Um poeminha do meu livro Cinco lugares da fúria. Já que alguns deputados, pastores e militares fizeram recentemente declarações contra negros, homossexuais, africanos etc., penso que a minha homenagem continua habitual.
Dediquei estes versos a meu amigo Eduardo Sterzi, que faz poemas muito melhores, no entanto (leiam O aleijão).
Devo mencionar que tive a ideia de inserir isto aqui porque o escritor Felipe de Carli citou alguns versos a propósito do nobre deputado Bolsonaro, um dos representantes do povo do Rio de Janeiro na Câmara dos Deputados.
EROSÃO E ÁGORA
para Eduardo
I
- Brasileiro é quem tem um senhor.
Sou um senhor. Não sou brasileiro.
- Quanto? - Pela liberdade eu luto
e pelas indústrias de armamentos.
- É bom ter um negro imundo aqui.
Assim, não nos poderão lançar
a infame pecha de racistas.
- E ter mulheres neste lugar?
- Claro que apóio minhas colegas.
Mas prefiro quando elas não falam.
- Quando votaremos o projeto?
- O governo ainda negocia.
- Quanto? - Luto a favor da justiça
e de aquisições transnacionais.
- Como será a expropriação?
- Segundo o projeto, toda lei,
antes de ser aprovada, precisa
que os debates sejam licenciados
por empresas, atuais e futuras,
afetadas pela nova norma.
Dessarte, a lei nasce totalmente
constitucional! - Mas, e a Justiça?
- Só autorizada previamente
pelo dobro do valor da causa
poderá processar as empresas.
- Isso traz segurança jurídica,
de antemão se sabe o vencedor.
- O projeto é de minha autoria:
mandei minha filha traduzir
um tratado de livre comércio.
(- Nunca terminará o resgate,
foi a dívida quem seqüestrou.
Não convoquem as forças armadas,
a dívida sustenta o QG.
Nem apelem para as eleições,
democracia cabe em disquete.)
- Brasileiro tem as unhas sujas.
Eu tomo o país. Mas uso luvas.
- Quanto? - Pela liberdade luto,
subvencionada pelo governo.
- Na minha terra, já virei nome
de cemitério! - A oposição
já tem lugar pra fazer política?
- Embora onde somos seja a fome
por já quarenta anos e meus filhos,
onde ascendemos os dentes caiam
por mais cinqüenta anos e meus netos,
há cem anos e nossos avós
os vermes habitem as entranhas,
a lama viva à imagem do homem
e até os insetos peguem fogo,
não nosso, mas do povo é o mérito:
os pobres sabem ter gratidão.
- Meu filho ontem queimou um índio.
- Não é uma espécie protegida?
- Mas ele achava que era um mendigo.
- Meu filho ontem queimou um índio.
- Estudando História do Brasil?
- Juventude americanizada!
- Quanto? - Luto em favor da justiça
e pelo favor das isenções.
- (De todas as coisas, a mais alta,
a pátria, que a todos nós pertence
do cadeado até a janela aberta
para o salto no ar irrevogável.
De todas as coisas, a mais bela,
a pátria, com sua maquilagem
barata: sangue, que ainda mancha
a bijuteria de cartilagem.
De todas as coisas, a nenhuma,
a pátria, que demarca as fronteiras
com as linhas ácidas do nada
e te demarca assim como o gado
de fazenda mais improdutiva:
se mudo ou se muges, é o que muda)
- Não votaremos mais o projeto!
Já negociamos com o governo.
- Quanto? - O preço? A imaginação
II
- Agora ele foi votar por quem?
- O lobão foi votar pelos porquinhos.
- A fraude é o hábito do parlamento.
- O hábito é a fraude do monge.
- O lobo mau está espreitando Chapeuzinho Vermelho.
- Ele a está convencendo a seguir outro caminho.
- Outro caminho? Isso mesmo! É bom ela deixar esse negócio de comunismo.
- Por quanto? O quanto não digo.
- Chapeuzinho Vermelho está se embrenhando pela floresta.
- Que merda! Outra ecologista!
- Estará preparando outra guerrilha rural?
- Em nosso projeto, as faculdades particulares terão que exigir que os formandos sejam capazes de entender ao menos a história da Chapeuzinho Vermelho. A da galinha com os ovos de ouro será dispensada.
- Chapeuzinho estranha as orelhas da vovó.
- Sátira à pouca discrição dos métodos governamentais de espionagem.
- E a voz? E as mãos? E os olhos? Louvam as políticas de incentivo à cultura nacional realizadas pessoalmente em Paris pelo Ministro?
- Mais uma vez! Quem paga os votos: o lobão ou o porquinho?
- Tanto faz, todos derrubam a casa.
- Você sabe o que o lenhador fez, com muitos tanques, do ventre das eleições?
- Chapeuzinho mira a boca de sua avó.
- Pedofilia lésbica incestuosa! Vou alugar esse filme já!
- Que nada! Chapeuzinho era um agente infiltrado! Ela e o Lobo repartem o bolo!
- A estratégia foi correta, pois o governo venceu.
- Mas ele enviou texto diverso do que foi acordado!
- De outra forma, não teria sido aprovado. Felizmente, ninguém percebeu a tempo.
- O senhor não acha que o povo estranhará que os parlamentares votem sem saber o que decidem?
- E o povo não faz o mesmo?
- E quanto à confiabilidade do governo?
- Cumpriu o papel dele.
- Transmissões encerradas.
III
- Novas transmissões: mais um soldado da guarda presidencial se matou. O corpo foi encontrado na zona de prostituição masculina da capital. Amanhã será um dia claro.
O palco e o mundo
Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".
quarta-feira, 30 de março de 2011
Desarquivando o Brasil II: Investigando a OAB
Retomando a campanha Desarquivando o Brasil, que Niara de Oliveira está a coordenar, faço mais uma nota sobre o assunto.
Escrevi sobre o projeto de lei para abertura dos arquivos e o acesso à informação. Agora, dedico-me a um documento do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que guarda o acervo DEOPS/SP (Departamento Estadual de Orientação Política e Social que, em algumas épocas, foi chamado de DOPS - Delegacia de Ordem Política e Social).
No acervo, encontram-se vários relatórios dos agentes do DEOPS/SP, que acompanhavam as organizações e movimentos da sociedade civil (e também órgãos públicos). Quase nenhum foi assinado, para proteger o sigilo dos agentes.
A OAB era uma dessas instituições que interessavam à ditadura. Em 31 de outubro de 1970, foi aprontado este relatório sobre a IV Conferência Nacional da Ordem dos Advogados (Documento 50-Z-0-12504), que ocorreu em São Paulo de 26 a 30 de outubro de 1970.
Era o governo Médici. A OAB não havia ainda se engajado na oposição ao regime autoritário. Na abertura da Conferência, além do prefeito Paulo Maluf, apareceram juristas "militantes" do regime: Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça, Hely Lopes Meirelles, Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Miguel Reale.
O agente anota sobre os discursos da abertura: "eram despidos de qualquer interesse político, a não ser na sua acepção pura." Sim, a oposição é que é impura...
Porém, no dia 29, quando houve "concessão da palavra aos oradores inscritos", ocorreu o dissenso:
Nesse ponto, observou-se a manifestação de elementos, particularmente liderados pelo advogado Heleno Fragoso (criminalista conhecido e renomado), do Estado da Guanabara, que vinha pressionando o plenário no sentido de se manifestar a favor do envio de moção ao Presidente da República e ao Congresso, para que houvesse o retorno ao estado de direito no país, com a restauração ampla e plena do instituto do "Habeas Corpus". O referido advogado se dizia portador de manifesto com assinaturas de advogados de outros Estados. Após alguma polêmica, foi aprovada Moção nesse sentido. Entretanto, aquele advogado retira-se, viajando para seu Estado de origem, alegando alguns, que por motivos particulares, outros, que em sinal de protesto.
O peculiar jargão policial revela-se no uso da palavra "elemento". A manifestação de Fragoso fazia todo sentido, e pasma hoje que tenha causado polêmica. O AI 5 havia acabado com o habeas corpus para crimes políticos, cerceando duramente o direito de defesa.
Não por acaso, Heleno Fragoso foi preso no mês seguinte à Conferência, novembro de 1970. Também o foram outros advogados comprometidos com a resistência à ditadura, George Tavares e Augusto Sussekind de Moraes Rego. Fragoso ainda foi afastado da docência de direito penal na Faculdade Nacional de Direito (hoje, uma das unidades da UFRJ).
Sobre o tema, aconselho este livro, Os advogados e a Ditadura de 1964, organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Matos Martins, publicado pela Vozes e pela PUC-Rio. O capítulo sobre Fragoso, porém, não usa como fontes os documentos dos órgãos da repressão (na verdade, nenhuma parte do livro o faz), e não menciona como a atuação do advogado vinha sendo acompanhada pela ditadura.
Ainda resta muito a pesquisar, e faltam muitos documentos para serem revelados - esse é o sentido desta Campanha.
terça-feira, 29 de março de 2011
Desarquivando o Brasil: o projeto de lei para regulamentar o acesso à informação pública
A jornalista Niara de Oliveira está coordenando novamente a campanha virtual Desarquivando o Brasil, agora na terceira edição: trata-se de uma blogagem coletiva pela abertura dos arquivos da ditadura militar no Brasil.
Os blogueiros que quiserem participar desta semana (até o próximo domingo, dia três de abril) pelo direito à memória e à verdade sintam-se livres para avisar no post de Niara que estão aderindo, e participar da campanha em seus blogues e nas redes sociais com o tópico #desarquivandoBR.
O assunto exige uma lembrança sobre o trâmite de projetos de lei para tornar público o acesso à informação pública no Brasil. O projeto de lei 219 de 2003, de autoria do deputado federal Reginaldo Lopes, do PT de Minas Gerais, tinha como fim regulamentar "o inciso XXXIII do art. 5º da Constituição Federal, dispondo sobre prestação de informações detidas pelos órgãos da Administração Pública." Ele o apresentou porque a legislação infraconstitucional estava simplesmente ferindo o acesso à informação (já menciono o decreto de FHC II)), previsto na Constituição da República no dispositivo mencionado, ferindo uma garantia fundamental dos cidadãos brasileiros.
Foi aprovado um projeto substitutivo em 13 de abril de 2010, de autoria do relator, Deputado Mendes Ribeiro Filho (PMDB-RS), que levou em conta o projeto de 2003 e mais alguns, entre eles o do Poder Executivo, que foi encaminhado pela Casa Civil em 2009 à Câmara dos Deputados (5228/2009). Este projeto do Executivo não previa limitação para a renovação do sigilo das informações ultrassecretas (eternizando-o, pois - e quem o fez foi Dilma Rousseff), ao contrário do substitutivo, que só prevê uma única renovação - acabando assim, se aprovado definitivamente, com o sigilo eterno do decreto 4553 de 2002, que Fernando Henrique Cardoso, no apagar das luzes de seu último governo, deixou como herança para o povo e seus (do ex-presidente da república) antigos pares, os cientistas sociais. Lula melhorou-o, mas não foi o suficiente.
O Ministério das Relações Exteriores desejava a eternidade do segredo, ao que parece, por conta de papéis sobre a Guerra do Paraguai e a compra do Acre - não são apenas as Forças Armadas que se posicionam contra o direito à memória e à verdade. O MRE também o faz, e, pior, mais discretamente.
Segundo o substitutivo aprovado na Câmara, o princípio da publicidade aplica-se, em regra, a todos os documentos, sendo o sigilo uma exceção. A lei, se aprovada definitivamente, aplicar-se-á aos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como aos três níveis da federação: União, Estados e Municípios. Também à administração indireta: autarquias, fundações, e a organizações que recebam verbas públicas, como organizações não governamentais. A OAB, imagino, será também afetada.
No entanto, há riscos de restrições ao acesso: o direito à imagem e à honra, previsto no projeto e no Código Civil de forma vaga, pode servir de pretexto para prolongar o sigilo de documentos. O projeto deseja também criar uma Comissão de Reavaliação de Informações, no âmbito da Casa Civil, para os documentos da União. A Comissão não conta com membros da sociedade civil, e pode não ser independente no tratamento e na classificação de informações sigilosas, bem como no pedido de revisão da classificação dos documentos, pedido que pode ser apresentado por qualquer cidadão interessado. Veja-se aqui a composição da Comissão no caput do artigo 35 e o limite na renovação da classificação ultrassecreta no inciso III :
Art. 35. Fica instituída, em contato permanente com a
Casa Civil da Presidência da República, inserida na competência
da União, a Comissão Mista de Reavaliação de Informações,
composta por Ministros de Estado e por representantes dos Poderes
Legislativo e Judiciário, indicados pelos respectivos
presidentes, com mandato de 2 (dois) anos.
