O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 31 de dezembro de 2011

Veronica Stigger sobre o coração dos homens

Conheci Veronica Stigger por meio de seu marido, Eduardo Sterzi. Não sabia que ela escrevia ficção até que, certa vez, timidamente perguntou se eu poderia ler um conto que havia sido recusado em uma revista de cultura porque desagradaria a ala católica do partido no poder... Li a maravilha que é "A chuva" e indaguei se ela concordaria em participar da seção de pré-publicação de Ciberkiosk, reservada a textos inéditos. Ela concordou e escolheu "Câncer no cu", "Depois da chuva" e "O cabeção", todos posteriormente incluídos em O trágico e outras comédias.
Antes mesmo de a revista sair, o escritor e então editor Fernando Matos Oliveira perguntou se eu poderia verificar se ela não se interessaria em publicar o livro pela Angelus Novus. Dessa forma, ela estreou em Portugal em 2003. No ano seguinte, o livro seria lançado pela 7Letras.
Na foto acima, vê-se a autora no lançamento de Os anões, com Fabio Weintraub. Aqui está a introdução aos contos em Ciberkiosk, anterior à sua estreia em livro:


VERONICA STIGGER
________________________________________
Nascida em Porto Alegre em 1973, formou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é mestre em Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutoranda em Teoria e Crítica da Arte pela Universidade de São Paulo (USP).

Publicou ficção em VOX XXI; artigos teóricos na revista Arte e Ciência – Mito e Razão ("Arte e mito em Picasso") e no Caderno de Comunicações da Unisinos ("Ser ou não ser: eis uma questão de foto" e "A verdade está lá fora", análise de uma relação estrutural entre o seriado Arquivo X e o mito de Édipo, apresentado no 9.º Encontro Anual da Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em Comunicação, texto publicado ainda em cd-rom e em via impressa no Caderno de Textos referente ao Encontro); resenhas na revista Superinteressante.

Sobre a literatura escrita por mulheres, perguntou-se-lhe o que achava do verso de Alberto Pimenta de as moscas de pégaso, "a escritora não tem cu". Stigger foi incisiva: há alguns anos, cerca de meia década atrás, escrevi em uma resenha de jornal que mulher não sabe escrever ¬ opinião que ainda sustento -¬, justamente por faltar a ela algo a que poderíamos dar o nome de cu. Parece-me que a mulher sente a necessidade de se afirmar como mulher a cada linha do texto ficcional. Quando leio um livro escrito por uma mulher, percebo a preocupação de a escritora lembrar ao leitor, a cada linha da obra, de que se trata de uma mulher escrevendo ¬ preocupação inexistente na literatura escrita por homens. Os homens não precisam fazer a barba para produzir literatura de qualidade, enquanto as mulheres, parece-me, acham imprescindível a troca do absorvente. Claro que não estou aqui me referindo a todas as escritoras, mas a uma boa parcela delas. Há exceções. Para mim, a literatura escrita por mulheres deveria ser algo mais do que apenas uma forma de afirmação das mulheres, uma espécie de chá das cinco que só interessa àqueles que participam do chá; deveria ser literatura. Nesse sentido, creio que as mulheres deveriam ter mais cu. Eu, pelo menos, tento.
Stigger convoca em seus contos surpreendentes imagens, como se fizesse da fanopéia uma arte da narração. Em meus contos, busco sempre uma imagem incomum, algum acontecimento (uma chuva de caralhos) ou algo (um gato verde, uma fila de homens nus) que fuja à normalidade, à realidade de nosso mundo, para tratar esse acontecimento, essa coisa como algo corriqueiro. Talvez essas imagens que crio funcionem como imagens de um inconsciente coletivo. Entretanto, se concordássemos que as imagens de meus contos assemelham-se a imagens do inconsciente coletivo, talvez tivéssemos de admitir que estou a criar mitos, o que não creio ser o caso.
Os três contos a seguir integram o livro inédito O trágico e outras comédias.


Do primeiro livro até hoje, muito ocorreu. Ela concluiu o doutorado com a Arte, mito e rito na modernidade: A dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch, a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp (que espero que seja logo publicada), foram publicados pela CosacNaify Gran Cabaret Demenzial (2007) e Os anões (2010), que apostam na diversidade de gêneros: conto, roteiro, teatro, poesia e ready-made. E há também a literatura infantil de Dora e o sol. Em todos esses livros, o leitor pode facilmente perceber o olhar da professora e pesquisadora de arte, que se revela na montagem heterogênea dos textos e na sensibilidade para os efeitos visuais.
Deve-se lembrar da recente exposição de frases que ela fez no SESC.
Na verdade, a poética de Veronica Stigger deriva muito mais das artes plásticas do que de modelos literários - daí a importância do ready made na sua literatura. Não é de estranhar que o livro Os anões seja, ele mesmo, um objeto, com projeto gráfico de Maria Carolina Sampaio.
Singularizam-na essa poética plástica, bem como a ausência de psicologia em boa parte de sua ficção, que recorda neste aspecto a influência dos mitos ameríndios que ela estudou na obra de Lévi-Strauss.
Abaixo, está uma pequena entrevista que fiz com ela neste ano e deveria ter saído em um periódico. Como isso não ocorreu, incluo-a aqui para terminar bem 2011 e anunciar 2012; pois Veronica Stigger fale de seu próximo livro, Sul, e menciona seu projeto amazônico-polonês. Uma nova pré-publicação, portanto.


Sul inclui o conto “2035”, já publicado em antologia de ficção de guerra. Aludindo a seu trabalho como crítica de arte, pode-se nele ver a violência como rito?

Veronica Stigger: Sim. Em “2035”, a violência não é gratuita, ela não só pode como deve ser compreendida dentro de uma lógica ritual – mais especificamente, sacrificial. O sacrifício, nos lembra René Girard, serve como uma forma de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e tensões internas de uma sociedade. Assim, ritualmente, ao se sacrificar a vítima, apaziguam-se essas violências e tensões e impede-se a eclosão de novos conflitos. A violência tem aí, portanto, um caráter expiatório. No conto em questão, percebe-se, pela descrição do cenário, que a narrativa se ambienta num lugar arruinado e desolado, num lugar que talvez tenha passado por uma catástrofe ou uma guerra. É possivelmente contra essa atmosfera de catástrofe e guerra que se atua ritualmente em “2035”. O que torna tudo mais complexo e terrível é que o conto não é narrado a partir do ponto de vista dos sacrificadores, mas do sacrificado.


Em Sul, “2035” parece fazer alusão ao bicentenário da Farroupilha. No entanto, pode-se dizer que, em comum com 2666 de Bolaño (autor que fornece uma das epígrafes do livro), temos nele a permanência de um estado de guerra?

VS: Sim. Como já mencionei, queria criar um clima de estado não tanto em guerra, mas pós-guerra. Esse estado é sugerido pela descrição do cenário: uma terra arrasada, desértica, em que as pessoas temem sair às ruas e se comunicar umas com as outras. Como o título deixa claro, “2035” se passa no futuro, na data das comemorações dos duzentos anos da Revolução Farroupilha. O conto se originou de um convite para participar de uma coletânea de narrativas em que cada escritor deveria inventar uma história que dissesse respeito a uma determinada guerra. A mim, coube a Guerra dos Farrapos. Lembrando-me das grandes comemorações dos cem anos da Revolução Farroupilha, com bandeiras da Alemanha nazista (entre outras) balouçando no Parque Redenção, queria imaginar como seriam as comemorações dos duzentos anos da guerra, num futuro próximo. Foi aí que me veio à mente esse cenário de destruição. Não tenho uma visão muito otimista do meu sul...

Borges fornece outra das epígrafes de Sul. No entanto, não se pode afirmar que a concepção stiggeriana de sul é muito diferente da de Borges, bem mais violenta e visceral? Tanto em “Mancha” quanto em “O coração dos homens”, o sul é também o sul do corpo.

VS: De fato, pode-se pensar o sul em “Mancha” e “O coração dos homens” como o sul do corpo e – eu acrescentaria – seus fluidos. Os dois contos citados chamam a atenção não apenas para, digamos assim, as partes baixas, mas principalmente para o sangue: o sangue vertido por alguma ferida (que há também em “2035”) e o sangue menstrual. Nesse sentido, é mais “visceral” que Borges. E também mais violento – talvez justamente por trazer o sangue para o primeiro plano. Borges, em “O sul”, um dos mais fantásticos contos já escritos, está tratando de outra coisa. A questão principal ali é a honra. Dahlman, o protagonista, na iminência de uma morte num leito de hospital por septicemia, escolhe para si, em delírio, uma morte mais honrosa: a morte em duelo. O trecho deste conto que extraí para a epígrafe de Sul é justamente o seu final, quando Dahlmann sai para a rua em direção a uma morte certa, já que tem plena consciência de que não saberá manejar a adaga que tem na mão.

Pode-se dizer que este seu livro seria o maior exemplo, na sua obra, de “literatura feminina”? A vítima em “2035” é mulher, do homem só restam líquidos em “Mancha”, e em “O coração dos homens” os fluidos femininos inundam o mundo.

VS: Não sei se existe isto que você chama de “literatura feminina”. Claro, há livros que só poderiam ter sido escritos por uma mulher, mas não sei se isso configura uma “literatura feminina”. De qualquer modo, também não saberia dizer se, dentre os meus, este livro seria o mais evidentemente escrito por uma mulher. Dois dos aspectos para os quais você chama a atenção – a vítima ser uma mulher em “2035” e a redução dos homens a líquidos em “Mancha” – já foram, de uma maneira ou de outra, tratados em livros anteriores. Já em O trágico e outras comédias, meu primeiro livro, há um conto, chamado “A chuva”, em que os homens são reduzidos a seus “caralhos”. Havia tanto naquele conto quanto agora há em “Mancha” um deliberado apagamento da figura masculina. No livro seguinte, Gran Cabaret Demenzial, o conto de abertura é sobre uma mulher que se automutila: em certa medida, ela é sua vítima e seu algoz ao mesmo tempo. A novidade em Sul – e talvez seja o elemento mais propriamente “feminino” – é a abordagem tão crua e direta da menstruação. Sobre isso, não sei se um homem seria capaz de escrever como escrevi, ou como outra mulher poderia escrever.

Lemos em “O coração dos homens”: “O sangue tem um cheiro adocicado./ Um cheiro persistente./ Um cheiro de morte.// O mijo tem um cheiro ácido./ Um cheiro passageiro./ Um cheiro de rodoviária.” O coração dos homens é aquilo que bombeia os dejetos?

