O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou protesto: "Nabucco", de Verdi (30 dias de Ópera: dia 28)

Nabucco foi a terceira ópera de Verdi, e a que salvou a carreira do grande compositor, e possivelmente o prestígio da ópera italiana no século XIX, tendo em vista o silêncio voluntário de Rossini, a loucura de Donizetti e a morte precoce de Bellini.
Verdi vinha de um fracasso profissional, a ópera Un giorno di regno, escrita em uma época de calamidade pessoal, em que perdeu a esposa, Margherita Barezzi, e os dois filhos. Nabucco representou uma retomada vigorosa em termos de carreira, bem como para a vida pessoal: ela foi estrelada (o papel principal não é realmente o do personagem que dá título à ópera, mas o de sua formidável antagonista, sua filha adotiva e ex-escrava Abigaille) por sua futura companheira, Giuseppina Strepponi.
Na época da estreia, 1842, e ainda por muitos anos, o Estado italiano, tal como existe hoje, não existia ainda, mas o movimento para a unificação política já estava presente. Verdi representou uma importante face musical dessa campanha; o seu próprio nome se tornou sigla para Vitor Emanuel Rei De Itália.
Esta ópera sobre os judeus escravizados na Babilônia possui um coro de clara ascendência belliniana que, para as plateias italianas, representava sua própria aspiração à pátria: "Va, pensiero", invadida por, entre outros, os austríacos.
Nesta cena do libreto de Temistocle Solera, o pensamento dos judeus, desterrados e cativos, vai para a pátria, tão bela e perdida.
Vejam esta tradução para o português: https://www.youtube.com/watch?v=KMBZ58zJwBM
A partitura pode se baixada desta ligação: http://www1.cpdl.org/wiki/images/4/46/Ws-verd-vap.pdf
Trata-se de um daqueles trechos de ópera que praticamente todo mundo já ouviu; Verdi tem ao menos mais dois deles, o Brinde de La Traviata e "La donna è mobile" de Rigoletto.
No caso deste coro, seu papel político na insurreição dos italianos contra a dominação estrangeira contou muito para a popularidade, além da beleza melódica. Na já distante época em que os liberais no Brasil queriam parecer pessoas refinadas, e não revelar-se meros aliados da teocracia e das milicias, consortes voluntários do fascismo, o extinto PL usava esse coro como vinheta musical.
Dito isso, tratava-se não de música escrita para a elite, e sim para as massas.  Rossini, diante do fenômeno de popularidade do Nabucco, comentou que os coros se pareciam com árias a quatro vozes.
A escrita coral, de fato, é muito simples. Em boa parte do tempo, as quatro vozes estão cantando em uníssono sobre o acompanhamento orquestral:

Sopranos e contraltos estão cantando a mesma linha na mesma altura, os tenores e o baixos, a mesma linha uma oitava abaixo.
A partitura segue assim, em uníssono para as vozes. A divisão chega quando a melodia principal vai para o agudo. Os contraltos se diferenciam dos sopranos e tem um intervalo descendente (uma quarta), e os baixos também descem (uma oitava): dó, sol e mi, todos sustenidos (a tonalidade é fá sustenido maior). Sopranos e tenores dividem-se em terças: a linha mais grave mantem o dó, a mais aguda vai para o mi (uma nota bem confortável, por sinal, para essas vozes). Os baixos repetem a nota dó, porém grave, e os contraltos, um sol:



Perto do fim, quando se chega ao ré sustenido agudo, duas vezes em "pati" (vejam a sílaba "ti", a primeira do sistema abaixo), todas as vozes cantam a mesma nota, contraltos e baixos na mesma oitava de sopranos e tenores respectivamente.