§ 1º A Comissão Mista de Reavaliação de Informações
decidirá, no âmbito da administração pública federal, sobre o
tratamento e a classificação de informações sigilosas e terá
competência para:
I - requisitar da autoridade que classificar informação
como ultrassecreta e secreta esclarecimento ou conteúdo,
parcial ou integral da informação;
II - rever a classificação de informações ultrassecretas
ou secretas, de ofício ou mediante provocação de pessoa
interessada, observado o disposto no art. 7º e demais dispositivos
desta Lei; e
III - prorrogar o prazo de sigilo de informação classificada
como ultrassecreta, sempre por prazo determinado, enquanto
o seu acesso ou divulgação puder ocasionar ameaça externa
à soberania nacional ou à integridade do território nacional
ou grave risco às relações internacionais do País, observado
o prazo previsto no § 1º do art. 24, limitado a uma
única renovação.
§ 2º A revisão de ofício a que se refere o inciso II
do § 1º deverá ocorrer, no máximo, a cada 4 (quatro) anos,
após a revisão prevista no art. 39, quando se tratar de documentos
ultrassecretos ou secretos.
§ 3º A não deliberação sobre a revisão pela Comissão
Mista de Reavaliação de Informações nos prazos previstos no §
2º implicará a desclassificação automática das informações.
§ 4º Regulamento disporá sobre a composição, organização
e funcionamento da Comissão Mista de Reavaliação de Informações,
observadas as disposições desta Lei.
Art. 36. O tratamento de informação sigilosa resultante
de tratados, acordos ou atos internacionais atenderá às
normas e recomendações constantes desses instrumentos.
De positivo, a referência ao direito internacional no artigo 36, normalmente mais liberal do que o brasileiro nessa matéria. Aqui, temos os prazos do artigo 24:
Art. 24. A informação em poder dos órgãos e entidades
públicas, observado o seu teor e em razão de sua imprescindibilidade
à segurança da sociedade ou do Estado, poderá ser
classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada.
§ 1º Os prazos máximos de restrição de acesso à informação,
conforme a classificação prevista no caput, vigoram
a partir da data de sua produção e são os seguintes:
I - ultrassecreta: 25 (vinte e cinco) anos;
II - secreta: 15 (quinze) anos; e
III - reservada: 5 (cinco) anos.
§ 2º As informações que puderem colocar em risco a
segurança do Presidente e Vice-Presidente da República e respectivos
cônjuges e filhos (as) serão classificadas como reservadas
e ficarão sob sigilo até o término do mandato em
exercício ou do último mandato, em caso de reeleição.
§ 3º Alternativamente aos prazos previstos no § 1º,
poderá ser estabelecida como termo final de restrição de acesso
a ocorrência de determinado evento, desde que este ocorra
antes do transcurso do prazo máximo de classificação.
§ 4º Transcorrido o prazo de classificação ou consumado
o evento que defina o seu termo final, a informação tornar-
se-á, automaticamente, de acesso público.
§ 5º Para a classificação da informação em determinado
grau de sigilo, deverá ser observado o interesse público da
informação, e utilizado o critério menos restritivo possível,
considerados:
I - a gravidade do risco ou dano à segurança da sociedade
e do Estado; e
II - o prazo máximo de restrição de acesso ou o evento
que defina seu termo final.
A importância desse projeto para o pesquisador é imensa. Raros acervos - e o Arquivo Nacional não é uma exceção - tem a política do Arquivo Público do Estado de São Paulo, que abriga os papeis do DEOPS/SP. Nele, encontram-se vários documentos que comprovam a contradição entre a retórica legalista do regime e suas práticas contrárias aos direitos humanos. Por exemplo, podem-se ver as comprovações de execuções, como a de Olavo Hansen, de Manoel Fiel Filho e outros mortos pelo regime, bem como de torturas sobre sobreviventes que foram depois indenizados (como Damaris de Oliveira Lucena).
No entanto, não é tão comum encontrar documentos de outros Estados, e o acervo do DEOPS/SP, embora tenha documentos federais confidenciais e reservados (como diretrizes jurídicas sobre a incomunicabilidade das prisões de suspeitos de crimes políticos, assunto sobre que estou escrevendo), evidentemente não traz um quadro completo dos documentos da União.
Aqui, poderá ver o trâmite do projeto já aprovado na Câmara:
http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=105237
Eis o Substitutivo que seguiu para o Senado Federal.
No Senado, ele foi enviado para diversas Comissões: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=96674. O Senador Eduardo Suplicy apresentou requerimento em 29 de junho de 2010 para que ele fosse também para a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
De parecer aprovado no Senado, apenas há o da Comissão de Justiça e Cidadania, que foi favorável ao projeto. Curiosamente, ele foi assinado por Romeu Tuma (morreria quatro meses depois) e Demóstenes Torres.
Resta ver se o projeto não será desfigurado no Senado Federal, e se essa Casa será célere na tramitação. Depois, se aprovado, ainda terá que escapar da possibilidade de veto da presidência da república.
sábado, 26 de março de 2011
Pimenta, poços e ONU: "Reality Show ou a Alegoria das Cavernas"
A realidade, com sua inventividade definitivamente esgotada, volta a imitar Alberto Pimenta? Muitos devem lembrar que, além de Paul Virilio, no parecer que produziu para Nova Iorque sobre o World Trade Center, Alberto Pimenta também previu os atentados que os EUA sofreram em 2001.
A ignorância em literatura portuguesa, comum naquele país (quem não lembra da reação apatetada no New York Times com o Nobel dado a Saramago?), foi um dos fatores da vulnerabilidade estadunidense:
Esse poema pós-sebastianista e anti-imperialista, publicado originalmente em As moscas de pégaso (Lisboa: &etc, 1998), escolhi-o (com outros momentos geniais de presciência poética) para a antologia A encomenda do silêncio, por enquanto a única lançada no Brasil, organizada para a Odradek Editorial.
Os poetas possuem antenas ou são os legisladores ocultos da realidade? Não sei. Teria que perguntar a algum deles, e esperar que não fingissem. Mas fingirão o que deveras são.
Eis que chega às minhas mãos, de Portugal, novo livro de Alberto Pimenta, Reality show ou a alegoria das cavernas, que veio com o disco Degrau, em que poemas de Pimenta foram musicados por Alexandre Augusto, Pedro Soares e João Alves. Canta Ana Deus. Aqui, pode-se ouvir Diz nada.
A realidade, dessa vez, resolveu logo imitar Alberto Pimenta; tão logo ele escreveu e publicou poema sobre a guerra pelo "poço" autorizada pela ONU, o Conselho de Segurança, para não ser ultrapassado tão descaradamente pelo poeta português, aprovou a intervenção na Líbia.
Apenas alguns trechos desta realidade-mais-do-que-a-realidade:
E mais maldades contra Platão e o imperialismo. A editora tem um blogue ainda sem mensagem alguma: http://mia-soave.blogspot.com/. O e-mail é miasoave@gmail.com.
A ignorância em literatura portuguesa, comum naquele país (quem não lembra da reação apatetada no New York Times com o Nobel dado a Saramago?), foi um dos fatores da vulnerabilidade estadunidense:
sonhei
que um fogo vindo do céu
devastava a América.
o homem sonha.
se deus quiser
a obra nasce.
Esse poema pós-sebastianista e anti-imperialista, publicado originalmente em As moscas de pégaso (Lisboa: &etc, 1998), escolhi-o (com outros momentos geniais de presciência poética) para a antologia A encomenda do silêncio, por enquanto a única lançada no Brasil, organizada para a Odradek Editorial.
Os poetas possuem antenas ou são os legisladores ocultos da realidade? Não sei. Teria que perguntar a algum deles, e esperar que não fingissem. Mas fingirão o que deveras são.
Eis que chega às minhas mãos, de Portugal, novo livro de Alberto Pimenta, Reality show ou a alegoria das cavernas, que veio com o disco Degrau, em que poemas de Pimenta foram musicados por Alexandre Augusto, Pedro Soares e João Alves. Canta Ana Deus. Aqui, pode-se ouvir Diz nada.
A realidade, dessa vez, resolveu logo imitar Alberto Pimenta; tão logo ele escreveu e publicou poema sobre a guerra pelo "poço" autorizada pela ONU, o Conselho de Segurança, para não ser ultrapassado tão descaradamente pelo poeta português, aprovou a intervenção na Líbia.
Apenas alguns trechos desta realidade-mais-do-que-a-realidade:
irromperam no local
fazendo-se desta vez acompanhar
da autorização das nações-unidas
e por isso se calhar tinham demorado tanto
e vinham
com grande número de cães
treinados no achamento de
poços de petróleo
pois era isso
que o seu comando supôs
poder haver ali
esquecendo-se de que a água
está invisivelmente presente
em todo lado
[...]
havia cada vez mais inimigos
sem rosto
o solo semeado de braços e pernas
ou dizendo com mais exactidão
juncado
porque ainda não
tinham sido enterrados
não havia tempo para tudo
primeiro tratar dos vivos
com dois disparos certeiros
na cabeça
esta manobra de tantos corpos
em movimento de confronto total
[...]
e então fui eu
com o meu comando
quem fez surgir do chão
no lugar do poço
uma torre
o início de uma nova civilização
lembrando que
ao longo da história da humanidade
cavernas tocas grutas
depois os aglomerados
começam e acabam
pelo que os une a todos
o esgoto
e é à sua volta
que a urbanização cresce e prospera
[...]
depois tive de proceder
à desinfecção dos parasitas
que velozmente se instalaram
e propagaram e ameaçavam dizimar
tudo o que fosse vida humana
o meu método foi radical
adiantei-me a eles
e matei eu a raiz do mal
a própria população
há quem ache que isto
foi mero desperdício de estruturas de base
a tarefa poderia perfeitamente ficar
a cargo dos parasitas
E mais maldades contra Platão e o imperialismo. A editora tem um blogue ainda sem mensagem alguma: http://mia-soave.blogspot.com/. O e-mail é miasoave@gmail.com.
sexta-feira, 25 de março de 2011
Causas e honras de Moreira Alves
Em mais um capítulo recente do negacionismo em relação à ditadura militar no direito brasileiro, José Carlos Moreira Alves receberá título de doutor honoris causa pela Universidade de Brasília.
Ele merece o título? Muitos consideram-no um grande romanista. Outros levantam-lhe um óbice jurídico e político: ele esteve entre os juristas que se engajaram a favor da ditadura militar. Aqui, João Telésforo Medeiros Filho recorda o caso da prisão do deputado Francisco Pinto, que denunciou o caráter ditatorial do governo chileno quando Pinochet visitou o Brasil para a posse de Geisel. Chamar o ditador chileno de "assassino", "mentiroso" e "fascista" (nada de inexato, aliás) gerou a condenação em virtude da lei de segurança nacional.
José Carlos Moreira Alves, como procurador-geral da república (cargo de atribuições muito mais largas do que a de hoje, que incluíam a defesa da União), pediu e obteve a condenação de Francisco Pinto. Ele poderia ter feito diferente? Trabalhos como o de Liora Israël sobre a atuação dos juristas na Resistência Francesa e na Guerra para a independência da Argélia mostram que a atuação contra o poder oficial, por intermédio do direito, é possível mesmo no interior da administração pública, até mesmo aparentando cumprir as ordens oficiais.
Não foi o caso do jurista brasileiro, claro, que se mostrou eficaz e diligente nessa ocasião - e em outras causas, sobre que posso escrever depois. Creio que elas não honram.
O apoio inegável de Moreira Alves à ditadura deveria impedir que a UnB lhe reconhecesse o mérito intelectual? Ou se trata de um patrulhamento esquerdista? Ou de revanchismo, palavra tantas vezes repetida contra os que defendem o direito à memória e à verdade?
Não responderei a nada disso. A UnB já deu a sua resposta. Só quero discordar daquele mérito do jurista no tocante à história do direito, ao menos neste estudo que analisei há cinco anos.
Ingenuamente, poderia se imaginar que o ex-chefe de gabinete de Buzaid teria muito a revelar sobre o ex-ministro de Médici. No entanto, nada, nada é dito da atuação dele no tocante à doutrina de segurança nacional, e a ditadura militar é simplesmente ignorada no estudo "Alfredo Buzaid: Uma vida dedicada ao direito" (o título também não é nada imaginativo) publicada no volume I de Grandes juristas brasileiros, organizado por Rufino e Penteado. Moreira Alves, do seu ex-chefe, ressalta a "estatura intelectual e moral". Não sei a que atribuir o notável vazio histórico do estudo, visto que o futuro doutor honoris causa pela UnB foi testemunha e agente dos fatos que são silenciados.
Resenhei em 2006 o volume II, mas não me furtei a mencionar o estudo sobre Buzaid, que encarnava tão exemplarmente os absurdos metodológicos de um negacionismo obtido pela via da história monumental.