VS: Sim. Mas é também e principalmente o que sangra. Como diz o rei dos putos da colônia Guerrero, o coração dos homens é o “que sangra como as mulheres” e “que obriga os verdadeiros homens a se responsabilizarem por seus atos, quaisquer que sejam”.

Sul, como Gran Cabaret Demenzial e Os anões, aposta na mistura de gêneros curtos. Você pretende escrever uma ficção mais longa, como já anunciou em entrevista, ou crê que as narrativas curtas são o seu melhor meio de expressão?

VS: Creio que o conto é meu melhor meio de expressão, aquele no qual me sinto mais confortável – e que sinto também mais afim ao universo de escrita e de leitura do nosso tempo. No entanto, estou atualmente trabalhando na escrita de um livro de maior fôlego, até para experimentar algo para o qual não sinto ter predisposição, digamos, natural (sem esse esforço, ainda viveríamos nas cavernas). Não será um romance, mas uma novela, e se chamará Opisanie świata, que quer dizer “descrição do mundo” e é como se traduz Il Milione, o livro de viagens de Marco Polo, para o polonês. É justamente como uma espécie de relato de viagens que essa novela deverá se constituir. A idéia é acompanhar o deslocamento do protagonista, Opalka, um cinqüentão, desde sua Polônia natal até a floresta amazônica. Ainda em casa, ele recebe uma carta por meio da qual descobre que tem um filho em Manaus, onde viveu por um tempo, e que este está muito doente. Daí a necessidade de voltar à Amazônia. Embora a forma externa seja a da novela, pretendo no interior dela continuar brincando com os mais diversos registros, como o do relato de viagens, o da carta, o da narrativa em terceira pessoa, o do diário etc. Vamos ver no que vai dar.

“Coração dos homens” parece influenciado por Lucrecia Martel. Você reconhece essa influência, ou aprecia a cineasta?

VS: Eu gosto muito do cinema de Lucrecia Martel. Acho-o magnífico. Mas não vejo tanto a influência de Lucrecia Martel em “O coração dos homens”. Se fosse forçada a fazer uma aproximação entre este conto e uma obra cinematográfica, diria que estaria mais próximo do universo de Catherine Breillat em Para a minha irmã.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O que é ditadura? Respostas oficiais

O que é ditadura para as autoridades brasileiras? Três respostas recentes, provenientes dos três Poderes da União e dos três níveis da Federação, causaram-me algum espanto.


I. Segundo autoridades do Executivo municipal em São Paulo, isto não é ditadura:

Prefeito aumenta a presença de coronéis da PM em postos-chave da sua gestão; apenas a subprefeitura do M’Boi Mirim continua liderada por um civil

Kassab, prefeito de São Paulo, entregou as subprefeituras a oficiais da Polícia Militar. Formalmente, de fato, tal situação não configura uma ditadura. As "funções sociais da cidade" são bem atendidas por essas pessoas? Evidente que não, o desastre urbano gerenciado que é São Paulo bem o demonstra.
A política urbana entendida como militarização do território, que é o que tais autoridades podem fazer (até por falta de outras credenciais...) deixa claro um dos pressupostos da "gestão" Kassab: os cidadãos são o inimigo.
Contra nós, até os acidentes e o fogo são armas oportunas.
Nos tempos da ditadura militar, foi nomeado secretário de segurança do estado de São Paulo um dos juristas que colaboraram com aquele regime: Hely Lopes Meirelles - um dos maiores nomes da história do direito público no Brasil. Ele foi especialmente importante nas áreas de direito administrativo e direito municipal.
Ele foi secretário no governo de Abreu Sodré (estava na pasta do Interior, e ainda ocuparia a de Justiça), época em que floresceu o esquadrão da morte. Não encontrei documentos em que o secretário elogiasse o esquadrão - e sim a Operação Bandeirante, que começou em julho de 1969, sob a gestão do secretário Hely Lopes Meirelles e que, de acordo com a doutrina do administrativista Hely Lopes Meirelles, deveria ter sido considerada ilegal - havia sido criada sem autorização em lei, por determinação do governo federal. Nesta entrevista dada a Antonio Carlos Fon, publicada no livro Tortura: a história da repressão política no Brasil, Hely mostra como a ditadura havia acabado com o federalismo no país, ao revelar que recebeu ordens diretamente do estado-maior das Forças Armadas.
Hely Lopes Meirelles fez o jogo do sistema. No entanto, no final de 1969 ele não pôde mais continuar no cargo - as secretarias de segurança foram entregues a militares, homens mais identificados com a repressão do que o administrativista. Em São Paulo, assumiu-a o general Vianna Moog.
Para essas antigas autoridades, o principal inimigo era o interno. Um ponto em comum com a gestão Kassab.


II. De acordo com o judiciário estadual de São Paulo, isto é ditadura:

Novo presidente do TJ de SP compara atos do CNJ aos da ditadura

O magistrado Ivan Sartori, futuro presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, compara a investigação do Conselho Nacional de Justiça a atos de uma ditadura. Fernando Tourinho Neto, da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), também realizou a comparação.
O debate acirrou-se depois que o ministro Lewandowski, adotando um entendimento estreito da suspeição no direito processual, deferiu pedido liminar de suspensão de investigação do Conselho Nacional de Justiça, apresentado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela Ajufe.
A investigação diz respeito a valores que tanto Lewandowski quanto Peluso receberam quando pertenciam ao Tribunal de Justiça de São Paulo, como levantou a Folha de S.Paulo.
Peluso emitiu nota pública apoiando o colega, assim concluída: "Nos termos expressos da Constituição, a vida funcional do ministro Lewandowski e a dos demais ministros do Supremo Tribunal Federal não podem ser objeto de cogitação, de investigação ou de violação de sigilo fiscal e bancário por parte da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça."
De fato, trata-se de competência do próprio Supremo Tribunal Federal. O argumento de que não haveria suspeição (nem impedimento) porque o CNJ não tem competência para investigar Ministro do STF é que parece estar às turras com a lógica; dependendo do resultado, é bem possível imaginar que a apuração do CNJ leve à conclusão de que aqueles dois Ministros deveriam ser investigados pelo tribunal a que pertencem.
O presidente da OAB, Ophir Cavalcante, tem defendido a competência do CNJ na investigação de magistrados, afirmando que, na república, todos devem ser considerados responsáveis. Marco Aurélio Mello, em outra decisão de fim de ano do STF, havia concedido liminar (uma "liminar-nocaute" contra Eliana Calmon, segundo bem escreveu Wálter Maierovich) para impedir que o CNJ inicie processos contra magistrados antes da atuação da corregedoria dos tribunais.
No Antigo Regime, nem todos podiam ser responsabilizados, como se pode ver nas Ordenações Filipinas, coletânea da legislação do império feita em 1603, quando Brasil era colônia e vigia a União Ibérica. As Ordenações continuaram vigentes após a independência do Brasil, até que, paulatinamente, o país substituiu por completo a legislação portuguesa. Um trecho do título I do Primeiro Livro das Ordenações talvez infunda ainda, historicamente, a alma do Judiciário:

Como a Casa da Supplicação seja o maior Tribunal da Justiça de nossos Reinos, e em que as causas de maior importancia se vem a apurar e decidir, deve o Regedor della ter as qualidades, que para cargo de tanta confiança e autoridade se requerem.
Pelo que se deve sempre procurar, que seja homem fidalgo, de limpo sangue, de sã consciência, prudente, e de muita autoridade, e letrado, se fôr possível [...]
E assi deve ser abastado de bens temporaes, que em sua particular necessidade não seja causa de em algumas coisas perverter a inteireza e constancia com que nos deve servir.

Ser "letrado" não era necessário, e sim abastado - o que não é realmente garantia, porém, para evitar a "perversão" da Justiça.


III. Isto é ditadura, segundo a senadora pelo Tocantins (hoje no PSD) e presidenta da Confederação Nacional da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu:

Kátia Abreu elogia texto do novo Código Florestal

Lemos, surpresos: "acabou-se a "ditadura ambiental", pela qual as organizações não governamentais controlavam o meio ambiente no país e não deixavam o Congresso Nacional discutir o assunto", e que "Sofremos por mais de 15 anos nas mãos de uma ditadura feita por uma minoria do Ministério do Meio Ambiente, do Conama e do Ibama."
Tratava-se mesmo de uma ditadura ímpar, em que os ditadores não dispunham de poder algum. O IBAMA era tão poderoso que, em 2009, por exemplo, segundo o Tribunal de Contas da União, só conseguiu arrecadar ZERO VÍRGULA SEIS POR CENTO das multas ambientais.
Uma ditadura que permite que criminosos aufiram do Congresso Nacional sucessivas anistias? E da presidência, por meio de decretos, como o Decreto 6514/2008, 7029/2009? Ou de ambos juntos, como das medidas provisórias aprovadas pelo Congresso, como foi o caso da lei 11460/2007, que teve origem na MP 327/2006, sobre transgênicos plantados ilegalmente, especialmente soja?
Uma ditadura cujos militantes caem seguidamente assassinados e cujos mortos são vaiados em pleno Congresso Nacional?
Mais forte do que essa, apenas a ditadura gay, que possui integrantes tão poderosos que são espancados e mortos nas ruas!
Sobre essa, porém, deixo aqui apenas a referência à arte de Laerte e a uma crônica de Antonio Prata sobre o projeto de criminalização da homofobia.

Talvez a crônica resuma bem a questão: essas autoridades que estão a denunciar como defensores de ditaduras aqueles que lutam pela igualdade (os da "ditadura gay"), pelo meio ambiente e pela transparência do poder público (inclusive Judiciário...) estão dispostas "a lutar por um mundo injusto, desigual e preconceituoso!" Algo semelhante a esta democracia...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Algo como um poema: Auto de resistência


Fui escolhido em agosto (mas só descobri depois) vencedor do Prêmio Minas para livro inédito de poesia. A cerimônia de entrega ocorreria em novembro, foi adiada para janeiro, até que, semana passada, foi transferida para 22 de dezembro de 2011. Eu já não podia mais ir. Um pena: não conhecerei Affonso Ávila, o grande homenageado, e os vencedores nas outras categorias, Jeter Jaci Neves (ficção) e André Oliveira Zambaldi (jovem escritor mineiro).
Já conheci, no entanto, por meio de Eduardo Sterzi, o vencedor da categoria de poesia em 2009, Eduardo Jorge de Oliveira.
Escrevi para a cerimônia (e para o livro) um poema, do qual leria, para não entediar ninguém, apenas a primeira parte. Como não estarei em Belo Horizonte, deixo-a aqui para que outros - em toda parte - possam lê-la, inclusive os professores de Minas Gerais.