Verdi, com essa escrita coral em que o uníssono faz-se tão presente (à diferença de outras peças que compôs para coro), conferiu a esta peça o caráter de hino.
Não, porém, um hino do Estado, mas uma peça que pode ser usada contra ele. Por exemplo, nesta apresentação de Nabucco em 2011, no Scala de Milão, o grande regente Riccardo Muti, depois da apresentação do coro, profere um discurso contra o governo de Berlusconi e seus cortes na cultura: https://www.youtube.com/watch?v=the9_fs1Za0.
Depois, ele rege o coro e o público, que cantam juntos esta música, que tem todo o poder de um hino  que não é o do Estado, mas do coletivo que o entoa para unir-se e identificar-se por meio de um símbolo sonoro de reivindicação ou revolta.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera (Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff)
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou ópera: Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff (30 dias de ópera: Dia 27)

A lenda de Don Juán originou diversas obras musicais, como o balé de Gluck e o poema sinfônico de Richard Strauss. Sua versão literária mais antiga é de Tirso de Molina, a peça El Burlador de Sevilla y convidado de piedra, que faz o protagonista definir-se nestes termos:
Sevilla a voces me llama
el Burlador, y el mayor
gusto que en mí puede haber
es burlar una mujer
y dejalla sin honor. 
O apelo da história do sedutor nobre e assassino que é arrastado ao Inferno pela estátua do pai de uma das nobres que ele tentou estuprar chegou ao gênero operístico. Leio em ensaio de Jeremy Gray que somente em 1787, ano de estreia da ópera de Mozart, outras três foram compostas sobre a mesma história, e Lorenzo Da Ponte teria fortemente se inspirado no libreto que Giovanni Bertati meses antes escreveu para Gazzaniga, e até mesmo o compositor austríaco teria encontrado alguns rumos a seguir na música do italiano, eis que há similaridades. Por sinal, o tenor que cantou o primeiro Don Ottavio na ópera de Mozart interpretou Don Giovanni na de Gazzaniga.
O Don Giovanni, de Mozart e do libretista Lorenzo da Ponte, é uma obra-prima tão impressionante,  a "ópera das óperas" para alguns, que arrastou para o subterrâneo suas predecessoras. Ela tem tudo; o céu, nesta oração feita por Donna Elvira, Donna Anna e Don Ottavio antes de entrarem disfarçados no baile oferecido por Don Giovanni: https://www.youtube.com/watch?v=kNS_7TjsxMU; o inferno: https://www.youtube.com/watch?v=7cb1QmTkOAI;  o povo, no noivado de Zerlina e Masetto: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=2202; os nobres, aqui Donna Anna lamentando sobre o corpo de seu pai, o Comendador, com seu noivo, Don Ottavio: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=903; situações bem humanas, como a surra que Masetto leva de Don Giovanni à noite: https://youtu.be/Hnd5ULYG2no?t=6260; o sobrenatural, como a voz fantasmagórica da estátua do Comendador respondendo a Leporello e Don Giovanni: https://youtu.be/XINUIzWriMQ?t=138;  o cômico, na lista das bem mais de mil mulheres conquistadas que Leporello apresenta a Donna Elvira, a traída e abandonada esposa de Don Giovanni: https://youtu.be/dUW_lFGXti4?t=1798; o trágico no apelo de Donna Anna para que seu noivo a vingue: https://youtu.be/dUW_lFGXti4?t=3377. Tudo, magnificamente expresso em música. Como retomar o assunto depois?
Nesses casos, o melhor é fazer algo muito diferente. A única ópera de Erwin Schulhoff, Flammen ("Chamas") parte de outra fonte literária, a peça Don Juan de Karel Josef Benes, que lhe foi sugerida por Max Brod. Benes elaborou o libreto e Brod traduziu-o para o alemão, leio no ensaio de Josef Bek para a gravação de estúdio regida por John Mauceri para a coleção Entartete Musik da extinta gravadora London ("Música degenerada", dedicada a obras proibidas pelos nazistas; uma nota: lembro que, quando as políticas nazistas da secretaria de cultura de Bolsonaro foram desveladas no início de 2020, houve gente que dissesse, muito absurdamente, que só a música popular era considerada degenerada pelos alemães; fiquei muito chocado com essa posição, de um negacionismo histórico antissemita e/ou antissocialista e/ou antimodernista, que atinge Schönberg, Krenek, Eisler, Alban Berg e tantos outros músicos).