Meu textinho, que trata de outros juristas, pode ser lido em mais de um sítio, no México e no Brasil. Aqui, destaco o início:
Ele merece o título? Muitos consideram-no um grande romanista. Outros levantam-lhe um óbice jurídico e político: ele esteve entre os juristas que se engajaram a favor da ditadura militar. Aqui, João Telésforo Medeiros Filho recorda o caso da prisão do deputado Francisco Pinto, que denunciou o caráter ditatorial do governo chileno quando Pinochet visitou o Brasil para a posse de Geisel. Chamar o ditador chileno de "assassino", "mentiroso" e "fascista" (nada de inexato, aliás) gerou a condenação em virtude da lei de segurança nacional.
José Carlos Moreira Alves, como procurador-geral da república (cargo de atribuições muito mais largas do que a de hoje, que incluíam a defesa da União), pediu e obteve a condenação de Francisco Pinto. Ele poderia ter feito diferente? Trabalhos como o de Liora Israël sobre a atuação dos juristas na Resistência Francesa e na Guerra para a independência da Argélia mostram que a atuação contra o poder oficial, por intermédio do direito, é possível mesmo no interior da administração pública, até mesmo aparentando cumprir as ordens oficiais.
Não foi o caso do jurista brasileiro, claro, que se mostrou eficaz e diligente nessa ocasião - e em outras causas, sobre que posso escrever depois. Creio que elas não honram.
O apoio inegável de Moreira Alves à ditadura deveria impedir que a UnB lhe reconhecesse o mérito intelectual? Ou se trata de um patrulhamento esquerdista? Ou de revanchismo, palavra tantas vezes repetida contra os que defendem o direito à memória e à verdade?
Não responderei a nada disso. A UnB já deu a sua resposta. Só quero discordar daquele mérito do jurista no tocante à história do direito, ao menos neste estudo que analisei há cinco anos.
Ingenuamente, poderia se imaginar que o ex-chefe de gabinete de Buzaid teria muito a revelar sobre o ex-ministro de Médici. No entanto, nada, nada é dito da atuação dele no tocante à doutrina de segurança nacional, e a ditadura militar é simplesmente ignorada no estudo "Alfredo Buzaid: Uma vida dedicada ao direito" (o título também não é nada imaginativo) publicada no volume I de Grandes juristas brasileiros, organizado por Rufino e Penteado. Moreira Alves, do seu ex-chefe, ressalta a "estatura intelectual e moral". Não sei a que atribuir o notável vazio histórico do estudo, visto que o futuro doutor honoris causa pela UnB foi testemunha e agente dos fatos que são silenciados.
Resenhei em 2006 o volume II, mas não me furtei a mencionar o estudo sobre Buzaid, que encarnava tão exemplarmente os absurdos metodológicos de um negacionismo obtido pela via da história monumental.
Meu textinho, que trata de outros juristas, pode ser lido em mais de um sítio, no México e no Brasil. Aqui, destaco o início:
São bem conhecidas as considerações de Nietzsche sobre a história monumental, na segunda das Considerações Extemporâneas. Ela se contrapõe a uma história crítica e deseja criar uma cadeia de monumentos (mestres e modelos do passado) para dar sentido à história da humanidade.
Como resultado, nega-se a própria noção de historicidade, com a pretendida homogeneidade da linha traçada entre esses monumentos e o presente; ignoram-se as causas históricas, pois o que vemos é apenas uma série de efeitos grandiosos (os monumentos); e esse passado é utilizado contra o presente. Segundo Nietzsche, trata-se do “[...] instinto de que a arte possa ser morta pela arte: o Monumental não deve, de forma alguma, ser gerado novamente, e para isso se usa justamente a autoridade que o monumental do passado teve antes uma vez.”
Esse tipo de história reincide no segundo volume de Grandes Juristas Brasileiros. O primeiro, lançado em 2003 pelos mesmos organizadores e pela mesma editora, seguia explicitamente a linha da história dos grandes vultos, sem, muitas vezes, tentar entendê-los no contexto histórico. O capítulo dedicado a Alfredo Buzaid, escrito por José Carlos Moreira Alves, simplesmente ignora o papel daquele jurista (que foi Ministro da Justiça de Médici e foi indicado ao Supremo Tribunal Federal por Figueiredo) na legitimação jurídica da ditadura militar. Além de Ministro da Justiça de Médici, Buzaid foi indicado ao Supremo Tribunal Federal por Figueiredo, aposentando-se, depois de pouco mais de dois anos, como Ministro dessa corte.
quinta-feira, 24 de março de 2011
Censura e o "estado do direito" na ditadura militar: o jornal Ex e o Cardeal Arns
Citei em outra postagem trechos do jornal Ex, que não teve medo de noticiar a morte do jornalista Vladimir Herzog nas mãos da repressão, e foi fechado pela ditadura militar.
Deixei, no entanto, de indicar que, além da publicação em papel, fac-similar, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, ele pode ser lido no portal Memórias Reveladas.
Na edição especial (um arquivo pesado em vários sentidos) que o jornal publicou no fim de 1975, há uma chamada ousada e engraçada na primeira página: sobre a foto de um carrasco, a primeira linha traz "Censura/ Burrice/ Mortes". Há outras maldades, que não mencionarei.
Nesse número, encontramos, entre outras matérias, um anúncio fúnebre da morte de "H. Kissinger", entrevista com Zé Celso (que já planejava montar Os Sertões!), Nixon vestido de presidiário (o que incomodaria as autoridades brasileiras), matéria sobre tortura (um experimento científico nos EUA), matéria feita com dois censores, Álvaro Vieira e Sampaio Mitke, dos tempos de Getúlio, que dão depoimentos a Domingos Meirelles.
Uma história interessante contada por Vieira foi a de Assis Chateaubriand pedindo ao censor que liberasse a notícia, com foto, de Francisco Campos (então ministro da educação, depois ministro da justiça de Vargas) em passeata com fascistas. O censor assentiu e foi suspenso em represália. Era a censura prévia, que existia desde antes do Estado Novo.
Mitke declarou: "O Estado Novo, como todos os regimes de exceção, necessitava da Censura como o ar que seus governantes respiram. Esses regimes são frágeis, pela sua própria natureza, que sem ela eles não conseguiriam sobreviver."
Em termos arendtianos, digamos que esses regimes dispõem de muita violência, mas de pouco poder.
A censura teria uma vida longa, tanto a de costumes quanto a política (cujas fronteiras podem confundir-se, como se viu com a Tropicália, a Contracultura...). Mesmo um governo relativamente democrático como o de Juscelino Kubitscheck recorreu à censura política. A ditadura militar recrudesceu-a em sua efetivação ilegal mesmo diante da legislação do período, como já expliquei alhures.
Como o direito, em seu formalismo, delimita competências e deveres, o comum é que regimes autoritários não consigam cumprir sua própria legislação. O direito nunca é completamente cumprido, claro, pois as normas jurídicas são criadas exatamente para aquilo que pode ser violado - o que não pode sê-lo não precisa delas (inexistem normas, por exemplo, proibindo urinar em Marte). Governos democráticos também violam-no, mas neles os tribunais podem funcionar...
Nos regimes autoritários a violação sistematiza-se de forma que não podem ser caracterizados como "estados de direito". Em que o estado o direito fica nesse caso? Nos Atos Institucionais tinha-se o cuidado de limitar ou excluir a competência judicial no exame dos atos arbitrários do regime - ou de alterar competências, como foi o caso da atribuição da Justiça Militar em julgar civis em crimes contra a segurança nacional e contra as instituições militares, instituída no AI 2.
Por isso, para negar (ou diminuir) o caráter ditatorial do regime militar no Brasil, uma das estratégias é dizer que a justiça funcionava perfeitamente, como fez Ives Gandra da Silva Martins.
A edição extra de setembro de 1975 do jornal Ex publicou uma entrevista com o Cardeal Paulo Evaristo Arns - um homem corajoso, todos o sabem, e inteligente:
O problema não estava, claro, nas maiores ou menores luzes de Alfredo Buzaid, que, na época, era ex-integralista (em 1975, no velório de Plínio Salgado, fez um elogio fúnebre ao ideólogo do integralismo) e também processualista, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, ex-diretor da faculdade de direito da USP, ex-Vice-Reitor e ex-Reitor em exercício da USP etc. Mais adiante, ainda seria, por dois anos e pouco, até aposentar-se, Ministro do Supremo Tribunal Federal (a nomeação para o STF de próceres do regime próximos da aposentadoria aconteceu mais de uma vez).
O silêncio desse notável medalhão do direito e da política brasileiros tinha uma função política, como bem viu Arns. O que interessava à ditadura? Justamente não esclarecer - tal é a esfera pública permitida em regimes quejandos.
Deixei, no entanto, de indicar que, além da publicação em papel, fac-similar, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, ele pode ser lido no portal Memórias Reveladas.
Na edição especial (um arquivo pesado em vários sentidos) que o jornal publicou no fim de 1975, há uma chamada ousada e engraçada na primeira página: sobre a foto de um carrasco, a primeira linha traz "Censura/ Burrice/ Mortes". Há outras maldades, que não mencionarei.
Nesse número, encontramos, entre outras matérias, um anúncio fúnebre da morte de "H. Kissinger", entrevista com Zé Celso (que já planejava montar Os Sertões!), Nixon vestido de presidiário (o que incomodaria as autoridades brasileiras), matéria sobre tortura (um experimento científico nos EUA), matéria feita com dois censores, Álvaro Vieira e Sampaio Mitke, dos tempos de Getúlio, que dão depoimentos a Domingos Meirelles.
Uma história interessante contada por Vieira foi a de Assis Chateaubriand pedindo ao censor que liberasse a notícia, com foto, de Francisco Campos (então ministro da educação, depois ministro da justiça de Vargas) em passeata com fascistas. O censor assentiu e foi suspenso em represália. Era a censura prévia, que existia desde antes do Estado Novo.
Mitke declarou: "O Estado Novo, como todos os regimes de exceção, necessitava da Censura como o ar que seus governantes respiram. Esses regimes são frágeis, pela sua própria natureza, que sem ela eles não conseguiriam sobreviver."
Em termos arendtianos, digamos que esses regimes dispõem de muita violência, mas de pouco poder.
A censura teria uma vida longa, tanto a de costumes quanto a política (cujas fronteiras podem confundir-se, como se viu com a Tropicália, a Contracultura...). Mesmo um governo relativamente democrático como o de Juscelino Kubitscheck recorreu à censura política. A ditadura militar recrudesceu-a em sua efetivação ilegal mesmo diante da legislação do período, como já expliquei alhures.
Como o direito, em seu formalismo, delimita competências e deveres, o comum é que regimes autoritários não consigam cumprir sua própria legislação. O direito nunca é completamente cumprido, claro, pois as normas jurídicas são criadas exatamente para aquilo que pode ser violado - o que não pode sê-lo não precisa delas (inexistem normas, por exemplo, proibindo urinar em Marte). Governos democráticos também violam-no, mas neles os tribunais podem funcionar...
Nos regimes autoritários a violação sistematiza-se de forma que não podem ser caracterizados como "estados de direito". Em que o estado o direito fica nesse caso? Nos Atos Institucionais tinha-se o cuidado de limitar ou excluir a competência judicial no exame dos atos arbitrários do regime - ou de alterar competências, como foi o caso da atribuição da Justiça Militar em julgar civis em crimes contra a segurança nacional e contra as instituições militares, instituída no AI 2.
Por isso, para negar (ou diminuir) o caráter ditatorial do regime militar no Brasil, uma das estratégias é dizer que a justiça funcionava perfeitamente, como fez Ives Gandra da Silva Martins.
A edição extra de setembro de 1975 do jornal Ex publicou uma entrevista com o Cardeal Paulo Evaristo Arns - um homem corajoso, todos o sabem, e inteligente:
Nós pedimos uma vez que fosse definido - os bispos todos em reunião pediram ao então Ministro da Justiça, que era aliás, como se chamava ele? Buzaid. Pedimos que ele dissesse o que é subversão política. Nunca foi definido. É certo quem colabora para que se esclareçam as coisas, não deve ser considerado subversivo.
O problema não estava, claro, nas maiores ou menores luzes de Alfredo Buzaid, que, na época, era ex-integralista (em 1975, no velório de Plínio Salgado, fez um elogio fúnebre ao ideólogo do integralismo) e também processualista, membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, ex-diretor da faculdade de direito da USP, ex-Vice-Reitor e ex-Reitor em exercício da USP etc. Mais adiante, ainda seria, por dois anos e pouco, até aposentar-se, Ministro do Supremo Tribunal Federal (a nomeação para o STF de próceres do regime próximos da aposentadoria aconteceu mais de uma vez).
O silêncio desse notável medalhão do direito e da política brasileiros tinha uma função política, como bem viu Arns. O que interessava à ditadura? Justamente não esclarecer - tal é a esfera pública permitida em regimes quejandos.
quinta-feira, 17 de março de 2011
O tributo da memória: Ditadura de ontem e juristas ainda hoje
O conhecido tributarista Ives Gandra da Silva Martins publicou na Folha de S.Paulo de 16 de março deste ano um artigo altamente elogioso do governo da Presidenta Dilma Rousseff, o que contrasta com os pronunciamentos desse jurista sobre o governo anterior do Partido dos Trabalhadores. O artigo pode soar a alguns como uma espécie de mea culpa eleitoral.