Auto de resistência



I

o sangue ensina:
os professores
sob cassetete;

o sangue esquece:
nos professores
quem já se infiltra

é a polícia
e os corredores
trocam de pele

como quem veste
todas as cores
carnificinas;

o sangue ensina
aos professores
que não se aprende

senão na pele;
“já não são dores,
mas honrarias

isto que ensina
aos professores
o cassetete:

os corpos febres
transformadores
do que extermina

na própria vida”
e os corredores
caem inertes

sobre os pedestres,
nos vestem hoje
do ontem em dia.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Fim do ano: um poema e uma canção

Traduzo um poema de Brecht, "Ich, der Überlebende", oportuno para quem ultrapassar o fim de 2011.
Ele pertence ao pequeno conjunto "Poemas no exílio".

Eu, o sobrevivente


É claro que sei: apenas por sorte
Sobrevivi a tantos amigos. Porém, hoje à noite, sonhando,
Ouvi esses meus amigos dizer: "Os mais fortes sobrevivem"
E eu me odiei.


Na tradução, como o samba de Candeia e gramáticos, adoto o infinito impessoal com o verbo ouvir.
Por sinal, se o Brecht é para abandonar 2011, esta canção de Candeia é para começar o novo ano: "Deixem-me ir, preciso andar [...] Ouvir os pássaros cantar./ Eu quero nascer, quero viver.", na interpretação clássica de Cartola, e na voz, aqui austera, de Ney Matogrosso.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Literatura negra no Brasil: Francisco Maciel e o humano como impossibilidade

Ferreira Gullar tem um espaço semanal para resmungos na Folha de S.Paulo, alguns já coligidos em livro que recebeu o Jabuti de melhor ficção de 2007.
Nesse mundo ficional, paralelo ao das Cidades inventadas, de 1997, Gullar imagina que não cabe falar em literatura brasileira negra - foi seu tema em quatro de dezembro de 2011. Ele defende que a cor da pele não seria significativa para ler Machado de Assis e Cruz e Sousa, uma vez que herdaram formas europeias.
O poeta e cronista concede que a ideia de uma literatura brasileira negra seria uma boa intenção para valorizar escritores negros, mas argumenta que é desnecessária, pois todos já consideram Machado de Assis o maior escritor do país.
No Brasil em que moro, ocorre o oposto; sem querer tratar da situação de outros escritores negros e mulatos, que sofreram discriminação (Lima Barreto e Cruz e Sousa são exemplos clássicos), lembremos de Machado: justamente por ele ser o melhor escritor, a sua cor é negada - talvez a mais recente vítima de branqueamento que sofreu tenha sido esta propaganda da Caixa Econômica Federal. Essa atitude sórdida ocorre todos os dias, inclusive nas salas de aula.
Ademais, é falsear a literatura de Machado não ver nela as questões relativas ao negro no Brasil, como bem mostrou, entre outros, Eduardo de Assis Duarte com Machado de Assis afro-descendente, que já citei em artigo.
Esse professor e pesquisador da UFMG lançou Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, em quatro volumes. Os sessenta e um pesquisadores que escreveram os ensaios críticos trataram também de autores vivos.
Estou longe de tê-la lido por completo (comprei-a recentemente, na Feira da USP), mas imagino que se trata de uma leitura que poderia inspirar ou, quem sabe, esclarecer Ferreira Gullar.
A crônica de Gullar gerou, entre diversas manifestações, um texto de Francisco Maciel, um de meus escritores brasileiros favoritos, que elaborou uma resposta acusando-o de leninismo. Não sei se é o melhor diagnóstico. É certo, porém, que o chamado Partidão tinha dificuldade em digerir reivindicações de minorias como os negros, as mulheres e os homossexuais. Contudo, quanto resta do antigo partido, que não conseguiu nem mesmo conservar o nome, em Gullar, amigo e admirador (da literatura) de Sarney?
Faço a questão, mas ela não é relevante para mim. Escrevo esta nota porque Francisco Maciel é objeto de um capítulo na antologia crítica Literatura e afrodescendência no Brasil, com toda justiça. Marcos Fabrício Lopes da Silva escreve sobre Maciel no segundo volume. O capítulo descreve os escritos que o autor publicou pela Estação Liberdade, o conto Entre dois mundos e o romance O primeiro dia do ano da peste.
Gostaria de ler Cavalos e santos, último livro de Francisco Maciel, no gênero poesia. Enquanto não o encontro, deixo aqui um capítulo de um artigo que escrevi em 2002 para o extinto periódico português Ciberkiosk. Um texto simples (nos outros capítulos, eu tratava de Bernardo Carvalho e de Hilda Hilst), mas que tem como objeto justamente o que Francisco Maciel acusa Gullar de não levar a sério: a importância de os negros elaborarem discursos sobre si mesmos.



FRANCISCO MACIEL: OS DISCURSOS DO NEGRO E DA IMPOSSIBILIDADE


Othello de Shakespeare bem pode ser a tragédia da apropriação de discursos: a peça começa com Iago e Roderigo falando sobre o protagonista, pintando-o com tintas nada lisonjeiras. A Brabantio, Roderigo define o mouro como “an extravagant and wheeling stranger/ Of here and everywhere” 11 (Ato I, cena I, versos 137-138). Othello, na cena dois do primeiro ato, apresenta-se com toda uma outra versão de si mesmo: “being/ From men of royal siege” (versos 21 e 22). Othello conquista Desdemona por meio do discurso: “It was my hint to speak - such was the process; [...] She’d come again, and with a greedy ear/ Devour up my discourse.” (Ato I, Cena III, versos 142, 149 e 150). Contar uma história significa despertar o amor: “if I had a friend that lov’d her,/ I should but teach him how to tell my story,/ And that would woo her.” (Ato I, cena III, versos 164-166).
Iago revela que sua estratégia será uma estratégia do discurso: “I’ll pour this pestilence into his ear” (Ato II, cena III, p. 345); como exemplo máximo, a falsa narrativa do sonho de Cassio, sendo o próprio sonho narrativa de um pretenso encontro com Desdemona.
Iago manipula os discursos sobre Desdemona, Cassio e Othello de tal forma que tais discursos passam a prevalecer, e Othello deseja vingar-se da suposta traição para não ser vítima do discurso alheio (“but, alas, to make me/ The fixed figure for the time of scorn”, Ato IV, cena II, versos 54-55). Desdemona, por sua vez, negando o adultério, diz a Iago que não poderia agir como uma prostituta pois mal poderia falar tal palavra: “I cannot say ‘whore’;/ It does abhor me now I speak the word;/ To do the act that might the addition earn,/ Not the world’s mass of vanity could make me.” (Ato IV, cena II, versos 162-165).
Ou seja: Othello e Desdemona estão comprometidos com discursos da verdade, e isso os levará à perdição; Iago, não; como um sofista, como um Foucault, ele quer destruir o desejo de verdade. A sua fala final “Demand me nothing. What you know, you know./ From this time forth I never will speak word.” (Ato V, cena II, versos 306-307) pode dizer mais do que o personagem não querer revelar a verdade sobre as suas ações; pode significar que simplesmente não há tal verdade, e isso faz de Iago talvez o mais perturbador dos vilões de Shakespeare.
Nesse sentido, o Otello de Verdi e Boito é muito menos interessante, pois o Credo, cantado no início do segundo ato - a melhor música de Verdi nesta magnífica ópera - , confere um motivo às ações de Iago: o pecado original (é mau o Deus que criou o homem) e o medo da morte e do nada (“La Morte è il Nulla”). O de Shakespeare, muito mais moderno do que o de Verdi e Boito, é um apóstolo do Nada. Pode-se dizer que ele menos queria atingir Othello, Desdemona ou Cassio do que a própria verdade.
No desfecho, Othello pede a palavra (“Soft you; a word or two before you go”, Ato V, cena II, versos 341) o faz menos para assegurar uma boa fala para o ator principal do que para confirmar que o negro é aquele que não detém o discurso. Othello pede para que reportem, ao fim, a versão dele mesmo. Apesar disso, ele morre como negro, pois deixa a sua história para ser relatada por discurso alheio; diz Lodovico “Myself will straight aboard; and to the state/ This heavy act with heavy heart relate.” (Ato V, cena II, versos 373-374). Othello morre sob um beijo – e como é lugar comum na poesia da época, beijos e palavras são excludentes 12.
O discurso do negro, pois, foi um silêncio na literatura até que a sua voz passou a ser ouvida. Que voz, porém, é essa?
É interessante lembrar da crítica de James Baldwin aos romances “enfurecidos” de autores negros, que apenas faziam reforçar a opressão por eles combatida 13; a literatura meramente engajada na causa negra não é suficiente como literatura e mostra-se pouco eficiente como panfleto. Não é o que faz Francisco Maciel.
Pela conhecida falta de visão do mercado editorial brasileiro, esse autor, um homem negro nascido em 1950, ficou inédito até os cinqüenta anos, quando a editora Estação Liberdade teve a iniciativa de publicá-lo: no ano de 2000, numa coletânea dos contos finalistas do Prêmio Julia Mann de Literatura, de que Maciel foi o vencedor com Entre dois mundos (que dá nome ao volume), e em 2001 com o romance O primeiro dia do ano da peste.
No conto Entre dois mundos, lê-se a história de um homem negro dividido entre a cultura alemã e a brasileira (não por coincidência, um dos eixos da história é a tradução de um poema de Rilke e a paráfrase desse poema feita por Vinicius de Moraes), entre a vida e a morte, e de um país - o Brasil - dividido entre o mito da democracia racial e o racismo institucionalizado.
As divisões se multiplicam: de onde é o personagem? “Daqui. De lugar nenhum. De qualquer lugar.” ele divide-se entre a Alemanha e a África, prisão e a liberdade, entre a Alemanha (o conto ecoa Rilke, Goethe, Heidegger, Enzensberger...) e a Alemanha (parte da colônia penal – não a de Kafka - onde ficava a “ralé da ralé da ralé”), Álvaro de Campos e o Cristo seqüestrado.
O mesmo universo ficcional aparece no romance. Também nesse livro irrompem referências à “alta cultura européia” e à brasileira, muitas vezes como paródia: o Blake duplo em “Ó Rosa, estás doente! - recita o Tigre” [p. 145]; o Heidegger de “O negro sai do Nada como um pênis que se ergue” [p. 22]; ao existencialismo: “O negro é um vazio que precisamos preencher.” [p. 25]. Num dos momentos mais divertidos do livro, a discussão entre marxistas e existencialistas converte-se num debate sobre a diarreia entre um francês e um alemão no continente africano: “através da diarréia, o homem transforma a si mesmo”; “Não é a consciência dos homens que determina sua diarréia, mas, pelo contrário, sua diarréia que lhes determina a consciência” [p. 32-3].
Ademais, Camus é convocado na própria noção de peste; Machado de Assis é reinterpretado como no exame da homossexualidade de Dom Casmurro no romance homônimo [p. 165-6], Valéry, presente também no conto Entre dois mundos, recebe algumas alusões; “o mar é um imenso cemitério de navios, um olho portentoso que olha, nada vê e não chora.” [p. 92]...
Por que todas esses autores? Nada de pedantismo: Francisco Maciel os alia a referências da realidade brasileira como forma de problematizar o multiculturalismo. Ademais, o mecanismo de citação é constitutivo deste romance, composto, na sua maior parte, de transcrições da obra de um autor-personagem.
O multiculturalismo no Brasil é posto em questão pela clara presença do racismo (“Racista?! Eu?! Não se trata de racismo, mas de qualidade de mão-de-obra.” [p. 154] ) e da tortura, institucionalizada como instrumento de controle social. A respeito da tortura, deve-se lembrar da ironia de um personagem chamado Burnier gritar “Tirem essas mãos de tortura de cima de mim!” [p. 130]; como se sabe, o brigadeiro Burnier planejou em 1968, ou seja, durante a ditadura militar brasileira, um atentado terrorista no Rio de Janeiro que causaria milhares de mortes, como pretexto para o assassinato de vários oposicionistas, o que não ocorreu porque o capitão Sérgio de Carvalho denunciou o plano de genocídio (destinava-se ao extermínio da oposição, de políticos a religiosos) 14.
O romance O primeiro dia do ano da peste corresponde à edição das obras do personagem Aloísio Cesário pelo personagem antropólogo louro chamado William, que não tinha interesse em literatura, e sim em cultura negra [p. 14]:

Pensava em defender minha tese sobre a presença do negro na literatura brasileira, mais propriamente na poesia brasileira. A literatura me interessava, não como fenômeno especificamente literário, mas sim como uma determinada faceta do fenômeno cultural. Era uma compreensão da cultura negra que me interessava.


Assim diz William, o pesquisador branco, alto, louro e de olhos azuis. Ou seja, algo próximo dos estudos culturais, uma postura colonialista: nega-se de antemão o valor artístico dos discursos pesquisados para avaliá-los tão-somente como manifestação de ordem antropológica.
William manifesta desde o início sua dificuldade em apreender a identidade de Cesário, que tem origem e atividades obscuras; interessa-lhe, sobretudo, a marca do negro. Até mesmo a namorada de William, negra, é considerada como objeto de pesquisa [p. 14].
Os próprios escritos de Aloísio Cesário apontam a fraqueza desse tipo de abordagem: “O negro está encurralado na autenticidade” [p. 22]. A obra de Cesário, apresentada no romance, e cuja desintegração é a história deste livro, ultrapassa o status de simples manifestação cultural da identidade negra, ou de denúncia contra o racismo, adotando uma orientação antiessencialista e de questionamento das identidades culturais. Pergunta-se ao personagem negro o nome e ele responde “Ninguém” [p. 69]. Em conto do personagem Cesário, homônimo do livro de Maciel, novamente há um personagem negro entre brancos, que desejam aprisioná-lo nesta categoria do outro, “o negro”: “Você é branca e quer me dar de presente uma consciência negra.” [p. 79].
Há, pois, em O Primeiro Dia do Ano da Peste, um irônico jogo especular entre o editor branco, o autor negro, que se opõem pela raça, pela sanidade mental e pelas diferentes concepções da literatura. Também aqui, estamos “entre dois mundos”.
Qual o significado da peste no romance de Maciel? Ela aparece no conto homônimo de Cesário, transcrito no romance, quando, na “Era Negra”, determinada raça, a dos iabluts, é combatida e acaba por refugiar-se num mundo paralelo (uma alegoria do apartheid da África do Sul e da política equal, but separate – o apartheid estadunidense); porém, com a separação, os iabluts “se tornaram venenosos e levarão a peste ao mundo humano” [p. 89] - conseqüências sociais do gueto.
Parece-me claro que a segregação e o preconceito são alguns dos significados da peste neste romance, e que o corolário da segregação, da “outridão”, é a loucura, tal como ocorre com o personagem principal do romance: “Igual e desigual, irmão e inimigo, empesteado e quilombita, ele agora vagueia na outridão absoluta” [p. 180].
Armadilha essa reproduzida por teóricos que negam a especificidade da literatura e, numa atitude grotescamente essencialista, querem simplificar a complexidade do humanos a um determinado número de identidades. Por conseguinte, Francisco Maciel realiza uma estrutura semelhante à que Cortázar empregou em “O perseguidor”, grande conto em que o biógrafo de um jazzista não compreende o músico biografado (o músico, na verdade, é o perseguidor; o biógrafo acha que já encontrou, por isso é incapaz de fazer arte) e fica mesmo feliz com a morte deste, pois ela lhe dá o final da biografia (é verdade, porém, que o romance de Maciel vai muito além do conto de Cortázar no tratamento da questão racial). No livro de Maciel, o louro editor William, além de não compreender Cesário, por tentar aprisioná-lo dentro da armadilha da identidade negra, chega mesmo a roubar-lhe pertences, durante a loucura de Cesário, na esperança de encontrar novos escritos!
A riqueza literária do romance de Francisco Maciel, estruturado em contos (dos quais pelo menos o que dá título ao livro é um dos maiores publicados no Brasil há muito) está justamente em recusar-se a um enquadramento panfletário e a um fetiche da origem. Essa recusa marca-se inapelavelmente pelo trágico, como se percebe na história de Cesário “A Volta ao Outro”: após inútil viagem a África, o personagem Quirino També, negro, não descobre nesse continente suas raízes; ele conhece no Brasil (país multirracial...) duas “vítimas da África”, africanos que, educados na Europa, não puderam mais adaptar-se às suas culturas originais [p. 39]:

No meio da tradicional família africana, vendo a disputa das mulheres entre si e os velhos ódios adormecidos, descobriu que não teria mais condições de ser uma africana. Também não seria européia, já que a Europa era apenas a rama da árvore e a raiz já estava morta. Nem Europa nem África: tinha perdido o jogo.

Escreve William, encerrando o conto [p. 39]:


(...) ser negro é uma missão impossível. Mais ainda: ser humano é uma impossibilidade. O homem é queda e perda. E não há retorno ao país natal.



11 – As citações foram retiradas da edição Complete Works of William Shakespeare da HarperCollins Publishers, publicada em 1994.
12 – Um lírico exemplo é a poesia de Guarini, transformada em madrigal por Monteverdi no sétimo Livro de Madrigais, “Con che soavitá”: “Con che soavità, labbra odorate, / E vi baccio, e v’ascolto;/ Ma se godo um piacer, l’altro m’è tolto./ Como i vostri diletti/ S’ancidono fra lor, se dolcemente/ Vive per ambedue l’anima mia?” (LAMENTI. Anne Sofie von Otter, Musica Antiqua Köln, Reinhard Goebel (dir.), Deutsche Grammophon, 1998, 1 CD (59’41’’), digital).
13 - In: CAMPBELL, James, À Margem Esquerda, Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 43-45.
14 - Como consequência, Sérgio de Carvalho foi arbitrariamente expulso das Forças Armadas pelo Ato Institucional n.º 5. Décadas depois, o Supremo Tribunal Federal considerou ilegal o afastamento, mas o presidente brasileiro de então, Itamar Franco, esperou Sérgio de Carvalho morrer para cumprir a sentença - o que pode dizer muito não só das convicções democráticas desse vice-presidente de Fernando Collor, levado à presidência pelo impedimento sofrido pelo titular do cargo, mas também da influência dos militares ainda no primeiro mandato presidencial sufragado pelo voto popular após a ditadura (a primeira eleição direta presidencial foi em 1989).

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Crônicas de Maria Rita Kehl: a ditadura e o recalcado

Penso que, quando Maria Rita Kehl age, o país torna-se um pouco mais digno. E o jornalismo é uma forma de ação que ela cultiva desde a época da ditadura militar, quando a psicanalista e escritora atuou na vigiada e censurada imprensa de esquerda.
Bem mais recentes são os escritos que reuniu no seu último livro, 18 crônicas e mais algumas, publicado neste ano pela Boitempo. Na foto, ela o autografa.
Parte das crônicas que reuniu foram publicadas no Estado de S.Paulo, jornal que ruidosamente cancelou o contrato com a colunista devido a interesses eleitoreiros. Demonstrei como o jornal, quando ressuscitou a figura do delito de opinião, traiu a própria história.
Não entendo bem o título; para Christian Ingo Lenz Dunker, autor da orelha, temos aqui uma alusão ao 18 de Brumário de Marx. É possível; creio que o professor do Instituto de Psicologia da USP acerta em cheio ao ver nesta questão o cerne do livro de Kehl: "Imaginar uma separação clara e distinta entre sofrimento social e sintoma psíquico é uma das fronteiras ideológicas mais tensas e controladas de nossa época."
Tendo a autora sido testemunha da época, a ditadura militar é referida em algumas dessas crônicas. Por isso, escolhi fazer uma breve nota a respeito do livro para a Quarta Blogagem Coletiva do #desarquivandoBR, organizada pela jornalista Niara de Oliveira. O professor e jurista Murilo Duarte Costa Corrêa também está a participar.