Flammen estreou em 1932 em Brno; o compositor nunca mais a veria, pois a montagem alemã foi impedida pelo nazismo, que mais tarde mataria o compositor, assassinado no campo de concentração de Wülzburg.
Ela dialoga, com estilos musical e teatral muito diferentes, com a obra de Mozart. Don Giovanni existe em um clima onírico. Ao contrário do que acontece na ópera de Mozart, ele consuma sexualmente suas conquistas. Em outra notável diferença, não há muito humor aqui. Nunca a vi, talvez nunca tenha sido montada no Brasil.
A ópera começa com as vozes das Sombras, que são femininas e estão presentes em quase todas as cenas. As referências pertencem à gravação de 1994, regida por Mauceri, com Kurt Westi e Iris Vermillion nos papéís de Don Juán e La Morte. Jane Eaglen canta a Mulher, a Freira, Margarethe e Donna Anna.
Don Juán faz sexo com uma mulher que pede para ser ferida e ter o sangue bebido; as Sombras repetem "sangue" ("Blut"): https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=661. Ele, no entanto, quer finalmente conhecer a morte; entendiam-no as diversas mulheres que se lhe oferecem: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=1056. Chega uma freira para perguntar se ele se arrepende dos pecados, mas ela ri quando ele pergunta sobre a alma: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=1238. Ele se depara com demônios; com estátuas de nobres e de ancestrais. A personagem La Morte aparece, mas ainda não fala. Está com outra mulher, que pressente nele pensamentos ruins. Ele a deixa. Ele se relaciona com Margarethe; mas La Morte chega, apaga a luz do dia e a assassina: https://youtu.be/SrjzqQpN7O4?t=3450; Juán não consegue proteger sua amada, pois não é possível matar a morte. Ele vai para a praia e dirige-se às ondas. No ato seguinte, baile de máscaras de carnaval: https://www.youtube.com/watch?v=MY71PqF6R-Q. Ele está com Donna Anna, que teme a reação do marido: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=685. Ele tenta raptá-la, mas ela resiste e o marido, o Comendador, chega e o desafia. Arlequim chama todos para verem o duelo. Don Juán mata-o, claro, e passa a dançar tango: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=944. Donna Anna suicida-se com a espada dele, afirmando que ela pertence a quem realmente ama e que, embora vivo, ele é a própria imagem da morte: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=1310. Na cena seguinte, ele está diante do corpo dela no caixão e lamenta. Ele tenta agarrar alguma das Sombras que dançam em torno; não tem êxito; La Morte aparece, ele a chama de noiva e cobre o cadáver de Anna, dizendo que ela não mais os atrapalhará, agora não passa de uma sombra como as outras. Ela se declara a Juán: (https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=2589), que lhe rasga o véu. Ele é o único homem que consegue ver a nudez da Morte e não recuar. No entanto, eles não podem ficar juntos: ele não se unirá à dança da morte pois foi condenado a viver para sempre. Don Juán resigna-se a continuar a sua vida de sedução: https://youtu.be/MY71PqF6R-Q?t=3001. Quando as chamas do amor e da morte se reunirão, pergunta La Morte no final.
Flammen passa-me a impressão de um poema sobre a proximidade e a incompatibilidade entre a morte e o desejo. Ficou como uma obra isolada, pois seu compositor, em razão do totalitarismo, da Guerra Mundial e do genocídio, não pôde voltar a escrever para o palco e foi morto anos depois, e a própria carreira desta singular obra-prima foi interrompida, ao contrário da ópera de Mozart, que jamais deixou de ser apresentada.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
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Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
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Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
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Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

Uma ópera que se tornou música: "O Anjo de Fogo", de Prokofiev (30 dias de ópera: Dia 26)