Quanto a mim, encontro no texto sinais inquietantes de negacionismo no tocante ao passado recente do Brasil: a ditadura militar.
Creio que o renomado jurista está corretíssimo em afirmar que "aqueles 20 anos de governo militar" não foram apenas anos de chumbo. O tributarista não chega a tratar do tema, porém se deve lembrar que o governo autoritário tinha um braço militar e outro civil. Não se trata apenas do partido governista, a ARENA. Sem o apoio milionário do empresariado, a repressão política e a propaganda governamentais não teriam sido tão eficientes.
O chumbo não era a única arma do regime, de forma alguma. Os meios de comunicação engajados no autoritarismo cumpriram bem sua tarefa de louvar generais e arenistas e de condenar ou silenciar - uma espécie de complemento jornalístico do pau-de-arara - os opositores.
Um dos dedos desse braço civil eram os juristas militantes do regime autoritário. Na época, atuavam para negar o caráter ditatorial do governo, criando uma fumaça de "estado de direito" para embaçar a visão do povo brasileiro e da sociedade internacional.
E o que dizer daqueles que afirmam terem sido contrários a ditadura, mas hoje diminuem ou negam os crimes daquele regime? Esses não estão, mesmo involuntariamente, a colaborar com a nostalgia das fardas?
Infelizmente, foi exatamente isso que o célebre tributarista fez ontem. Ele escreveu, no artigo publicado pela Folha, que o Supremo Tribunal Federal "então constituído de notáveis juristas, nunca se curvou ao Poder Executivo, e este nunca pressionou o pretório excelso."
Fica vilipendiada, portanto, a memória de três dos maiores juristas brasileiros, que foram afastados do Supremo Tribunal Federal por meio do Ato Institucional nº 5 (de 13 de dezembro de 1968): Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal foram aposentados compulsoriamente com base neste artigo:
A aposentadoria compulsória veio em 1969, com base no artigo 9º do AI 5, que também suspendeu o habeas corpus. Não havia direito de defesa contra os atos arbitrários da presidência; como em outros AI, impedia-se a apreciação judicial de "todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos." (art. 11).
O Supremo Tribunal já havia sido atingido pelas medidas de exceção. Por meio do artigo 6º do AI 2, de 27 de outubro de 1965, a ditadura havia aumentado a composição do Supremo Tribunal Federal em mais cinco Ministros: foi a forma que Castello Branco encontrou para intervir na Corte - desde 1964 a chamada "linha dura" pressionava para que houvesse modificação na composição do STF, a despeito dos protestos do Ministro Ribeiro da Costa, então Presidente da Corte (ele morreria em 1967, antes do AI 5).
Alguns anos depois, Costa e Silva percebeu que a medida não tinha sido suficiente, pois os novos Ministros não agiam como partidários do governo (também Ives Gandra da Silva Martins comenta esse fato em artigo que escreveu com Arnoldo Wald, "As nomeações para o STF", na Folha de S.Paulo de 30 de março de 2006), e que, segundo os consideranda do AI 5, "os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la".
A natureza essencialmente ilegal da ditadura militar revelou-se também nesse momento: nem mesmo o direito de exceção criado pelo regime era cumprido pelo poder.
Com o afastamento dos três Ministros, pediram aposentadoria Antonio Gonçalves de Oliveira, o presidente do Tribunal, e Lafayette de Andrada; dessa forma, o STF voltou a ter 11 membros, o que foi referendado pelo artigo 1º do AI 6, de 1º de fevereiro de 1969. O AI 6 também interveio reduzindo a competência do Tribunal, para que não julgasse habeas corpus em crimes políticos.
Emília Viotti em O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania erroneamente afirma que os três Ministros foram aposentados a partir do AI 6. Esse engano já foi esclarecido outras vezes; o Ministro Luiz Gallotti, por exemplo, declarou para Osvaldo Trigueiro do Vale, em O Supremo TRibunal Federal e a instabilidade político-institucional: "Aquelas três aposentadorias não se seguiram ao Ato Institucional n. 6 (1-2-1969). Foram anteriores a esse Ato e baseadas no Ato Institucional n. 5."
A Corte já estava enquadrada e com a competência reduzida, o que talvez seja um dos motivos de sua jurisprudência contrária aos direitos humanos na década de 1970, que tive a oportunidade de estudar em minha tese.
Seria adequado considerar que aquele que nega a memória e a verdade sobre o período é um ex-combatente da ditadura?
Em outros textos, Ives Gandra da Silva Martins parece desconhecer que houve a Guerrilha do Araguaia, afirmando que a guerrilha, "de rigor", terminou em 1971. Claro que, se nunca existiu, ela não poderia ter deixado desaparecidos... E as Forças Armadas nada teriam a explicar.
O absurdo histórico de afirmar que o projeto de lei de anistia "foi amplamente negociado" foi referendado pelo insigne tributarista, ao elogiar o julgamento do STF, em abril de 2010, favorável à lei de anistia aprovada no governo de Figueiredo.
No último artigo publicado pela Folha pelo destacado tributarista, também se lê que a OAB lutou pela democracia, o que, no entanto, somente é verdade a partir da década de 1970. Antes disso, os juristas que advogavam em favor de presos polítcos não costumavam encontrar guarida na instituição, nem mesmo nomes como Sobral Pinto, Heleno Fragoso e Evaristo de Morais Filho - presos após a aprovação do AI 5. A OAB calou-se, na época, a respeito desse ato institucional. E ela, assim como outras instituições, não havia se oposto ao golpe militar. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que foi mais corajosa, percebeu antes o caráter autoritário do regime e protestou contra o AI 5.
De que forma explicar tais erros? Como o douto jurista, em artigo contrário à Comissão da Verdade (que investigaria os crimes da ditadura militar), recentemente chegou mesmo a atribuir a Rawls um livro que este nunca escreveu ("Direito e democracia" é o título da tradução brasileira de um original de Habermas, Faktizität und Geltung), creio que o tema lhe provoca fortes emoções (afinal, ele viveu essa época) e chega a lhe obnubilar, em certos instantes, o saber jurídico e histórico tão louvado entre os tributaristas.
Lembro agora de meu favorito entre os grandes juristas brasileiros do passado, em palestra de 1980 (o que explica o cuidado em chamar o golpe de revolução):
Ele não chegou a viver para descobrir que o próprio Tribunal renunciaria, em 2010, à apreciação judiciária dos atos do governo que o aposentou da Justiça e da Universidade. E que a democracia atual está ligada ao fato de que, formalmente, não se necessita mais da ditadura - a renúncia judicial é voluntária.
Quanto a mim, encontro no texto sinais inquietantes de negacionismo no tocante ao passado recente do Brasil: a ditadura militar.
Creio que o renomado jurista está corretíssimo em afirmar que "aqueles 20 anos de governo militar" não foram apenas anos de chumbo. O tributarista não chega a tratar do tema, porém se deve lembrar que o governo autoritário tinha um braço militar e outro civil. Não se trata apenas do partido governista, a ARENA. Sem o apoio milionário do empresariado, a repressão política e a propaganda governamentais não teriam sido tão eficientes.
O chumbo não era a única arma do regime, de forma alguma. Os meios de comunicação engajados no autoritarismo cumpriram bem sua tarefa de louvar generais e arenistas e de condenar ou silenciar - uma espécie de complemento jornalístico do pau-de-arara - os opositores.
Um dos dedos desse braço civil eram os juristas militantes do regime autoritário. Na época, atuavam para negar o caráter ditatorial do governo, criando uma fumaça de "estado de direito" para embaçar a visão do povo brasileiro e da sociedade internacional.
E o que dizer daqueles que afirmam terem sido contrários a ditadura, mas hoje diminuem ou negam os crimes daquele regime? Esses não estão, mesmo involuntariamente, a colaborar com a nostalgia das fardas?
Infelizmente, foi exatamente isso que o célebre tributarista fez ontem. Ele escreveu, no artigo publicado pela Folha, que o Supremo Tribunal Federal "então constituído de notáveis juristas, nunca se curvou ao Poder Executivo, e este nunca pressionou o pretório excelso."
Fica vilipendiada, portanto, a memória de três dos maiores juristas brasileiros, que foram afastados do Supremo Tribunal Federal por meio do Ato Institucional nº 5 (de 13 de dezembro de 1968): Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal foram aposentados compulsoriamente com base neste artigo:
Art. 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo.
§ 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo, assim como empregado de autarquias, empresas públicas ou sociedades de economia mista, e demitir, transferir para a reserva ou reformar militares ou membros das polícias militares, assegurados, quando for o caso, os vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço.
A aposentadoria compulsória veio em 1969, com base no artigo 9º do AI 5, que também suspendeu o habeas corpus. Não havia direito de defesa contra os atos arbitrários da presidência; como em outros AI, impedia-se a apreciação judicial de "todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos." (art. 11).
O Supremo Tribunal já havia sido atingido pelas medidas de exceção. Por meio do artigo 6º do AI 2, de 27 de outubro de 1965, a ditadura havia aumentado a composição do Supremo Tribunal Federal em mais cinco Ministros: foi a forma que Castello Branco encontrou para intervir na Corte - desde 1964 a chamada "linha dura" pressionava para que houvesse modificação na composição do STF, a despeito dos protestos do Ministro Ribeiro da Costa, então Presidente da Corte (ele morreria em 1967, antes do AI 5).
Alguns anos depois, Costa e Silva percebeu que a medida não tinha sido suficiente, pois os novos Ministros não agiam como partidários do governo (também Ives Gandra da Silva Martins comenta esse fato em artigo que escreveu com Arnoldo Wald, "As nomeações para o STF", na Folha de S.Paulo de 30 de março de 2006), e que, segundo os consideranda do AI 5, "os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la".
A natureza essencialmente ilegal da ditadura militar revelou-se também nesse momento: nem mesmo o direito de exceção criado pelo regime era cumprido pelo poder.
Com o afastamento dos três Ministros, pediram aposentadoria Antonio Gonçalves de Oliveira, o presidente do Tribunal, e Lafayette de Andrada; dessa forma, o STF voltou a ter 11 membros, o que foi referendado pelo artigo 1º do AI 6, de 1º de fevereiro de 1969. O AI 6 também interveio reduzindo a competência do Tribunal, para que não julgasse habeas corpus em crimes políticos.
Emília Viotti em O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania erroneamente afirma que os três Ministros foram aposentados a partir do AI 6. Esse engano já foi esclarecido outras vezes; o Ministro Luiz Gallotti, por exemplo, declarou para Osvaldo Trigueiro do Vale, em O Supremo TRibunal Federal e a instabilidade político-institucional: "Aquelas três aposentadorias não se seguiram ao Ato Institucional n. 6 (1-2-1969). Foram anteriores a esse Ato e baseadas no Ato Institucional n. 5."
A Corte já estava enquadrada e com a competência reduzida, o que talvez seja um dos motivos de sua jurisprudência contrária aos direitos humanos na década de 1970, que tive a oportunidade de estudar em minha tese.
Seria adequado considerar que aquele que nega a memória e a verdade sobre o período é um ex-combatente da ditadura?
Em outros textos, Ives Gandra da Silva Martins parece desconhecer que houve a Guerrilha do Araguaia, afirmando que a guerrilha, "de rigor", terminou em 1971. Claro que, se nunca existiu, ela não poderia ter deixado desaparecidos... E as Forças Armadas nada teriam a explicar.
O absurdo histórico de afirmar que o projeto de lei de anistia "foi amplamente negociado" foi referendado pelo insigne tributarista, ao elogiar o julgamento do STF, em abril de 2010, favorável à lei de anistia aprovada no governo de Figueiredo.
No último artigo publicado pela Folha pelo destacado tributarista, também se lê que a OAB lutou pela democracia, o que, no entanto, somente é verdade a partir da década de 1970. Antes disso, os juristas que advogavam em favor de presos polítcos não costumavam encontrar guarida na instituição, nem mesmo nomes como Sobral Pinto, Heleno Fragoso e Evaristo de Morais Filho - presos após a aprovação do AI 5. A OAB calou-se, na época, a respeito desse ato institucional. E ela, assim como outras instituições, não havia se oposto ao golpe militar. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que foi mais corajosa, percebeu antes o caráter autoritário do regime e protestou contra o AI 5.
De que forma explicar tais erros? Como o douto jurista, em artigo contrário à Comissão da Verdade (que investigaria os crimes da ditadura militar), recentemente chegou mesmo a atribuir a Rawls um livro que este nunca escreveu ("Direito e democracia" é o título da tradução brasileira de um original de Habermas, Faktizität und Geltung), creio que o tema lhe provoca fortes emoções (afinal, ele viveu essa época) e chega a lhe obnubilar, em certos instantes, o saber jurídico e histórico tão louvado entre os tributaristas.
