Mancha” e “O coração dos homens” como o sul do corpo e – eu acrescentaria – seus fluidos. Os dois contos citados chamam a atenção não apenas para, digamos assim, as partes baixas, mas principalmente para o sangue: o sangue vertido por alguma ferida (que há também em “2035”) e o sangue menstrual. Nesse sentido, é mais “visceral” que Borges. E também mais violento – talvez justamente por trazer o sangue para o primeiro plano. Borges, em “O sul”, um dos mais fantásticos contos já escritos, está tratando de outra coisa. A questão principal ali é a honra. Dahlman, o protagonista, na iminência de uma morte num leito de hospital por septicemia, escolhe para si, em delírio, uma morte mais honrosa: a morte em duelo. O trecho deste conto que extraí para a epígrafe de Sul é justamente o seu final, quando Dahlmann sai para a rua em direção a uma morte certa, já que tem plena consciência de que não saberá manejar a adaga que tem na mão.
Pode-se dizer que este seu livro seria o maior exemplo, na sua obra, de “literatura feminina”? A vítima em “2035” é mulher, do homem só restam líquidos em “Mancha”, e em “O coração dos homens” os fluidos femininos inundam o mundo.
VS: Não sei se existe isto que você chama de “literatura feminina”. Claro, há livros que só poderiam ter sido escritos por uma mulher, mas não sei se isso configura uma “literatura feminina”. De qualquer modo, também não saberia dizer se, dentre os meus, este livro seria o mais evidentemente escrito por uma mulher. Dois dos aspectos para os quais você chama a atenção – a vítima ser uma mulher em “2035” e a redução dos homens a líquidos em “Mancha” – já foram, de uma maneira ou de outra, tratados em livros anteriores. Já em O trágico e outras comédias, meu primeiro livro, há um conto, chamado “A chuva”, em que os homens são reduzidos a seus “caralhos”. Havia tanto naquele conto quanto agora há em “Mancha” um deliberado apagamento da figura masculina. No livro seguinte, Gran Cabaret Demenzial, o conto de abertura é sobre uma mulher que se automutila: em certa medida, ela é sua vítima e seu algoz ao mesmo tempo. A novidade em Sul – e talvez seja o elemento mais propriamente “feminino” – é a abordagem tão crua e direta da menstruação. Sobre isso, não sei se um homem seria capaz de escrever como escrevi, ou como outra mulher poderia escrever.
Lemos em “O coração dos homens”: “O sangue tem um cheiro adocicado./ Um cheiro persistente./ Um cheiro de morte.// O mijo tem um cheiro ácido./ Um cheiro passageiro./ Um cheiro de rodoviária.” O coração dos homens é aquilo que bombeia os dejetos?
VS: Sim. Mas é também e principalmente o que sangra. Como diz o rei dos putos da colônia Guerrero, o coração dos homens é o “que sangra como as mulheres” e “que obriga os verdadeiros homens a se responsabilizarem por seus atos, quaisquer que sejam”.
Sul, como Gran Cabaret Demenzial e Os anões, aposta na mistura de gêneros curtos. Você pretende escrever uma ficção mais longa, como já anunciou em entrevista, ou crê que as narrativas curtas são o seu melhor meio de expressão?
VS: Creio que o conto é meu melhor meio de expressão, aquele no qual me sinto mais confortável – e que sinto também mais afim ao universo de escrita e de leitura do nosso tempo. No entanto, estou atualmente trabalhando na escrita de um livro de maior fôlego, até para experimentar algo para o qual não sinto ter predisposição, digamos, natural (sem esse esforço, ainda viveríamos nas cavernas). Não será um romance, mas uma novela, e se chamará Opisanie świata, que quer dizer “descrição do mundo” e é como se traduz Il Milione, o livro de viagens de Marco Polo, para o polonês. É justamente como uma espécie de relato de viagens que essa novela deverá se constituir. A idéia é acompanhar o deslocamento do protagonista, Opalka, um cinqüentão, desde sua Polônia natal até a floresta amazônica. Ainda em casa, ele recebe uma carta por meio da qual descobre que tem um filho em Manaus, onde viveu por um tempo, e que este está muito doente. Daí a necessidade de voltar à Amazônia. Embora a forma externa seja a da novela, pretendo no interior dela continuar brincando com os mais diversos registros, como o do relato de viagens, o da carta, o da narrativa em terceira pessoa, o do diário etc. Vamos ver no que vai dar.
“Coração dos homens” parece influenciado por Lucrecia Martel. Você reconhece essa influência, ou aprecia a cineasta?
VS: Eu gosto muito do cinema de Lucrecia Martel. Acho-o magnífico. Mas não vejo tanto a influência de Lucrecia Martel em “O coração dos homens”. Se fosse forçada a fazer uma aproximação entre este conto e uma obra cinematográfica, diria que estaria mais próximo do universo de Catherine Breillat em Para a minha irmã.