Ao contrário de tantos escritores, ela não se vangloria do passado: "Minha modesta militância contra a ditadura não foi considerada perigosa." (p. 23). E tenta ser absolutamente lúcida: "O Brasil dói." (p. 16). Ela escreve a partir dessa dor. Em "Tortura, por que não", Kehl desvela uma pergunta que está latente na cultura autoritária brasileira; como ela escreve, "A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado; quem não deve não teme; quem tomou mereceu etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no país." (p. 37-38)
Ela se refere às famílias Teles e Merlino, que tentam responsabilizar judicialmente o coronel Ustra pelas torturas e assassinatos cometidos durante a ditadura militar, bem como ao escandaloso julgamento no Supremo Tribunal Federal que considerou válida a Lei de Anistia.
Mas a crônica inicia-se com a tortura e o assassinato de um motoboy, Eduardo Pinheiro dos Santos, por nada menos do que doze (honestos e corajosos, veja-se) policiais militares: "O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir." (p. 37). Eis o retorno do recalcado.
Em "Educação sentimental", em que trata dos festivais de música da década de 1960, ela ironicamente lembra que Chico Buarque e Tom Jobim não precisariam de um festival "para compor a mais bela música de exílio que o país já mereceu." (p. 60) - a "Sabiá".
Em "O impensável", temos uma espécie de atualidade do DOI-Codi ("Onde o filho chora e a mãe não escuta" - frase inexata para os casos em que pais e filhos foram torturados juntos, como aconteceu com a família Teles) nos assassinatos cometidos pelo Exército no Morro da Providência, em 2008, no Rio de Janeiro.
O que seria o impensável? A princípio, julguei que era o horror da tortura e da execução. Mas talvez Kehl esteja a dizer que impensável também seja aquilo que ela solicita, que a "Zona Sul" das cidades brasileiras (lembremos, porém, que a Zona Sul do Rio de Janeiro tem muitas favelas) mostre-se contrária às execuções extrajudiciais de negros e pobres.
Ou talvez esta interpretação seja apenas o que penso, fruto de minha experiência. Um exemplo: semana passada ouvi um jovem professor de direito constitucional (fiquei a imaginar como ele explica a eficácia dos direitos fundamentais...) lamentando que não haja castração química para pobres; um outro professor, de ciência política, reagiu prontamente: "Nesse caso, eu não teria nascido." Eu tampouco, acrescentei. E o pior que posições autoritárias como essa não são incomuns no ensino jurídico - há quem sustente publicamente, sem ruborizar, que os torturadores são velhinhos de pijama que não podem ser punidos porque houve mais de uma teoria da justiça na história da humanidade - e então não saberíamos o que é justo...
Quem o saberia - o pau-de-arara? É dessa miséria teórica, galhardamente reproduzida em faculdades de direito, que se nutrem os juristas que irão servir ao poder.
Se essa cultura está presente (e Kehl bem o demonstra nesse livro), por que a ditadura não volta? Creio que o retorno formal da ditadura não se dá porque ela não é necessária. Uma democracia em que possam ocorrer Belo Monte e os esquadrões de morte não precisa de um ditador que roube os direitos da cidadania. O risco de volta à ditadura somente será real se a democracia tornar-se efetiva...

P.S.: Vejo agora que o historiador Fabiano Camilo e também o blogue Ousar lutar! Ousar vencer! participam desta campanha.

Desarquivando o Brasil XXIII: Wilson Silva, Ana Rosa Kucinski e o negacionismo

Este blogue participa da Quarta Blogagem Coletiva do #desarquivandoBR, organizada pela jornalista Niara de Oliveira. Vi que o jurista e professor Murilo Duarte Costa Corrêa também aderiu.
Já escrevi sobre o problema do negacionismo no tocante à ditadura militar (que começa em não a considerar uma "ditadura", e sim um simples "regime", ou, quem sabe, para os que seguem Miguel Reale, uma "democracia social"...). Esse negacionismo perpassa os três Poderes e a sociedade civil. Preciso escrever muito mais ainda, em nome do direito à memória e à verdade.
Nesta nota, vou-me limitar a lembrar da morte do casal Wilson Silva e Ana Rosa Kucinski Silva (irmã de Bernardo Kucinski), ambos militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), desaparecidos em 22 de abril de 1974, quando iriam almoçar juntos perto da Praça da República em São Paulo.

Aconselho a ler sobre o caso no livro Direito à verdade e à memória, disponível gratuitamente na internet e organizado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A morte do casal é contada a partir da página 380. Provavelmente, foram mortos em Petrópolis e esquartejados, segundo contou o ex-sargento Marival Dias Chaves de Castro à revista Veja de 18 de novembro de 1992.
No documento ao lado, temos uma Informação do Ministério do Exército que descobri no Arquivo Público do Estado de São Paulo, pode-se ler como o governo procurava negar esses assassinatos. Tendo constatado que o Voz Operária, do PCB, havia denunciado o caso, entre outros, o Ministério do Exército difundiu na comunidade de informações que denúncias que tais bem podiam ser uma estratégia da subversão. Segundo a fantasia oficial, os desaparecidos estariam simplesmente escondendo-se em outras paragens:

Este fato vem mostrar que há subversivos cujos desaparecimentos são imputados aos Órgãos de Segurança, os quais permanecem vivos, na clandestinidade. Pode-se supor que seja um despistamento para motivar o registro do desaparecimento e assim diminuir ou cessar a busca dos citados.
Sugere-se ao CIE, que difunda aos demais Órgãos de Informações que as constantes acusações de desaparecimento de pessoas, pode bem ser encarado como manobra do inimigo, visando não só a diminuição das buscas como também a acusação aos Órgãos de Segurança como responsáveis pelos "desaparecimentos" de pessoas procuradas.

Os erros de concordância e de pontuação estão no original. CIE era o Centro de Informações do Exército, que compunha o sistema de informaçoes.
O deboche é impressionante. A Informação é um exemplo de como é necessário ler criticamente todos os documentos históricos - eles tentam docuemntar uma versão, neste caso, a versão que interessava à propaganda de que não havia tortura nem execuções extrajudiciais no Brasil.
Lembro que o governo brasileiro negou à OEA, durante o governo de Geisel, que tivesse alguma responsabilidade no desaparecimento do casal. Os ingênuos não pensem que é somente desde Dilma Rousseff e Belo Monte que o governo brasileiro viola e mente para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O atual governo federal apenas dá continuidade a essa tradição...
Para terminar, sugiro que leiam a homenagem a Ana Rosa Kucinski na página da Associação Atlética Acadêmica que leva seu nome, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, onde ela estudou.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Cumpra-se: ato pelo cumprimento da sentença no caso Araguaia


Recebi e divulgo o cartaz da campanha Cumpra-se. Aconselho a visita ao sítio eletrônico deste movimento "Pelo cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil". Trata-se de uma iniciativa da sociedade civil que conta, entre outras adesões, com a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos e o CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional).
Não é inútil recordar a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que o Judiciário brasileiro, com sua tradicional incompatibilidade com a realidade social, já chegou a negar que tivesse sido prolatada.
O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em razão dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia; a sentença, de 24 de novembro de 2010, previu, entre outros elementos, o fim da impunidade dos responsáveis pelos desaparecimentos forçados (cito sem as notas de rodapé):

256. No Capítulo VIII da presente Sentença, a Corte declarou a violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial, em virtude da falta de investigação, julgamento e eventual sanção dos responsáveis pelos fatos do presente caso. Tomando em consideração o anteriormente exposto, bem como sua jurisprudência, este Tribunal dispõe que o Estado deve conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha. Essa obrigação deve ser cumprida em um prazo razoável, considerando os critérios determinados para investigações nesse tipo de caso, inter alia:
a) iniciar as investigações pertinentes com relação aos fatos do presente caso, levando em conta o padrão de violações de direitos humanos existente na época, a fim de que o processo e as investigações pertinentes sejam conduzidos de acordo com a complexidade desses fatos e com o contexto em que ocorreram, evitando omissões no recolhimento da prova e no seguimento de linhas lógicas de investigação;
b) determinar os autores materiais e intelectuais do desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se dessa obrigação, nos termos dos parágrafos 171 a 179 desta Sentencia, e
c) garantir que: i) as autoridades competentes realizem, ex officio, as investigações correspondentes, e que, para esse efeito, tenham a seu alcance e utilizem todos os recursos logísticos e científicos necessários para recolher e processar as provas e, em particular, estejam facultadas para o acesso à documentação e informação pertinentes, para investigar os fatos denunciados e conduzir, com presteza, as ações e investigações essenciais para esclarecer o que ocorreu à pessoa morta e aos desaparecidos do presente caso; ii) as pessoas que participem da investigação, entre elas, os familiares das vítimas, as testemunhas e os operadores de justiça, disponham das devidas garantias de segurança, e iii) as autoridades se abstenham de realizar atos que impliquem obstrução do andamento do processo investigativo.
257. Especificamente, o Estado deve garantir que as causas penais que tenham origem nos fatos do presente caso, contra supostos responsáveis que sejam ou tenham sido funcionários militares, sejam examinadas na jurisdição ordinária, e não no foro militar. Finalmente, a Corte considera que, com base em sua jurisprudência, o Estado deve assegurar o pleno acesso e capacidade de ação dos familiares das vítimas em todas as etapas da investigação e do julgamento dos responsáveis, de acordo com a lei interna e as normas da Convenção Americana. Além disso, os resultados dos respectivos processos deverão ser publicamente divulgados, para que a sociedade brasileira conheça os fatos objeto do presente caso, bem como aqueles que por eles são responsáveis.

A previsão da criação da Comissão da Verdade pela lei federal n. 12528 (bem como da lei de acesso a informações) deu-se, em parte, para o cumprimento dessa sentença, que coerentemente combina as exigências do direito à memória e à verdade com o fim da impunidade (como se sabe, o Supremo Tribunal Federal e alguns professores de direito querem que o direito à memória seja algo apenas lírico e não leve a sanção alguma). O inconsistente e seletivo compromisso do governo de Dilma Rousseff com os direitos humanos já se manifesta na tentativa de estrangulamento financeiro da OEA pelo governo brasileiro, o qual continua em violação aberta a seus compromissos internacionais.
Já escrevi que "Lula, que, com seu gênio político peculiar, usou as divisões do próprio governo para administrar a manutenção da impunidade" no tocante aos crimes da ditadura militar. Rousseff parece ser diferente por não ter o excepcional gênio político de seu antecessor e padrinho político. A negação do direito internacional, até agora, parece mais óbvia e declarada.
Abaixo, transcrevo o panfleto da campanha Cumpra-se.