Lembro agora de meu favorito entre os grandes juristas brasileiros do passado, em palestra de 1980 (o que explica o cuidado em chamar o golpe de revolução):
Naqueles primeiros anos da Revolução de 1964 não havia, em algumas áreas do Governo, a nítida compreensão - ou aceitação - de que o papel do Supremo Tribunal Federal não era interpretar as normas constitucionais, institucionais ou legais de acordo com o pensamento ou interesse revolucionário, mas interpretá-las consoante o seu próprio entendimento. Havia reservas, menos ou mais explícitas, à independência do Judiciário [...]
Mais tarde, certamente, o sistema jurídico da Revolução se foi desdobrando para cobrir a superfície até então ocupada pelo direito anterior, que era de inspiração liberal. E também se ampliaram as situações em relação às quais ficou obstada a apreciação judiciária de atos do Governo. (LEAL, Victor Nunes. Problemas de Direito Público e outros problemas. Brasília: Imprensa Nacional, 1999, vol. II, p. 267-268)
Ele não chegou a viver para descobrir que o próprio Tribunal renunciaria, em 2010, à apreciação judiciária dos atos do governo que o aposentou da Justiça e da Universidade. E que a democracia atual está ligada ao fato de que, formalmente, não se necessita mais da ditadura - a renúncia judicial é voluntária.
segunda-feira, 14 de março de 2011
"Há mais poetas que homens" e o fascínio atropelador pela máquina
A alma encantadora das ruas continua a ser um livro encantador. João do Rio recolhe suas crônicas sobre o Rio de Janeiro do início do século XX, que era, evidentemente, uma outra cidade.
Acho que o caráter especial (tantas vezes mistificado) da cultura carioca vinha de contatos menos segregacionistas entre as diferentes classes. No Rio de Janeiro, ainda hoje, encontram-se favelas nas "áreas nobres": Vidigal, Pavãozinho, Rocinha... A segregação, em termos territoriais, ocorre de forma diferente do que acontece no Município de São Paulo.
Em outras épocas, Tom Jobim, rapaz de classe média, pôde ter contato com músicos populares; Villa-Lobos, também. Esses intercâmbios entre classes dinamizaram a cultura carioca.
Como as fronteiras internas da cidade cesceram dramaticamente, interditando ainda mais territórios de um grupo a outros grupos, creio que se pode dizer que Rio de Janeiro não há mais, naquele sentido antigo, mesmo com tudo de ilusório que aquela integração apresentava. A sociabilidade do bunker talvez esteja a conformar o novo caráter do carioca.
Escrevo isto, no entanto, não por causa da cidade, mas por causa de poetas. Em um dos momentos mais interessantes do livro (que deve ser lido, aconselho, na edição da Crisálida, com o notável trabalho de pesquisa de Oséias Silas Ferraz), João do Rio visita a prisão e começa a crônica com uma frase que, para muitos, ainda hoje, não é nada óbvia: "O criminoso é um homem como outro qualquer."
João do Rio teme os condenados cínicos, porém. O que ele vai pesquisar? A poesia feita pelos presos. Afinal, todos fariam versos no Brasil. Para mostrar a humanidade dessas pessoas, cita diversos versos dos presidiários; alguns eram repentistas.
A crônica é "Versos de presos", de 1905. Ele a conclui descrevendo um encontro com poeta (livre) no bonde. É um jovem escritor que chama os poetas velhos de "animais" e prossegue a diatribe querendo condená-los juridicamente: "Este país está todo errado. Há mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelo menos, ali, com castigos corporais uma vez por mês!"
João do Rio termina: "Mal sabia ele que a Detenção já estava cheia."
A frase é terrível. Alguns poetas brasileiros não chegariam nem mesmo à condição humana? Estariam abaixo dela? Desconheço. Certo é que muitos não chegam à condição de leitores, nem mesmo de poesia.
Trata-se de casos em que o fascínio por si mesmo estende-se às suas próprias produções, mesmo as poéticas, mas não chega à poesia (talvez porque suas produções em versos, elas mesmas, não atinjam o estatuto de poesia).
Esse descaso pela arte não pode ser verificado nos autores que se engajaram no livro POA 2502, que reúne diversas formas: conto, poema, foto, cartum... O livro, disponível gratuitamente na internet, foi produzido em resposta ao atropelamento coletivo de ciclistas da Massa Crítica em Porto Alegre, que aconteceu em 25 de fevereiro deste ano.
A escritora Ana Rüsche, uma das editoras, convidou-me para participar com algo, mas eu nada tinha e não consegui produzir no prazo de três dias. Divulgo a iniciativa, porém, aqui.
Alguns dos escritores, como Eduardo Sterzi, enviaram textos já publicados alhures (um dos momentos mais fortes de Aleijão - a fronteira da cidade é desenhada no corpo a chutes). Outros, entre os quais se inclui Renan Nuernberger, produziram especialmente para o projeto.
O poema de Nuernberger confirma as características que pude ler na sua poesia: ele conhece a história da literatura e escreve com um olhar de crítico literário. Além de citar a expressão popular que acabou em música, "Nóis capota mais num breca" (poetas que só leem poesia podem ser humanos, mas tendem a ser chatos...) faz uma analogia entre o deslumbramento de Marinetti pela máquina e o "macho alfa" atropelador.
É possível que o horizonte do fascismo seja comum às duas figuras.
O fascínio atropelador pela máquina? João do Rio certamente não iria intitular, hoje, se vivo fizesse suas incursões pela cidade, seu livro de "A alma encantadora das ruas". Entre 1905 e 2011, surgiram na cidade os personagens motorizados de Rubem Fonseca, que desejam tirar algo essencial do direito à cidade, a circulação, dos que não podem (e há os que podem e não querem, o que irritou certa jornalista, conservadora, de periódico de São Paulo) adquirir os caros motores do transporte individual.
A segregação entre as classes manifesta-se também na mobilidade urbana. E há, mesmo ao volante, mais máquinas do que homens.
Acho que o caráter especial (tantas vezes mistificado) da cultura carioca vinha de contatos menos segregacionistas entre as diferentes classes. No Rio de Janeiro, ainda hoje, encontram-se favelas nas "áreas nobres": Vidigal, Pavãozinho, Rocinha... A segregação, em termos territoriais, ocorre de forma diferente do que acontece no Município de São Paulo.
Em outras épocas, Tom Jobim, rapaz de classe média, pôde ter contato com músicos populares; Villa-Lobos, também. Esses intercâmbios entre classes dinamizaram a cultura carioca.
Como as fronteiras internas da cidade cesceram dramaticamente, interditando ainda mais territórios de um grupo a outros grupos, creio que se pode dizer que Rio de Janeiro não há mais, naquele sentido antigo, mesmo com tudo de ilusório que aquela integração apresentava. A sociabilidade do bunker talvez esteja a conformar o novo caráter do carioca.
Escrevo isto, no entanto, não por causa da cidade, mas por causa de poetas. Em um dos momentos mais interessantes do livro (que deve ser lido, aconselho, na edição da Crisálida, com o notável trabalho de pesquisa de Oséias Silas Ferraz), João do Rio visita a prisão e começa a crônica com uma frase que, para muitos, ainda hoje, não é nada óbvia: "O criminoso é um homem como outro qualquer."
João do Rio teme os condenados cínicos, porém. O que ele vai pesquisar? A poesia feita pelos presos. Afinal, todos fariam versos no Brasil. Para mostrar a humanidade dessas pessoas, cita diversos versos dos presidiários; alguns eram repentistas.
A crônica é "Versos de presos", de 1905. Ele a conclui descrevendo um encontro com poeta (livre) no bonde. É um jovem escritor que chama os poetas velhos de "animais" e prossegue a diatribe querendo condená-los juridicamente: "Este país está todo errado. Há mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelo menos, ali, com castigos corporais uma vez por mês!"
João do Rio termina: "Mal sabia ele que a Detenção já estava cheia."
A frase é terrível. Alguns poetas brasileiros não chegariam nem mesmo à condição humana? Estariam abaixo dela? Desconheço. Certo é que muitos não chegam à condição de leitores, nem mesmo de poesia.
Trata-se de casos em que o fascínio por si mesmo estende-se às suas próprias produções, mesmo as poéticas, mas não chega à poesia (talvez porque suas produções em versos, elas mesmas, não atinjam o estatuto de poesia).
Esse descaso pela arte não pode ser verificado nos autores que se engajaram no livro POA 2502, que reúne diversas formas: conto, poema, foto, cartum... O livro, disponível gratuitamente na internet, foi produzido em resposta ao atropelamento coletivo de ciclistas da Massa Crítica em Porto Alegre, que aconteceu em 25 de fevereiro deste ano.
A escritora Ana Rüsche, uma das editoras, convidou-me para participar com algo, mas eu nada tinha e não consegui produzir no prazo de três dias. Divulgo a iniciativa, porém, aqui.
Alguns dos escritores, como Eduardo Sterzi, enviaram textos já publicados alhures (um dos momentos mais fortes de Aleijão - a fronteira da cidade é desenhada no corpo a chutes). Outros, entre os quais se inclui Renan Nuernberger, produziram especialmente para o projeto.
O poema de Nuernberger confirma as características que pude ler na sua poesia: ele conhece a história da literatura e escreve com um olhar de crítico literário. Além de citar a expressão popular que acabou em música, "Nóis capota mais num breca" (poetas que só leem poesia podem ser humanos, mas tendem a ser chatos...) faz uma analogia entre o deslumbramento de Marinetti pela máquina e o "macho alfa" atropelador.
É possível que o horizonte do fascismo seja comum às duas figuras.
O fascínio atropelador pela máquina? João do Rio certamente não iria intitular, hoje, se vivo fizesse suas incursões pela cidade, seu livro de "A alma encantadora das ruas". Entre 1905 e 2011, surgiram na cidade os personagens motorizados de Rubem Fonseca, que desejam tirar algo essencial do direito à cidade, a circulação, dos que não podem (e há os que podem e não querem, o que irritou certa jornalista, conservadora, de periódico de São Paulo) adquirir os caros motores do transporte individual.
A segregação entre as classes manifesta-se também na mobilidade urbana. E há, mesmo ao volante, mais máquinas do que homens.
quarta-feira, 9 de março de 2011
Brasil entre esquecimento e derrota: as sinfonias de Villa-Lobos
No dia 5 de março, fui ver o curto programa do Coro e da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, com duas obras completamente dissemelhantes, unidas apenas tematicamente (mas não por tema musical, e sim "literário") na celebração de vitórias em guerra: La Bataille, de Janequin, do século XVII, para coro a capella, e a Sinfonia n. 4 - A vitória de Villa-Lobos, que não tem coro, mas necessita de um efetivo instrumental tão grande que a OSESP teve de ser reforçada pela Banda Sinfônica.
O subtexto era francamente francófilo: Janequin celebrou uma vitória dos franceses contra os milaneses (e seus mercenários suíços) em Marignan, e a Marselhesa é citada por Villa-Lobos em sua sinfonia inspirada pela 1a. Guerra Mundial.
Além da desorganização da Sala de São Paulo, que só abriu um de seus portões para a multidão, o que gerou uma fila enorme e fez vários entrarem depois do último sinal, o início do concerto foi marcado pelo que corresponde à concepção que um maestro ordinariamente pode ter de "diálogo": um monólogo em que ele detém o microfone e todos os outros só ficam a escutar.
Assim Karabtchevsky caracterizou sua fala: diálogo. E pensei que, se algum ocorria, era com o tempo: sim, pois não era esse o maestro que, para a Diapason na versão brasileira (revista muito boa, que lamentei desaparecer), no número de julho/agosto de 2006, disse que a OSESP não era a melhor orquestra brasileira, e sim a "melhor orquestra dos países do Leste europeu"? Não era esse o maestro que já caracterizou as sinfonias de Villa-Lobos como algo menos interessante na obra desse compositor?
Ele falava com o tempo, que o mudou para melhor. O maestro também aproveitou a oportunidade para elogiar a plateia de São Paulo com palavras análogas às que já vi usar algumas vezes no Rio de Janeiro (sobre o público carioca, claro), e já o fez em Porto Alegre.
Há algo de belo, porém, em considerar que a melhor plateia é aquela que temos diante de nós: o elogio do presente. Aí também havia um diálogo com o tempo, e não demagogia, claro.
Sua adesão às sinfonias de Villa-Lobos também não me parece, de forma alguma, oportunismo suscitado pelo convite do diretor artístico da OSESP para gravá-las, e sim fruto de uma redescoberta do autor, que vem ocorrendo mais de cinco décadas depois de sua morte. Até Willy Corrêa de Oliveira, depois de algumas décadas, conseguiu descobrir que Villa-Lobos é um grande compositor!
Não sei o que levou o diretor artístico da orquestra à aparentemente estranha decisão de escolher um maestro cujas interpretações de Villa-Lobos já foram contestadas (refiro-me à integral das Bachianas), e que nunca interpretou as sinfonias. Mistérios da arte. Talvez a integral planejada das sinfonias venha, de fato, a ocorrer e até ser boa. Vejam que a melhor gravação da Tosca , ópera de Puccini, foi realizada com uma cantora que nem gostava do papel. A arte consegue manifestar-se nos locais mais inesperados.
O que deve ser apontado como duvidoso, em toda essa empreitada, é a propaganda oficial da OSESP de que finalmente as sinfonias seriam intepretadas com as partituras corrigidas.
Sendo as instituições brasileiras tudo o que são e ainda menos, não temos, em geral, edições confiáveis da obra de Villa-Lobos, isso para as peças editadas. É claro que a pressa e a falta de organização do compositor colaboraram para o quadro, mas as décadas que se passaram desde a sua morte deveriam ter dado tempo para um cuidado muito mais efetivo. O descaso e também o ódio do Brasil à própria memória são, de fato, históricos.
Lembro de Gilberto Mendes dizendo que Villa é maior do que o Brasil. Frase muito boa, embora contraditória: ele é maior, sendo ele mesmo parte do país? Entendo a frase desta forma: ele é muito maior do que o Brasil oficial e institucional (e ele só foi em parte institucionalizado por seus defeitos) e, por isso, a primeira gravação integral das sinfonias foi realizada por um maestro estadunidense com uma orquestra alemã: Carl St. Clair regeu a Orquestra Sinfônica da Rádio SWR de Stuttgart para a gravadora CPO.
Esses discos eram relativamente fáceis de achar no Brasil, embora não tenham sido lançados aqui - as geniais gravadoras (aliás, as multinacionais do disco que operam no Brasil) provavelmente não viram relevância para o mercado brasileiro em primeiras gravações de obras do maior compositor nacional...
O diretor artístico da OSESP não ignora, evidentemente, que essa integral já foi gravada (em um exemplo que a melhor saída para a grande música brasileira continua a ser o aeroporto), mas afirma que o trabalho da OSESP será o primeiro a partir de uma edição "revisada e definitiva".
Curiosa afirmativa, cujo sentido não consigo apreender por dois motivos: em primeiro lugar, achar que teremos uma revisão "definitiva" com a OSESP parece muito ingênuo (se a probidade de Nestrovski não fosse tão conhecida, poderia se achar que se trata de puro marketing). Afinal, sempre haverá lugar para novas decisões e novas intepretações sobre como devem ser lidos os manuscritos e as partituras de Villa-Lobos.
Em segundo, pessoas ingênuas podem achar que St. Clair gravou Villa-Lobos sem ter feito o indispensável trabalho musicológico, e que só a OSESP é que tomará tal medida. Nada disso! Dou-me o trabalho de citar as declarações do maestro na edição de novembro de 2009 da revista Concerto:
Tal é o estado em que foram deixadas as partituras. O maestro Roberto Duarte, conhecido intérprete de Villa-Lobos, tem realizado também um exaustivo trabalho de revisão das partituras desse compositor.
A OSESP conseguirá, apesar desses sinais contraditórios enviados à imprensa, realizar uma boa integral das sinfonias? Apostemos que sim, seria uma derrota para o Brasil não conseguir gravar essa música; seria manter o esquecimento em que o país deixou essas partituras. E tal esquecimento nega o diálogo com o tempo.
Lembro do breve concerto de sábado. Mas não vou me referir à interpretação da Sinfonia, e sim à peça de Janequin, que não soou de forma ideal (creio que Naomi Munakata, a regente titular do Coro, teria feito ainda melhor do que Karabtchevsky). Depois das onomatopeias (em que Janequin é mestre, mestre: ouçam o Canto dos pássaros!) retratando os ruídos da batalha, o texto termina com "Victoire au noble roy Françoys/ Escampe toute frelore bigot."
Ora, a frase "Escampe toute frelore bigot", que tem, entre outros sentidos, o de "Foge, tudo está perdido, carola" (bigot vem do normando do século XII e significa "por Deus", e logo virou insulto em francês; o verso é genialmente polissêmico, pois também alude a uma dança) ficou perdida entre as vozes: a vitória não soou como deveria.
Ouçam estes grandes músicos, realmente vitoriosos.
O subtexto era francamente francófilo: Janequin celebrou uma vitória dos franceses contra os milaneses (e seus mercenários suíços) em Marignan, e a Marselhesa é citada por Villa-Lobos em sua sinfonia inspirada pela 1a. Guerra Mundial.
Além da desorganização da Sala de São Paulo, que só abriu um de seus portões para a multidão, o que gerou uma fila enorme e fez vários entrarem depois do último sinal, o início do concerto foi marcado pelo que corresponde à concepção que um maestro ordinariamente pode ter de "diálogo": um monólogo em que ele detém o microfone e todos os outros só ficam a escutar.
Assim Karabtchevsky caracterizou sua fala: diálogo. E pensei que, se algum ocorria, era com o tempo: sim, pois não era esse o maestro que, para a Diapason na versão brasileira (revista muito boa, que lamentei desaparecer), no número de julho/agosto de 2006, disse que a OSESP não era a melhor orquestra brasileira, e sim a "melhor orquestra dos países do Leste europeu"? Não era esse o maestro que já caracterizou as sinfonias de Villa-Lobos como algo menos interessante na obra desse compositor?
Ele falava com o tempo, que o mudou para melhor. O maestro também aproveitou a oportunidade para elogiar a plateia de São Paulo com palavras análogas às que já vi usar algumas vezes no Rio de Janeiro (sobre o público carioca, claro), e já o fez em Porto Alegre.
Há algo de belo, porém, em considerar que a melhor plateia é aquela que temos diante de nós: o elogio do presente. Aí também havia um diálogo com o tempo, e não demagogia, claro.
Sua adesão às sinfonias de Villa-Lobos também não me parece, de forma alguma, oportunismo suscitado pelo convite do diretor artístico da OSESP para gravá-las, e sim fruto de uma redescoberta do autor, que vem ocorrendo mais de cinco décadas depois de sua morte. Até Willy Corrêa de Oliveira, depois de algumas décadas, conseguiu descobrir que Villa-Lobos é um grande compositor!
Não sei o que levou o diretor artístico da orquestra à aparentemente estranha decisão de escolher um maestro cujas interpretações de Villa-Lobos já foram contestadas (refiro-me à integral das Bachianas), e que nunca interpretou as sinfonias. Mistérios da arte. Talvez a integral planejada das sinfonias venha, de fato, a ocorrer e até ser boa. Vejam que a melhor gravação da Tosca , ópera de Puccini, foi realizada com uma cantora que nem gostava do papel. A arte consegue manifestar-se nos locais mais inesperados.
O que deve ser apontado como duvidoso, em toda essa empreitada, é a propaganda oficial da OSESP de que finalmente as sinfonias seriam intepretadas com as partituras corrigidas.
Sendo as instituições brasileiras tudo o que são e ainda menos, não temos, em geral, edições confiáveis da obra de Villa-Lobos, isso para as peças editadas. É claro que a pressa e a falta de organização do compositor colaboraram para o quadro, mas as décadas que se passaram desde a sua morte deveriam ter dado tempo para um cuidado muito mais efetivo. O descaso e também o ódio do Brasil à própria memória são, de fato, históricos.
Lembro de Gilberto Mendes dizendo que Villa é maior do que o Brasil. Frase muito boa, embora contraditória: ele é maior, sendo ele mesmo parte do país? Entendo a frase desta forma: ele é muito maior do que o Brasil oficial e institucional (e ele só foi em parte institucionalizado por seus defeitos) e, por isso, a primeira gravação integral das sinfonias foi realizada por um maestro estadunidense com uma orquestra alemã: Carl St. Clair regeu a Orquestra Sinfônica da Rádio SWR de Stuttgart para a gravadora CPO.
Esses discos eram relativamente fáceis de achar no Brasil, embora não tenham sido lançados aqui - as geniais gravadoras (aliás, as multinacionais do disco que operam no Brasil) provavelmente não viram relevância para o mercado brasileiro em primeiras gravações de obras do maior compositor nacional...
O diretor artístico da OSESP não ignora, evidentemente, que essa integral já foi gravada (em um exemplo que a melhor saída para a grande música brasileira continua a ser o aeroporto), mas afirma que o trabalho da OSESP será o primeiro a partir de uma edição "revisada e definitiva".
Curiosa afirmativa, cujo sentido não consigo apreender por dois motivos: em primeiro lugar, achar que teremos uma revisão "definitiva" com a OSESP parece muito ingênuo (se a probidade de Nestrovski não fosse tão conhecida, poderia se achar que se trata de puro marketing). Afinal, sempre haverá lugar para novas decisões e novas intepretações sobre como devem ser lidos os manuscritos e as partituras de Villa-Lobos.
Em segundo, pessoas ingênuas podem achar que St. Clair gravou Villa-Lobos sem ter feito o indispensável trabalho musicológico, e que só a OSESP é que tomará tal medida. Nada disso! Dou-me o trabalho de citar as declarações do maestro na edição de novembro de 2009 da revista Concerto:
Nós tínhamos um time de cinco bibliotecários e assistentes, cuja única responsabilidade era me apresentar as discrepâncias entre as grades da orquestra e as partes de cada instrumento. Em algumas sinfonias havia literalmente entre 20 e 30 páginas de contradições, a respeito das quais eu tive que decidir.
Tal é o estado em que foram deixadas as partituras. O maestro Roberto Duarte, conhecido intérprete de Villa-Lobos, tem realizado também um exaustivo trabalho de revisão das partituras desse compositor.
A OSESP conseguirá, apesar desses sinais contraditórios enviados à imprensa, realizar uma boa integral das sinfonias? Apostemos que sim, seria uma derrota para o Brasil não conseguir gravar essa música; seria manter o esquecimento em que o país deixou essas partituras. E tal esquecimento nega o diálogo com o tempo.
Lembro do breve concerto de sábado. Mas não vou me referir à interpretação da Sinfonia, e sim à peça de Janequin, que não soou de forma ideal (creio que Naomi Munakata, a regente titular do Coro, teria feito ainda melhor do que Karabtchevsky). Depois das onomatopeias (em que Janequin é mestre, mestre: ouçam o Canto dos pássaros!) retratando os ruídos da batalha, o texto termina com "Victoire au noble roy Françoys/ Escampe toute frelore bigot."
Ora, a frase "Escampe toute frelore bigot", que tem, entre outros sentidos, o de "Foge, tudo está perdido, carola" (bigot vem do normando do século XII e significa "por Deus", e logo virou insulto em francês; o verso é genialmente polissêmico, pois também alude a uma dança) ficou perdida entre as vozes: a vitória não soou como deveria.
Ouçam estes grandes músicos, realmente vitoriosos.
domingo, 6 de março de 2011
Rui Manuel Amaral e o cosmopolitismo do desterro
Recebi Doutor Avalanche (Angelus Novus, 2010) de Rui Manuel Amaral em fevereiro deste ano. Antes disso, eu havia lido entrevista, também de 2011, que um outro jovem ficionista português concedera a jornal brasileiro. Esse escritor explicava que seus romances raramente se passavam em Portugal, pois a sua geração tinha trazido um "lado internacional" que faltaria à literatura portuguesa, que, agora sim, poderia ser exportada!
Não é a primeira nem a última vez que se usa a linguagem das commodities para falar de literatura. Foi-me instrutivo descobrir, no entanto, que a literatura portuguesa, marcada pelo exílio (Jorge de Sena), não era antes "internacional", o que certamente fez com que Lobo Antunes e até Saramago não sejam conhecidos alhures (nem Pessoa, que é uma geração ainda mais arcaica e comia dobradas à moda do Porto em vez de Burger Prince).
É interessante que tal geração proponha ajudar a balança de pagamentos portuguesa. No entanto, a postura do jovem ficionista luso e internacionalista pode ser considerada velha e provinciana. Lembro de quando, no Brasil, não havia mercado editorial e, sufocados por uma cultura francófila, os jovens escritores brasileiros do século XIX e início do XX sonhavam em publicar em Paris; muitos livros eram impressos lá, em razão da inexistência de uma verdadeira indústria editorial no Brasil. Mas não eram lidos na Europa.
Nesse mundo editorial onírico, os livros teriam que evitar qualquer brasileirismo ou referência ao Brasil. Isso é provinciano.
O provincianismo revela-se na rendição suplicante aos grandes centros conjugada à negação da geografia, da cultura, da língua - por exemplo, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida escreveram uma peça insignificante diretamente em francês, e Villa-Lobos fez cantar ainda na Semana de Arte Moderna umas chansons nada memoráveis que escreveu.
Villa-Lobos e Oswald de Andrade encontrariam suas formas de inventar o Brasil (mas não Guilherme de Andrade, com seu ilegível Raça).