CUMPRA-SE
Cumpra-se o quê? Cumpra-se a lei.
Todo cidadão brasileiro é obrigado a cumprir a lei.
E o Estado brasileiro, é obrigado a cumprir a lei ou pode ficar fora da lei?
Pois é esse escândalo que está acontecendo agora. Em 1982 – faz portanto 29 anos – 22 duas famílias de presos políticos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia entraram com uma ação na área civil simplesmente para saber o paradeiro de seus filhos e, caso estivessem mortos, onde estavam seus restos mortais e explicações do Estado brasileiro sobre como morreram.
Em 2003 a Justiça brasileira expediu uma sentença final na qual condenava o Estado a abrir os arquivos das Forças Armadas para informar, em 120 dias, o local do sepultamento desses militantes. Porém o governo do Presidente Lula recorreu contra a Justiça, visando não cumprir a lei, apresentando todos os recursos possíveis. Em 2007 esgotaram-se os recursos legais, houve a condenação e desde então o Estado brasileiro está fora da lei.
Por causa da demora que hoje já chega a 29 anos, os familiares dos militantes desaparecidos recorreram, desde 1995, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que avaliando que o processo não andava no Brasil, encaminhou o caso para a Corte Interamericana. A Corte condenou o Brasil , em 24 de novembro do ano passado, a cumprir a sentença brasileira de 2003 e a abrir os arquivos militares de modo a que seja possível localizar os restos mortais desses desaparecidos.
Além disso, a sentença da Corte do ano passado diz claramente que a Lei de Anistia de 1979, quando impede que os torturadores e assassinos da ditadura sejam julgados, está em contradição com a jurisdição internacional de direitos humanos.
E o Estado brasileiro continua a não cumprir a lei. Nem a sentença de 2007, transitada em julgado, isto é, sentença final da Justiça brasileira, nem a sentença do ano passado da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Alegam que esta sentença é uma intromissão na soberania do Estado brasileiro. Mas esquecem que foi o próprio Estado brasileiro que assinou a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1992, que foi sancionada pelo Congresso Nacional em 1998, reconhecendo “como obrigatória a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
Se o Estado brasileiro não cumpre a lei, que autoridade moral tem para pedir aos brasileiros que a cumpram?
Campanha CUMPRA-SE
14 de dezembro de 2011

P.S.: Niara de Oliveira está coordenando, para o próximo dia 14 de dezembro, uma blogagem coletiva pela revisão da lei de anistia.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Justiça e fuzis

Acabei de dar uma aula (mal recebida) sobre "direito e justiça". Um dos textos com que trabalhei foi um parecer de 1975 do Ministério Público Militar, assinado pelo Procurador Ruy de Lima Pessôa, que foi difundido nos Estados pela rede dos DOPS.
Trata-se de um caso de fato exemplar de aplicação da doutrina de segurança nacional. A incomunicabilidade dos presos políticos, mesmo em relação às autoridades judiciais, é defendida pelo prcurador porque "[...] as instituições militares estão acima dos interesses individuais" e "[...] porque a salvaguarda dos interesses e objetivos nacionais tambem [sic] e mais do que nunca, estão acima dos interesses individuais."
Sob o arrazoado, estava o interesse de manter o prisioneiro sem acesso a advogado (apesar do Estatuto da OAB vigente na época), ao Judiciário e a nenhum outro canal que lhe permitisse ao menos avisar que havia sido detido, e queixar-se do tratamento sofrido no cárcere.
Há outros argumentos no parecer que reforçam o contexto da ditadura militar, e sua curiosa noção de justiça segundo a qual se deve restringir o acesso ao Judiciário (o que se coaduna com a falta de autonomia desse Poder na época), mas não tratarei deles aqui.
É típica da doutrina de segurança nacional a identificação dos "interesses e objetivos nacionais" com as corporações militares - elas encarnariam a nação, não se sabe com que título, salvo o dos fuzis. Ou algum vitalismo de louvor à guerra?
Para o autoproclamado reacionário Nelson Rodrigues, tínhamos uma pátria de chuteiras. Nelson Rodrigues Filho logo comprovaria que estávamos na pátria do pau de arara - o que faria o grande dramaturgo defender a anistia.
O argumento da identificação das Forças Armadas com a nação não era nada novo, por certo, e animava o pensamento dos juristas engajados no regime, como Miguel Reale.
Há algo de hobbesiano nesse sacrifício das garantias individuais em nome da segurança e nesse monopólio da razão pública nas mãos do Estado, bem como a noção de que a simples divergência política torna o cidadão (ou súdito, segundo Hobbes) inimigo.
Resta saber que tipo de "nação" (na verdade, Estado) é esta cujo interesse mor é a defesa, que está, ademais, largamente dirigida contra a própria população. Perguntemos aos povos do Xingu, por exemplo, mais representativos do que as corporações militares para explicar a questão.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Desbloqueando a cidade V: Eleição adiada para o CMH de São Paulo


Em outra nota, expliquei como a Prefeitura de Kassab resolveu cercear a participação popular no Conselho Municipal de Habitação com um cadastramento express dos eleitores do Município. Quem não correu, ou não percebeu a manipulação da prefeitura, ou não conseguiu ter acesso à internet nos três dias do cadastramento, simplesmente não poderia votar.
O PT, por solicitação da Central de Movimentos Populares, fez uma comunicação ao Ministério Público, que conseguiu liminar contra a eleição por chapa - a chapa que ganhasse levaria todas as dezesseis vagas da representação popular: http://cmp-sp.blogspot.com/2011/12/democracia-venceu-arrogancia-eleicao-do.html. Não ocorrerá a eleição agora, e a ela deverá ser dada ampla publicidade.
A Prefeitura, tentando manter a manipulação do processo eleitoral, recorreu ao Tribunal de Justiça. No entanto, o relator do processo, Rubens Rihl, manteve a decisão da 2a. Vara de Fazenda Pública, que foi dada neste sentido:

Trata-se de agravo de instrumento tirado em face da r.
decisão reproduzida às fls. 62, nos autos da ação civil pública
proposta pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO
PAULO contra o MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, que deferiu
parcialmente a liminar, a fim de que sejam eleitos os
representantes individualmente e não por meio de chapas.
Além disso afirmou que deverá ser amplamente divulgado,
pela imprensa oficial, jornal de grande circulação na Cidade e
na página principal do site do Município.


Tal havia sido a decisão de primeiro grau. A Prefeitura recorreu, alegando que a decisão impediria a eleição do dia quatro (e até inviabilizaria o processo, pois o eleitor teria que votar em 16 candidatos, o que seria impossível para o eleitor...), e pediu o efeito suspensivo do recurso,. Isto é, a Prefeitura solicitou que a decisão tomada em primeiro lugar tivesse seus efeitos suspensos, o que permitiria a realização da eleição no dia quatro. O relator não concedeu o efeito que a Prefeitura solicitou (trata-se do Processo nº 0293662-54.2011.8.26.0000):

Assim, diante da indefinição legal quanto à sistemática de
votação, e considerando que o objetivo precípuo do Conselho
Municipal de Habitação, dentre outros, é estimular a
participação e o controle popular sobre a
implementação das políticas públicas habitacionais e
desenvolvimento urbano e possibilitar ampla informação
à população e às instituições públicas e privadas sobre
temas e questões atinentes à política habitacional (Lei
13.425/02, art. 3º, incisos VII e VIII), há indícios de que as
ações tomadas no sentido de disciplinar o processo eleitoral
em comento, e não apenas a questão da votação por chapas,
maculam o espírito democrático da Legislação Municipal, da
Constituição Federal e também do Código Eleitoral Brasileiro.
Sendo assim, ausentes os requisitos legais para sua
concessão, notadamente o perigo da demora, uma vez que
esse sistema de votação não é a única alternativa existente
para a definição do processo eleitoral, indefiro o pedido de
concessão de efeito suspensivo.


No sábado à noite poderia a Prefeitura alterar essa decisão? Pelo sim, pelo não, aconselho verificar o movimento nas Subprefeituras amanhã. A lista dos eleitores cadastrados com o local foi publicada no Diário Oficial, basta procurar pelo nome do eleitor na ferramente de busca: http://www.docidadesp.imprensaoficial.com.br/
Aqui está a lista das Subprefeituras: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/subprefeituras/index.php?p=8978.
O Conselho foi previsto pelo artigo 168 da Lei Orgânica do Município de São Paulo. Poderia ter tido uma existência meramente virtual, se não tivesse sido regulamentado, o que aconteceu no governo de Marta Suplicy, por meio da lei 13425 de 2002. Esta lei municipal, que partiu de um projeto do então vereador e atual deputado estadual Adriano Diogo, do PT, confere-lhe diversas competências relevantes:

Art. 2º - O Conselho Municipal de Habitação tem caráter deliberativo, fiscalizador e consultivo e como objetivos básicos o estabelecimento, acompanhamento, controle e avaliação da política municipal de habitação.
Art. 3º - Compete ao Conselho Municipal de Habitação:
I - participar da elaboração e fiscalizar a implementação dos planos e programas da política habitacional de interesse social, deliberando sobre suas diretrizes, estratégias e prioridades;
II - acompanhar e avaliar a gestão econômica, social e financeira dos recursos e o desempenho dos programas e projetos aprovados;
III - participar da elaboração de plano de aplicação dos recursos oriundos dos Governos Federal, Estadual, Municipal ou repassados por meio de convênios internacionais e consignados na SEHAB;
IV - fiscalizar a movimentação dos recursos financeiros consignados para os programas habitacionais;
V - constituir grupos técnicos, comissões especiais, temporárias ou permanentes, quando julgar necessário para o desempenho de suas funções;
VI - constituir comissão especial para organização de Conselhos Regionais de Habitação;
VII - estimular a participação e o controle popular sobre a implementação das políticas públicas habitacionais e de desenvolvimento urbano;
VIII - possibilitar ampla informação à população e às instituições públicas e privadas sobre temas e questões atinentes à política habitacional;
IX - convocar a Conferência Municipal de Habitação;
X - estabelecer relações com os órgãos, conselhos e fóruns municipais afectos à elaboração do Orçamento Municipal e à definição da política urbana;
XI - elaborar, aprovar e emendar o seu Regimento Interno;
XII - articular-se com as demais instâncias de participação popular do Município;
XIII - definir os critérios de atendimento de acordo com base nas diferentes realidades e problemas que envolvam a questão habitacional no Município.

Sua competência não é somente consultiva, como costuma acontecer com os órgãos da administração pública em que há participação popular, mas também deliberativa. Por isso, interessa a Prefeitura um Conselho dócil e útil para os interesses dos governantes - e dos setores imobiliários. Lembremos que José Serra, em 2005, escolheu um corretor de imóveis para secretário de habitação, Orlando de Almeida Filho, que foi herdado por Kassab quando Serra abandonou a Prefeitura para concorrer ao governo do Estado. Hoje, ele é secretário especial de controle urbano (sim, a necessidade de abrigar aliados e pessedistas levou à explosão de secretarias no governo de Kassab, inclusive "especiais").
O nome da secretaria vem bem a calhar; embora a cidade esteja obviamente desgovernada, com carências e buracos por toda parte, a tentativa de controle é evidente: apropriar-se dos recursos comuns para manter administrado o caos administrável.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Desbloqueando a cidade IV: eleição do Conselho Municipal de Habitação de São Paulo


Escrevi no mês passado sobre a manobra que a Prefeitura de São Paulo resolveu fazer decolar no Conselho Municipal de Habitação (CMH): restringir o direito de voto, exigindo pré-cadastramento em um período curtíssimo de três dias. O raciocínio parece ser este: quando menos eleitores, menos popular será o futuro Conselho, que trabalhará no estratégico ano que vem. Em 2012, teremos um ano que será eleitoral para os Municípios e eleitoreiro para os prefeitos.

[Nota: a eleição foi suspensa: http://opalcoeomundo.blogspot.com/2011/12/desbloqueando-cidade-v-eleicao-adiada.html]

Não sei se a manobra da prefeitura de Kassab decolou, eis que houve um esforço de cadastramento. A eleição será no dia quatro de dezembro, próximo domingo. Para quem tem dúvida em que chapa votar, recebi a seguinte mensagem do militante da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMMSP), advogado e conselheiro do CMH, Benedito Barbosa:

Dia 4/12 - Vote Chapa Unidade Popular
CMH SP N° 88


Leve documento com foto - RG

Neste dia 04 de dezembro das 8 as 17 horas nas Subprefeituras ocorrerá eleição do Conselho Municipal de Habitação - CMH SP. Participe!!

Vote 88

em defesa do mutirão com autogestão
em defesa da moradia na area area central
contra os despejos e remoções
em defesa da moradia para pessoa idosa
em defesa da moradia para mulheres chefes de familia
em defesa da regularização fundiaria
em defesa da urbanização de favelas
em defessa da recuperação e regularização dos conjuntos
por acesso a terra urbanizada e financiamento para moradia digna

Contatos e informações 36672309 - UMMSP

Veja que se trata de bandeiras não exatamente (ou nem um pouco) defendidas pela atual gestão municipal, o que é mais um sinal da importância da representação popular nesses órgãos.
O Estatuto da Cidade (lei 10257 de 2001), que completou dez anos, tenta expressar o princípio democrático e diversas vezes refere-se à participação popular. Ela será tão mais efetiva quanto mais organizada. Como diretriz geral da política urbana, encontramos, no artigo segundo, esta previsão: "II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;"
Trata-se de uma exigência constitucional. A relativa decepção desta primeira década de experiência do Estatuto da Cidade decorre, em parte, da timidez ou, de acordo com o Município, da inexistência dessa participação. Não basta que ela esteja prevista em lei: é preciso que esse direito decorra da prática.
No entanto, ele abriu um canal, que se deve explorar, e que antes estava, em geral, fechado. Lembro do antigo GEAP, Grupo Executivo de Assentamentos Populares, do Município do Rio de Janeiro, criado em 1993. Ele havia sido previsto pelo Decreto n. 12205 de 13 de agosto de 1993; nele, dispunha-se que o futuro estatuto regulamentaria a participação popular no órgão. Isso ocorreu no primeiro governo de Cesar Maia, que criou, no ano seguinte, a Secretaria Municipal de Habitação.
Alguns programas habitacionais foram planejados pelo GEAP, dos quais o mais famoso ficou sendo o Favela-Bairro, que foi financiado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A Prefeitura cumpriu todas as exigências legais do BID.
O mesmo não ocorreu no tocante às exigências para com a população: o Prefeito (e seu sucessor, Luiz Paulo Conde) jamais editou aquele estatuto, pelo que a participação popular na formulação das políticas de habitação ficou impedida pela falta de regulamentação - velho truque dos legisladores que gostam de prever o direito de forma que ele não possa ser exercido.
No próximo dia 4, há um direito a exercer no Município de São Paulo. Essa é uma das práticas de que depende a cidade.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Alberto Pimenta, tortura, estupro e assassinato: a Indulgência plenária


Esta resenha foi publicada no número 16 deK Jornal de Crítica, em 2007, e não estava mais disponível. O livro é fantástico.



“Extravagante e viajado estrangeiro daqui e de todo lugar”: Indulgência Plenária de Alberto Pimenta


Pádua Fernandes

Na cidade do Porto, em fevereiro de 2006, após três dias de tortura e violência sexual, um grupo de treze adolescentes (muitos deles sob a guarda de uma instituição católica, Oficinas de São José) ponderou se o fogo não seria a melhor maneira de se livrar do corpo. Contudo, decidiu por outro elemento: a vítima foi lançada em um poço de mais de 10 metros de profundidade, onde morreu afogada. O Poder Judiciário considerou o caso como uma simples brincadeira, não como homicídio. Segundo a tese aceita pelo Ministério Público português, a morte só ocorreu por culpa do poço, eis que ela ainda vivia ao ser lá atirada.
A vítima, Gisberta Salce Júnior, era brasileira, transexual, imigrante em situação ilegal, soropositiva para HIV e sem-teto. Ou seja, segundo a tradição fascista portuguesa, uma não-pessoa. Sobre o bárbaro caso, Alberto Pimenta escreveu um importante poema longo: Indulgência Plenária (Lisboa: &etc, 2007).1 A capa da obra sugere um rasgão sob o quadro (parte de um tríptico de Emil Nolde), que mostra uma mulher de seios nus diante de três homens aparentemente embriagados.
Após todo um livro sobre um crime internacional (Marthiya de Abdel Hamid segundo Alberto Pimenta, resenhado em K 3), Pimenta voltou seus olhos para esse delito português (revelador do tratamento que a União Européia dedica aos “extracomunitários”) e escreveu uma elegia em cinco partes.2 Como o anterior, temos aqui um texto de intervenção. Bem escreveu Manuel de Freitas em resenha, "Não fosse um livro como este, com o seu raro poder de corrosão e de denúncia, e Gisberta Salce esperaria a sua segunda e definitiva morte – o esquecimento – tão indefesa como esteve perante o horror da primeira."3
Na primeira parte do poema, lemos o encontro do poeta com Gisberta em um mictório, mediado por um animal psicompopo (intermediário entre os vivos e os mortos), a mosca. A cirurgia de mudança de sexo é referida. A invocação anímica se dá em um ambiente não edificante – não se trata da emulação do modelo da elegia clássica, ao contrário de Antinous de Fernando Pessoa.
A segunda parte aborda a prostituição e apresenta o nome de Gisberta. A terceira faz-nos conhecer o sobrenome – que levará ao belo final – e menciona os assassinos, sem realmente os caracterizar: o autor não tenta descrever o crime e o julgamento. O poema não é dramático, e sim reflexivo, com meditações sobre o corpo e a finitude. Nisso, ele tem muito em comum com Imitação de Ovídio, o penúltimo livro de Pimenta (também resenhado em K , no número 3).
A quarta parte alude à doença e à situação ilegal em Portugal. Na quinta e última, temos a retomada dos motivos anteriores – a mosca, a doença, a ilegalidade, o assassinato, num movimento cada vez mais intertextual: a voz de Pimenta busca dar lugar à de Gisberta – mas não a pode mais encontrar: “tira-me daqui não sei se foste tu que disseste/ não mexeste os lábios// nem sei se poderias continuar/ as tuas trocas/ os teus desejos/ entre os habitantes dos mundos invisíveis” (p. 54). Pimenta vai-se substituindo por outras vozes, o que inclui excertos de ópera (na página 49, o Judiciário é comparado aos cortesãos, segundo a furiosa ária de Rigoletto na ópera homônima de Verdi) e culmina no trecho final, que é a reprodução de um trecho do Otelo de Shakespeare: a Canção do Salgueiro (Salce, em italiano), que antecede o assassinato de Desdêmona.
A quarta parte já terminava com o seu apelo desesperado para que Otelo somente a matasse no dia seguinte. Avançando no livro, e recuando na peça, optou-se não pelo grito, mas pela canção que a personagem entoa para silenciar o pressentimento da morte: “If I court moe women, you’ll couch with moe men.” E assim é, no silêncio de Pimenta, reencenada a morte de Gisberta.
Indulgência plenária realiza uma espécie de monumentalização da figura de Gisberta Salce, que se torna um “monumento aos tempos presentes” (p. 17), caído, portanto, e comparado a uma estátua de “braço decepado” em Toulouse, “de que nenhum funcionário sabe ou pode/ dizer nada” (p. 18). Gisberta se torna uma sacerdotisa da lua (a ária Casta diva, da ópera Norma, de Bellini, é citada na página 53), de quem se diz: “rodava o universo/ preso entre a Alavanca das tuas pernas” (p. 13).
Como de se esperar num livro de Pimenta, o poema é contrário ao Cristianismo (“Mas por que não tinhas tu um cão da raça trifauce/ que trespassasse as outras trindades”, p. 15), à hipocrisia (sobre Porto lemos: “uma Terra de melómanos/ com casas de putas e de música/ não perdoa”, p. 42) e ao fascismo (“mas não conhecias as muralhas/ que te encarceravam/ nem os graffiti suásticos/ que as cobriam”, p. 32).
No percurso do poema, do encontro de Pimenta com Gisberta até o silêncio de ambos, encontramos pedras-de-toque, como esta revisão de Platão: “Não tinhas uma direcção fixa/ porque isso são olhos dentro duma Cela/ Sempre a espreitar pelo buraco/ à procura da luz oficial que é autorizada a entrar” (p. 24). Dessa luz oficial foge um estrangeiro como Gisberta, estrangeira lá, mas também no Brasil – o que remete ao verso de Shakespeare citado no título. O preconceito racial, que seguiu Otelo (ele também é vítima na peça), no caso da brasileira encontra paralelo na discriminação em razão do gênero, a qual a tornou estrangeira em mais de um sentido e a levou à clandestinidade.
Essa morte, de caráter social, preparou o caminho da morte física: “Nesse inóspito lugar/ com essa entretanto nova Rica e desleal cidade/ não há relação possível” (p. 48).