Rui Manuel Amaral, autor que eu não havia lido antes, parece-me "internacional" por outro motivo: ele pertence a uma família espiritual de escritores cujo humor oblíquo desloca o leitor para uma zona excêntrica que simultaneamente afirma e nega o mundo. Lendo esses autores, somos sempre jogados ao estrangeiro e sem passaportes. Em vez de escreverem a partir da ambição de serem aceitos por Paris e Nova Iorque, fazem-no a partir de um desterro universal, que talvez seja a forma de cosmopolitismo mais adequada para a literatura.
Imaginem o que teria feito um escritor comum de ficção científica com isto:
Logo estaríamos em contato com a antimatéria e abduções de seres pós-galácticos. Já um seguidor de Paulo Coelho descobriria a ação de espíritos oriundos de dimensões aparentemente sutis do universo. Rui Amaral prefere a literatura, que ora vê, ora deixa de ver.
Esse procedimento, paradoxalmente, deixa a escrita próxima do absurdo cotidiano. Não pude deixar de lembrar de Monterroso, que também discordava do mundo em ficções curtas.
Uma história exemplar é a de Christoph Robbé, que perdeu todos os dentes em um só dia. O escritor não perde tempo em explicar como e por quê ocorre a debandada odontológica - seria vulgar neste contexto, bem como um sinal de apego à ciência ou à providência.
E assim se foram, para mais longe ainda, ciência e providência. Ficamos só com a literatura: "Sozinha em casa, a língua deu sete pulos de contente." (p. 82).
P.S.: Rui Manuel Amaral escreve também aqui.
Não é a primeira nem a última vez que se usa a linguagem das commodities para falar de literatura. Foi-me instrutivo descobrir, no entanto, que a literatura portuguesa, marcada pelo exílio (Jorge de Sena), não era antes "internacional", o que certamente fez com que Lobo Antunes e até Saramago não sejam conhecidos alhures (nem Pessoa, que é uma geração ainda mais arcaica e comia dobradas à moda do Porto em vez de Burger Prince).
É interessante que tal geração proponha ajudar a balança de pagamentos portuguesa. No entanto, a postura do jovem ficionista luso e internacionalista pode ser considerada velha e provinciana. Lembro de quando, no Brasil, não havia mercado editorial e, sufocados por uma cultura francófila, os jovens escritores brasileiros do século XIX e início do XX sonhavam em publicar em Paris; muitos livros eram impressos lá, em razão da inexistência de uma verdadeira indústria editorial no Brasil. Mas não eram lidos na Europa.
Nesse mundo editorial onírico, os livros teriam que evitar qualquer brasileirismo ou referência ao Brasil. Isso é provinciano.
O provincianismo revela-se na rendição suplicante aos grandes centros conjugada à negação da geografia, da cultura, da língua - por exemplo, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida escreveram uma peça insignificante diretamente em francês, e Villa-Lobos fez cantar ainda na Semana de Arte Moderna umas chansons nada memoráveis que escreveu.
Villa-Lobos e Oswald de Andrade encontrariam suas formas de inventar o Brasil (mas não Guilherme de Andrade, com seu ilegível Raça).
Rui Manuel Amaral, autor que eu não havia lido antes, parece-me "internacional" por outro motivo: ele pertence a uma família espiritual de escritores cujo humor oblíquo desloca o leitor para uma zona excêntrica que simultaneamente afirma e nega o mundo. Lendo esses autores, somos sempre jogados ao estrangeiro e sem passaportes. Em vez de escreverem a partir da ambição de serem aceitos por Paris e Nova Iorque, fazem-no a partir de um desterro universal, que talvez seja a forma de cosmopolitismo mais adequada para a literatura.
Imaginem o que teria feito um escritor comum de ficção científica com isto:
Um clarão vindo de lado nenhum e - zás! - Marcus Kottkamp desapareceu. Assim sem mais.
Tudo isso se passou num brevíssimo instante, por volta das dezoito horas e quarenta minutos. Nunca se conseguiu descobrir que coisa foi aquela e, sobretudo, o que veio a ser feito de Marcus Kottkamp. Ora vemos uma pessoa, ora deixamos de a ver. (p. 99)
Logo estaríamos em contato com a antimatéria e abduções de seres pós-galácticos. Já um seguidor de Paulo Coelho descobriria a ação de espíritos oriundos de dimensões aparentemente sutis do universo. Rui Amaral prefere a literatura, que ora vê, ora deixa de ver.
Esse procedimento, paradoxalmente, deixa a escrita próxima do absurdo cotidiano. Não pude deixar de lembrar de Monterroso, que também discordava do mundo em ficções curtas.
Uma história exemplar é a de Christoph Robbé, que perdeu todos os dentes em um só dia. O escritor não perde tempo em explicar como e por quê ocorre a debandada odontológica - seria vulgar neste contexto, bem como um sinal de apego à ciência ou à providência.
Chegou, por fim, a noite, mas também não trouxe nada de bom. Sobrava um único dente. Um triste, desolado e solitário canino do lado direito. Foi quando ocorreu aquele clarão branco. E o dente voou, de alma tão leve como sombra de borboleta, para muito longe. (p. 48)
E assim se foram, para mais longe ainda, ciência e providência. Ficamos só com a literatura: "Sozinha em casa, a língua deu sete pulos de contente." (p. 82).
P.S.: Rui Manuel Amaral escreve também aqui.
quinta-feira, 3 de março de 2011
Poesia argentina, resenhas do Hamlet, princípios e rupturas
Eu escrevi neste blogue uma nota de leitura sobre a antologia Si Hamlet duda le daremos morte: Antología de poesía selvaje (City Bell: De la talita dorada, 2010). Ela inclui poetas argentinos que nasceram dos anos 1960 em diante.
Hoje enviaram-me uma resenha publicada na Argentina, que, como as outras que li, não dá a ver. César Vallejo nela é citado, mas não os poemas da antologia, como se não fosse isso que interessasse.
Esse procedimento é estranho, mas não incomum. Para muitos jornalistas, de fato, certamente os poemas não são o que lhes interessa, e sim a lista dos mais vendidos, a propaganda febril e incessante dos suportes eletrônicos de leitura, os hábitos sexuais de poetas, suicídios de escritores, disputas na academia de letras etc. A literatura passa ao largo desse noticiário.
As outras resenhas que li também ignoraram os poemas e se concentraram na apresentação e no prefácio, isto é, apenas nas declarações de princípios e rupturas (no caso, principalmente a briga com o neoobjetivismo). Elas pouco importarão, no entanto, se a poesia não for boa.
Eu acho que a poesia é boa, por isso escrevi esta resenha para o Amálgama, tentando dar a ver como esses novos autores estão a escrever.
Dar a ver, donner à voir: expressão que João Cabral de Melo Neto tomou de título de livro de Éluard (sobre pintura) para expressar o que pretendia com sua poesia.
Acho que o "dar a ver" também deveria ser uma função da crítica. Sei que não consegui fazê-lo bem, pois não pude analisar detidamente cada poeta, ou alguns deles. Apenas tratei o livro como o recorte de uma geração e tentei mostrar o que significa esse recorte, e verificar nele a marca de Bolaño, poeta e prosador que marcou também os argentinos, como neste poema de Lorena Fernández Soto, que não citei na resenha, mas o faço agora, fechando esta nota, por me parecer um bom retrato desse grupo de poetas:
por donde pasábamos
con los pájaros americanos
explotando en plazas urbanas
como esos recortes que decía Bolaño
de miles de muchos dedos flotando en el aire (p. 109)
Memória como reserva de mercado, parte IV: Guias turísticos com diploma
O projeto que deseja regulamentar a profissão de historiador, Projeto de Lei do Senado nº 368, continua em trâmite em Comissões do Senado.
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou em dois de março de 2011 o parecer do Senador Flexa Ribeiro, que lembra que a justificativa do autor do projeto, Senador Paulo Paim, era
Eles podem atuar nessas áreas, certamente; mas por que somente eles deveriam nelas trabalhar? Trata-se da criação da reserva de mercado, almejada pelo malfadado projeto.
Praticando a difícil arte de não conseguir tirar consequências lógicas dos fundamentos expostos, o Senador Flexa Ribeiro prossegue:
Que relação tem isto com o turismo, o desenvolvimento de produtos e as telenovelas? Disso, o Senador conclui:
Apenas este parágrafo. Um só. É claro que, se o nobre Senador fosse escrever mais e fazer realmente alguma análise da matéria que lhe coube relatar, a conclusão teria que ser contrária. É notável a ligeireza no trato da Constituição (em uma comissão, nota-se, dedicada ao direito constitucional), mas é comum que, no Poder Legislativo, os pareceres sejam sumários a esse pronto, de tão concentrado e conciso é o respeito à constitucionalidade.
Eu havia escrito sobre a atuação dos historiadores como consultores dos meios de comunicação, mas a Comissão foi favorável a retirar a expressão, nos termos da emenda do Senador Álvaro Dias, "em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de Televisão" do inciso II artigo quarto do projeto porque "excessivamente detalhista e enumeratório, o que depõe contra a generalidade, clareza e precisão da norma." Terá sido caso do lobby das tevês?
O sumário parecer do Senador Cristovam Buarque (na Comissão de Assuntos Sociais, que não deliberou ainda) também segue a emenda para, "retirar elementos que poderiam, no futuro, impedir os historiadores de exercer plenamente suas atribuições, razão pela qual deve ser acatada." Isto é, não limitar a campo algum essa reserva.
Falta ainda aprovação nas Comissões de Assuntos Sociais e de Educação. Depois, se isso ocorrer, ainda terá que seguir à Câmara dos Deputados.
Por que esse monstrengo regulatório não deve ser aprovado? Deve-se lembrar que tudo que tem natureza social possui caráter histórico. A amplitude do projeto em criar reserva de mercado para os diplomados em história é tamanha que poderá fazer com que os doutores em letras, na área de concentração de teoria e história da literatura, sejam impedidos de lecionar história da literatura por não terem feito o doutorado em história. Um doutor em artes não poderia, por exemplo, dar consultoria sozinho para uma exposição sobre o surrealismo; teria que pedir para um formado qualquer em história assinar com ele o trabalho. E assim por diante.
Outro elemento risível dos pareceres do Legislativo é apontar que haveria um dano ao país se pessoas não formadas em história atuassem nessa área. Isso é fundamental porque, sem afirmar tal enormidade, ter-se-ia que reconhecer que o projeto é inconstitucional, já que o princípio geral é o da liberdade de profissão.
Pergunto, portanto: que prejuízos nos causou Evaldo Cabral de Mello, que nunca concluiu um curso de graduação? Que historiador diplomado no Brasil é melhor do que ele? Que danos ao nosso país provocou Alberto da Costa e Silva?
Será que os historiadores que inspiraram esse projeto estão simplesmente querendo eliminar a concorrência de profissionais mais capazes? Conseguindo, com uma canetada legislativa, impedir que outros possam vasculhar o campo comum da memória? E existem ladrões maiores do que aqueles que se apossam do comum?
Os doutos legisladores que estão aprovando em comissões o projeto simplesmente ignoram que significativa parte da melhor história no país não é ou não foi feita por diplomados nessa área?
Esse projeto não está realmente preocupado nem um pouco com a qualidade da história no Brasil, e sim com a reserva de mercado, que vai se meter até com os profissionais de turismo - já que até mesmo a elaboração de guias turísticos precisarão da consultoria de diplomados em história...
A profunda ignorância na matéria, claro, é o que habilita os nobres legisladores a aprovarem projetos corporativos como esse. Com tal natureza corporativa, poderia não ser nocivo ao bem comum?
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou em dois de março de 2011 o parecer do Senador Flexa Ribeiro, que lembra que a justificativa do autor do projeto, Senador Paulo Paim, era
[...] a ampliação da área de atuação dos historiadores inicialmente restrita à pedagogia, a questões culturais e ao patrimônio histórico. Hoje esses profissionais atuam, entre outras áreas, no âmbito industrial, na consultoria relativa ao histórico de produtos; no turismo, desenvolvendo roteiros turísticos para visitas a locais históricos e culturais; na comunicação, recolhendo e organizando informações para publicação e produções e nas artes, fazendo pesquisa de época para elaboração de roteiros teatrais, cinematográficos e televisivos.
Eles podem atuar nessas áreas, certamente; mas por que somente eles deveriam nelas trabalhar? Trata-se da criação da reserva de mercado, almejada pelo malfadado projeto.
Praticando a difícil arte de não conseguir tirar consequências lógicas dos fundamentos expostos, o Senador Flexa Ribeiro prossegue:
A doutrina constitucional e trabalhista defende a não ingerência excessiva do legislador no exercício das profissões. Regras excessivas e restrições insensatas acabam beneficiando pequenos grupos corporativos que acabam supervalorizando o próprio trabalho em relação ao trabalho de igual valor de outros profissionais. São consideradas exceções as atividades que envolvem a saúde, a segurança e a educação dos cidadãos. Nesses casos, a omissão do legislador pode permitir que pessoas inabilitadas, no exercício profissional, coloquem em risco valores, objetos ou pessoas.
Que relação tem isto com o turismo, o desenvolvimento de produtos e as telenovelas? Disso, o Senador conclui:
No caso dos historiadores é inegável que eles exercem um papel relevante na sociedade, com impactos culturais e educativos capazes de ensejar a presença de normas regulamentadoras do exercício profissional. Ademais, a inexistência de uma regulamentação pode permitir que o campo de atividade desses profissionais seja ocupado por pessoas de outras áreas, muitas delas, com profissões regulamentadas, mas sem as qualificações necessárias para levar a bom termo o trabalho com objetos e assuntos históricos.
Apenas este parágrafo. Um só. É claro que, se o nobre Senador fosse escrever mais e fazer realmente alguma análise da matéria que lhe coube relatar, a conclusão teria que ser contrária. É notável a ligeireza no trato da Constituição (em uma comissão, nota-se, dedicada ao direito constitucional), mas é comum que, no Poder Legislativo, os pareceres sejam sumários a esse pronto, de tão concentrado e conciso é o respeito à constitucionalidade.
Eu havia escrito sobre a atuação dos historiadores como consultores dos meios de comunicação, mas a Comissão foi favorável a retirar a expressão, nos termos da emenda do Senador Álvaro Dias, "em empresas, museus, editoras, produtoras de vídeo e de CD-ROM, ou emissoras de Televisão" do inciso II artigo quarto do projeto porque "excessivamente detalhista e enumeratório, o que depõe contra a generalidade, clareza e precisão da norma." Terá sido caso do lobby das tevês?
O sumário parecer do Senador Cristovam Buarque (na Comissão de Assuntos Sociais, que não deliberou ainda) também segue a emenda para, "retirar elementos que poderiam, no futuro, impedir os historiadores de exercer plenamente suas atribuições, razão pela qual deve ser acatada." Isto é, não limitar a campo algum essa reserva.
Falta ainda aprovação nas Comissões de Assuntos Sociais e de Educação. Depois, se isso ocorrer, ainda terá que seguir à Câmara dos Deputados.
Por que esse monstrengo regulatório não deve ser aprovado? Deve-se lembrar que tudo que tem natureza social possui caráter histórico. A amplitude do projeto em criar reserva de mercado para os diplomados em história é tamanha que poderá fazer com que os doutores em letras, na área de concentração de teoria e história da literatura, sejam impedidos de lecionar história da literatura por não terem feito o doutorado em história. Um doutor em artes não poderia, por exemplo, dar consultoria sozinho para uma exposição sobre o surrealismo; teria que pedir para um formado qualquer em história assinar com ele o trabalho. E assim por diante.
Outro elemento risível dos pareceres do Legislativo é apontar que haveria um dano ao país se pessoas não formadas em história atuassem nessa área. Isso é fundamental porque, sem afirmar tal enormidade, ter-se-ia que reconhecer que o projeto é inconstitucional, já que o princípio geral é o da liberdade de profissão.
Pergunto, portanto: que prejuízos nos causou Evaldo Cabral de Mello, que nunca concluiu um curso de graduação? Que historiador diplomado no Brasil é melhor do que ele? Que danos ao nosso país provocou Alberto da Costa e Silva?
Será que os historiadores que inspiraram esse projeto estão simplesmente querendo eliminar a concorrência de profissionais mais capazes? Conseguindo, com uma canetada legislativa, impedir que outros possam vasculhar o campo comum da memória? E existem ladrões maiores do que aqueles que se apossam do comum?
Os doutos legisladores que estão aprovando em comissões o projeto simplesmente ignoram que significativa parte da melhor história no país não é ou não foi feita por diplomados nessa área?
Esse projeto não está realmente preocupado nem um pouco com a qualidade da história no Brasil, e sim com a reserva de mercado, que vai se meter até com os profissionais de turismo - já que até mesmo a elaboração de guias turísticos precisarão da consultoria de diplomados em história...
A profunda ignorância na matéria, claro, é o que habilita os nobres legisladores a aprovarem projetos corporativos como esse. Com tal natureza corporativa, poderia não ser nocivo ao bem comum?
quarta-feira, 2 de março de 2011
A Casa de Rui Barbosa e o despejo intelectual
Sei que há mais poetas do que homens, como eloquentemente escreveu João do Rio; afinal, vários poetas não alcançam o estatuto da humanidade. Devo acrescentar que, mesmo entre os poetas humanos, pouquíssimos podem, como Ronald Polito, ser também intelectuais, e com a mesma relevância atingida no trabalho literário.
Não esqueço, claro, do múltiplo trabalho de Polito como tradutor: é que considero que a tradução pertence à sua atividade intelectual (uma vez que feita com o rigor e a precisão devidos), ou também à de poeta, quando traduz poesia.
A sua discrição superlativa faz com que ele ainda seja, na poesia brasileira, um segredo para muitos (a poesia, ela mesma, é o segredo dito a todos). Mas leiam Terminal. E ouçam-no.
Tenho a sorte de conhecê-lo. Não escrevo por causa dessa sorte, e sim em razão de texto que escreveu na revista Sibila sobre a Casa de Rui Barbosa, que foi atacada pelo seu possível futuro presidente, Emir Sader.
Polito escreveu um lúcido texto sobre as estranhas considerações do possível futuro presidente, que nelas deixa bem claro que não conhece a instituição, o que, obviamente, qualifica-o sobremaneira para o cargo!
Polito tratou da entrevista que o famigerado sociólogo deu ao jornal O Globo. Incansável no périplo pelos grandes veículos de comunicação, concedeu outra a Folha de S.Paulo, publicada em 27 de fevereiro deste ano, que causou também perplexidades. Em momento que revela padrões alternativos de ética, atacou a Ministra a que provavelmente estará subordinado. Isso também causou polêmica.
Gostaria apenas de escrever que a postura do possível futuro presidente da Casa de Rui Barbosa (jurista e político que ele nem mesmo cita), nesse caso, foi a antítese do que se espera de um intelectual. Ele afirma que as atividades da Casa não têm "transcendência"; reconhecendo que não tem muita ideia do que ocorre lá, afirma entretanto que elas não "chegaram" até ele.
É postura de um intelectual esperar que a informação caminhe em sua direção? Trata-se da ética de um pesquisador? Não é arrogante pretender que o conhecimento se ofereceria para nós, talvez já etiquetado com a categoria teórica pertinente? Não é desprezar o duro trabalho dos pesquisadores que investigam os arquivos da Casa? Já tive alunos que pensavam assim, mas nenhum deles foi aprovado.
Ninguém se engane: a pesquisa em Humanidades também é difícil, mesmo prescindindo de microscópios caríssimos e de aceleradores de partículas. Um documento valioso poderá passar por mero papel velho para um leigo, mas um estudioso identificará nele um original de Vivaldi; um historiador, com estudos de paleografia, será capaz de ler o que são meros garranchos para um leigo.
Polito bem ressalta: "Sobre a pesquisa mesmo, que é o que mais importa em minha opinião, ele pouco tem a dizer."
Outro problema: como opinar sobre algo (uma instituição pública) que não se conhece? Não faz parte do código de ética da academia (válido até para professores, claro...) estudar antes de dar alguma opinião? Ainda mais se as declarações tiverem circulação pública em jornais? Que padrões de seriedade intelectual são esses? Tive também alunos que julgavam poder profetizar (profetas são ventríloquos do divino, não precisam consultar livros) sobre os mais diversos temas das matérias e da eternidade - é sempre mais fácil fazer isso do que estudar. Curiosamente, esses também não passaram. Talvez porque o professor fosse um infiel.
Como é deseducativa a entrevista do provável futuro presidente da Casa de Rui! Uma prova do grau de importância que a pesquisa e a memória têm para a atual administração federal está no fato de que ele ainda possa pretender e receber o cargo.
Acabaria de escrever, mas inesperadamente cai da estante um livro que a Casa de Rui Barbosa publicou em 2007, A pastoral de Santa Rita Durão (número 52 da Coleção Papeis Avulsos), que teve estabelecimento de texto e posfácio de Ronald Polito.
Trata-se de pastoral contra os jesuítas que Santa Rita Durão (mais conhecido pelos vestibulandos como autor do poema Caramuru) escreveu e o então bispo de Leiria assinou para agradar o Marquês de Pombal. Cito o livro para que mais pessoas "cheguem" até os trabalhos da Casa. Conta Polito sobre o clérigo carreirista e ignorante:
P.S.: O Ministério da Cultura informou há pouco que ele, já ex-futuro presidente, não será nomeado.
Não esqueço, claro, do múltiplo trabalho de Polito como tradutor: é que considero que a tradução pertence à sua atividade intelectual (uma vez que feita com o rigor e a precisão devidos), ou também à de poeta, quando traduz poesia.
A sua discrição superlativa faz com que ele ainda seja, na poesia brasileira, um segredo para muitos (a poesia, ela mesma, é o segredo dito a todos). Mas leiam Terminal. E ouçam-no.
Tenho a sorte de conhecê-lo. Não escrevo por causa dessa sorte, e sim em razão de texto que escreveu na revista Sibila sobre a Casa de Rui Barbosa, que foi atacada pelo seu possível futuro presidente, Emir Sader.
Polito escreveu um lúcido texto sobre as estranhas considerações do possível futuro presidente, que nelas deixa bem claro que não conhece a instituição, o que, obviamente, qualifica-o sobremaneira para o cargo!
Polito tratou da entrevista que o famigerado sociólogo deu ao jornal O Globo. Incansável no périplo pelos grandes veículos de comunicação, concedeu outra a Folha de S.Paulo, publicada em 27 de fevereiro deste ano, que causou também perplexidades. Em momento que revela padrões alternativos de ética, atacou a Ministra a que provavelmente estará subordinado. Isso também causou polêmica.
Gostaria apenas de escrever que a postura do possível futuro presidente da Casa de Rui Barbosa (jurista e político que ele nem mesmo cita), nesse caso, foi a antítese do que se espera de um intelectual. Ele afirma que as atividades da Casa não têm "transcendência"; reconhecendo que não tem muita ideia do que ocorre lá, afirma entretanto que elas não "chegaram" até ele.
É postura de um intelectual esperar que a informação caminhe em sua direção? Trata-se da ética de um pesquisador? Não é arrogante pretender que o conhecimento se ofereceria para nós, talvez já etiquetado com a categoria teórica pertinente? Não é desprezar o duro trabalho dos pesquisadores que investigam os arquivos da Casa? Já tive alunos que pensavam assim, mas nenhum deles foi aprovado.
Ninguém se engane: a pesquisa em Humanidades também é difícil, mesmo prescindindo de microscópios caríssimos e de aceleradores de partículas. Um documento valioso poderá passar por mero papel velho para um leigo, mas um estudioso identificará nele um original de Vivaldi; um historiador, com estudos de paleografia, será capaz de ler o que são meros garranchos para um leigo.
Polito bem ressalta: "Sobre a pesquisa mesmo, que é o que mais importa em minha opinião, ele pouco tem a dizer."
Outro problema: como opinar sobre algo (uma instituição pública) que não se conhece? Não faz parte do código de ética da academia (válido até para professores, claro...) estudar antes de dar alguma opinião? Ainda mais se as declarações tiverem circulação pública em jornais? Que padrões de seriedade intelectual são esses? Tive também alunos que julgavam poder profetizar (profetas são ventríloquos do divino, não precisam consultar livros) sobre os mais diversos temas das matérias e da eternidade - é sempre mais fácil fazer isso do que estudar. Curiosamente, esses também não passaram. Talvez porque o professor fosse um infiel.
Como é deseducativa a entrevista do provável futuro presidente da Casa de Rui! Uma prova do grau de importância que a pesquisa e a memória têm para a atual administração federal está no fato de que ele ainda possa pretender e receber o cargo.
Acabaria de escrever, mas inesperadamente cai da estante um livro que a Casa de Rui Barbosa publicou em 2007, A pastoral de Santa Rita Durão (número 52 da Coleção Papeis Avulsos), que teve estabelecimento de texto e posfácio de Ronald Polito.
Trata-se de pastoral contra os jesuítas que Santa Rita Durão (mais conhecido pelos vestibulandos como autor do poema Caramuru) escreveu e o então bispo de Leiria assinou para agradar o Marquês de Pombal. Cito o livro para que mais pessoas "cheguem" até os trabalhos da Casa. Conta Polito sobre o clérigo carreirista e ignorante:
O bispo de Leiria, que Canais considerava um "verdadeiro lobo no rebanho do Senhor!" [...] e Fortunado de Almeida avaliava como "homem de péssimo caráter e avesso a todos os escrúpulos" [...], ainda que tivesse uma biblioteca com mais de 11 mil volumes, era praticamente ignorante, mesmo tendo título de doutor em leis pela Universidade de Coimbra. (p. 35)
P.S.: O Ministério da Cultura informou há pouco que ele, já ex-futuro presidente, não será nomeado.
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