Notas
1 - Note-se a ironia do título: indulgência plenária é o nome de um perdão a penas temporais, se os pecados já foram remitidos, concedido pela Igreja Católica.
2 - A aproximação entre os dois livros foi feita pelo próprio poeta, que, em 26 de maio de 2007, no Teatro Acadêmico Gil Vicente, leu ambos em um espetáculo a que deu o nome “Pequenos Estragos”. A leitura foi precedida de uma fala sobre “Poesia e violência”, por ele assim anunciada: “Alberto Pimenta é um daqueles poetas que levam muito a sério e agradecem a tolerância que Aristóteles lhes concede através da permissão de desvios da norma que ele normativamente fixa na Retórica e na Poética. Assim, considera-se um ‘tolerado’, no mesmíssimo sentido do termo administrativo com que eram designadas as prostitutas em Portugal até cerca de meados do século XX. Continuando o raciocínio, e da mesma maneira que não há mestres ou políticos iguais, separa os poetas em duas categorias: os tolerantes e os tolerados.
Na 1a Parte do serão, A.P. vai tratar o tema «Poesia e Violência», a partir da sua perspectiva de tolerado, portanto sem a mais mínima espécie de tolerância.” (http://dupond.ci.uc.pt/tagv/evento.asp?evtid=993)
3 - Casta morte. O Público, Lisboa, 16 de junho de 2007.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Algo como um poema: a construção de uma usina hidrelétrica





Do meu próximo livro de poesia, Cálcio, esta pequena prévia em homenagem às vitórias de hoje do governo federal e seus aliados.








Monumento e passagem



I

Na amnésia da cidade
o memorial das vítimas;

incontáveis tijolos foram empregados
para que não se erguesse o memorial – todos
sobre as vítimas.

( – Tive um sonho em que o cimento falava.
– Os subversivos infiltram-se em tudo.)


II

Ama as latas de tinta
porque elas não têm memória
e institui o memorial das vítimas
apagando das paredes
as inscrições dos prisioneiros;

as inscrições poderiam ter erguido uma outra cidade.


III

Substituir a história pelo monumento,
a primeira medida oficial
depois do massacre.

( – O cimento nutre, o sonho desgasta...
– Avisei que não há desabamento que termine.)


IV

Calcular o superfaturamento per capita na compra das botas fardadas com o novo design da memória do continente;
Anotar os números dos calçados e cruzar com o logaritmo dos paraísos fiscais;
O trabalho está incompleto: é preciso considerar a grandeza dos grãos de poeira sob as becas dos magistrados;
Contar nos dedos mutilados as garrafas de champanhe dos subversivos cooptados;
Dividir pelo número de penas dos cocares que sobraram de souvenir das viagens ao museu de história natural;
Elevar à potência dos jornais usados para engraxar as botas jamais limpas;
Teremos, enfim, o número da função das vítimas.
– Memória, coisa que suja.


V

– Elas queriam o choque;
logo, pintar com eletricidade
o retrato das vítimas.

– Não é possível reconhecê-las.

(– Onde está o memorial das vítimas?
– Onde quiser, basta consagrar uma nova.)

– Deixar que a eletricidade esboce o que bem
entender, de qualquer forma
pouco lembramos das vítimas,
seu número exato jamais foi determinado;

– É inútil reconhecê-las, se já são homenageadas.

(– Onde está o memorial das vítimas?
– Nunca houve nada disso. As ruas bastam.)

– Na ampla área em que supostamente foram enterradas,
as vítimas,
já foi autorizada a construção de uma usina hidrelétrica.

Luz em toda a região;
agora sim começamos a conhecer as vítimas.


VI

Pode anotar.
Você vai perder de qualquer jeito.

o alimento que traz,
entrega para a fome,
as bocas não o recebem


– Não sei o nome dos ossos, conheço-os pelo ponto em que fraturam. Falo com eles sem os roer, destruir a cela aumenta a pena.

Pode anotar.
Ninguém mais sabe ler.

o alimento que prepara,
o recheio é a fome


– O ponto de fratura é a seção áurea do corpo. Tenho que calá-lo, mas não como humano, e sim como um ser que pode falar.

Anote, anote.
posts, não há mais discursos.

nenhum alimento bastará,
é a fome quem vai comer


– O amor do soco pela carne responde-se variadamente. Alguns ossos preferem partir-se ao meio, em outros a extremidade é, com efeito, o ponto extremo. Falo não como prisioneiro, mas como alguém que sobreviverá.

Pode anotar.
Somente seria fidedigno se você escrevesse em branco.

Aqui era um restaurante popular. Mas temos que pensar no futuro. Quando inauguro creches já penso em cemitérios. Tínhamos o prédio conjugando restaurante popular e presídio. Economia das instalações. O Estado acolhe todos em sua boca imensa. Assim a gente evita greve de fome. Gente primitiva não quer o progresso nem empreiteiras. Aqui nenhum cidadão de verdade foi espancado por causa disso.
Não era este o discurso. Perdoem. Achei: aqui era um restaurante popular. Hoje, inauguramos esta demolição.
Preparamos o futuro.


VII

8º arcano ou a gangrena: quando eles chegavam, brincávamos de adivinhar-lhes o futuro; quanto tempo ficariam aqui, se seriam processados, se condenados sem serem processados, se executados sem serem condenados, por quanto tempo condenados, por quanto tempo executados etc.; até que descobrimos que se lhes podia ler o futuro nas escoriações, num tipo de tanatomancia; alguns de nós adivinhavam os números da loteria pelas marcas no corpo e multiplicavam os golpes para a proliferação dos prêmios; outros só queriam ver o destino desses que chegavam, porém o método mais seguro para isso era a leitura de vísceras, que eram retiradas, lavadas e secas, para que o visceromante revelasse o futuro do antigo proprietário dos órgãos em questão; outros queriam ver além do destino pessoal e dedicavam-se à previsão do bem público e da segurança de todas as garantias sociais; no entanto, para descobrir o futuro do país, somente a pele deveria ser lida, por isso ela passou a ser retirada logo no ingresso nesta instituição, veja que a penduramos em varais para que, à meia-noite, os melhores de nós leiam o que dizem as estrelas vistas através da constelação de feridas.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz

No mesmo antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008) em que saiu minha resenha de livro de Alex Ross, publiquei outra, sobre o primeiro disco totalmente voltado para a música de Silvio Ferraz, compositor que aprecio e conheço pessoalmente há poucos anos - mas cuja música me alcançou no início do anos 1990. O disco foi gravado com apoio do SESC.


Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz


A música de câmara, por definição, destina-se à execução em âmbitos mais privados. A comemoração pública da queda do muro de Berlim não foi realizada com uma execução, digamos, do último quarteto de cordas de Beethoven, o opus 135, e sim com esta grande declaração pública iluminista que é a Sinfonia n.o 9.
Daí não se segue, porém, que toda música de câmara construa um universo equivalente ao da esfera privada, tampouco que toda música sinfônica elabore algo que possa ser comparado à esfera pública (pense-se no subjetivismo programático deste exemplo da música romântica, a Sinfonia fantástica, de Berlioz). O caráter elusivo, próprio da música, torna problemática essa diferenciação em várias obras.
Caixas, casas vazias, casas tomadas, quartos. A construção sonora de um universo privado é explicitamente reivindicada, porém, em Trópico das repetições, primeiro disco totalmente dedicado à obra do compositor paulista Silvio Ferraz. Com os músicos Lídia Bazarian (piano), Cássia Carrascoza (flauta), Luís Afonso Montanha (clarinete), Fábio Presgrave (violoncelo) e o próprio compositor na eletrônica, o disco inclui obras terminadas entre 1990 (Trópico das repetições) e 2007 (Tríptico das linhas).
Há anos, um lirismo intenso percorre esse universo privado; pode-se ainda reconhecer o compositor de ...enquanto corre o rio das onças... (peça de 1985, gravada por Graham Griffiths, então regente do grupo Novo Horizonte, em disco de 1993, brasil!
new music!) no Tríptico das casas.
Paulo Zuben, no texto de encarte do disco, destaca as interrupções na melodia de Cortázar (quarto com caixa vazia), “um pouco ofegantes”, e no solo de violoncelo Lamento quase mudo; creio que a interrupção pode ser considerada um princípio construtivo em mais de uma obra de Silvio Ferraz, como Les silences d’un étrange jardin, em que o uso expressivo da respiração, cortando o discurso da flauta, corrobora esse efeito.
Se boa parte das composições do autor de Linha torta e Linha solta (não incluídas neste disco) podem ser comparadas a uma linha interrompida, as referências a outros compositores (como Bach, Beethoven, Vivaldi) também são submetidas a esse processo: elas são interrompidas e reconstruídas para se transformar em outro desenho.
A ária da ópera Farnace, de Vivaldi, "Gelido in ogni vena", mal pode ser reconhecida em Tríptico das casas. O drama de Farnace, rei do Ponto, que usa o tema do Inverno das Quatro estações, é submetido ao universo privado da memória, e refeito noutra configuração, mais íntima.
Zuben destaca a importância dos carros de boi nessa peça e em Lamento quase mudo. Nesses dois casos, pode-se repetir o
que o próprio compositor escreveu sobre Ao encalço do boi, peça gravada em Duos e trios contemporâneos por Luís Eugênio Montanha e Carlos Tarcha: não se trata de peças nacionalistas, mas de lembranças afetivas reconstruídas.1
No disco, pode-se confirmar que o compositor, embora esteja ligado há muito à música eletrônica, não trata a tecnologia como fetiche: Poucas linhas de Ana Cristina e Cortázar ou quarto com caixa vazia podem ou não ser interpretadas em versões eletroacústicas. O disco oferece as duas versões de Cortázar (as duas sustentam-se musicalmente, sem se anular) e a eletroacústica de Poucas linhas, peça para clarinete, de notável intensidade.
É interessante notar que essa música parece ser uma referência a Ana Cristina Cesar, poeta que se notabilizou pela reconstrução ficcional da intimidade, característica presente também na poética de Silvio Ferraz.
Tanto na peça relativa a Ana Cristina Cesar quanto na que evoca Cortázar, não há ilustração a textos desses autores, nem biografismos: a obra constrói sua própria realidade. Senão, seria música funcional e o compositor estaria a ganhar milhões no cinema. Outra é a vocação desta música:

Desenhar um lugar e ter a música como sendo a pequena história deste lugar, ora se desenhando, ora se desfazendo, ora invadido por outro, ora contracenando com outro. Nada mais.2


Notas
1 Por sinal, não estamos mais na época em que o valor de uma obra era julgado por seu nacionalismo, o que levou a Mario de Andrade, por exemplo, a ratificar o repúdio da União Soviética às obras de Stravinsky e Kandinsky (como lembra Paulo César do Amorim Chagas em Luciano Gallet via Mário de Andrade, Rio de Janeiro: Funarte, 1979, p. 81).
Silvio Ferraz, felizmente, surgiu após as querelas dos nacionalistas. Veja-se que o próprio caráter brasileiro da música de Villa-Lobos, por exemplo, foi criado com influência estrangeira, como Stravinsky.
2 FERRAZ, Silvio. Tatuagens. In: FERRAZ, S.(org.) Notas, Atos, Gestos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 116.