Evidentemente, se se trata de ópera, há música. Não necessariamente por todo o tempo, pois a obra pode conter várias seções de teatro falado, como no Singspiel alemão (A flauta mágica, de Mozart e Schikaneder, é um exemplo) ou no estilo da opéra comique francês (a Carmen, de Bizet, é o exemplo mais famoso).
Talvez seja algo simples para o ouvido (a melodia de "La donna è mobile", do Rigoletto de Verdi, pode ser aprendida em uma só audição, e ela é repetida no último ato da ópera), mas pode ser bastante complexa (como este conjunto vocal da crise do capital financeiro em Lulu, de Alban Berg).
Quando pensei neste tópico com título meio provocador, imaginei em óperas cuja música foi parar em outra peça musical.
Liszt fez suas paráfrases de ópera para o piano, como a do Rigoletto. Nessa época em que não havia gravações, uma forma de poder ouvir a música era tocando-a; certo é que nem todo mundo poderia tocar com a qualidade de Vladimir Horowitz o final de Tristão e Isolda de Wagner; https://www.youtube.com/watch?v=OvdQPMXerIE. Aqui, o próprio Rameau reaproveitou um tema de Les Indes Galanteshttps://www.youtube.com/watch?v=ShpQD4de-EI
Além disso, há o antigo procedimento de criar suítes instrumentais a partir dos temas das óperas, e assim poder apresentar a música sem a cena e os cantores.
Outra possibilidade é a música da ópera que o compositor tem dificuldade em encenar, ser aproveitada em uma sinfonia. Foi o que aconteceu com O Anjo de Fogo, com música e libreto de Serguei Prokofiev a partir de um roman à clef de Valery Bryusov. Ela estreou postumamente; o compositor consegiu que apenas alguns trechos fossem executados em concerto regido por Koussevtsky. Alguns de seus temas foram posteriormente aproveitados na Terceira Sinfonia.
Nunca vi esta ópera fascinante; eu a descobri nos anos 1980 graças à valorosa Rádio MEC do Rio de Janeiro.
Trata-se de uma história de possessão no século XVI. Um anjo de fogo, Madiel, apareceu a Renata quando criança. Ela vive obcecada por ele, que desapareceu depois que ele recusou fazer sexo com ela; Ruprecht ouve a história, excita-se e a assedia, mas ela o afasta. Renata quer saber o futuro, uma vidente vê sangue. Renata procura livros de magia para resolver seu problema. Ela crê ter encontrado Madiel encarnado no Conde Heinrich, que se esconde dela. Ruprecht chama o livreiro Glock para fornecer obras sobre cabala. Conseguem invocar demônios e ouvem batidas na porta. É muito linda a música do momento em que ela se desespera e cai no chão ao perceber que não conseguiu invocar o anjo, bem como o comentário de Ruprecht de que continuará a estudar magia. Ele vai atrás de Agrippa von Nettesheim, um personagem histórico. A música do entreato é intensa e parece conjurar os demônios que os personagens não conseguiram dominar. Ruprecht tenta arrancar segredos de magia de Agrippa, que mente (os esqueletos denunciam-no, porém) e nada revela. No terceiro ato, os dois estão em Colônia para buscar Heinrich. Ruprecht não consegue convencê-la de que o conde é um homem como qualquer outro. Ela conta que ele lhe disse que ela era demoníaca e exige que Ruprecht a desagrave. Ela reza para que ele apareça, e isso acontece! Ruprecht desafia-o para duelo, enquanto Renata canta seu amor por Heinrich (um papel mudo). Ela pede para que Ruprecht morra, mas não toque em Madiel... De fato, ele é quase morto no duelo. Com Ruprecht desfalecido, Renata sente-se apaixonada. Um coro feminino e os delírios do barítono ajudam a tornar a cena fantasmagórica. Ela passa a viver com o convalescente, mas o abandona depois que ele fica bem para vier em um mosteiro. Quando ela diz que há um demônio nele, fere-se, Fausto e Mefistófeles aparecem. Mefistófeles sente-se mal servido pelo menino garçom e o devora. O dono da taberna suplica para que devolvam o rapaz e isso é feito. Mefistófeles, vendo Ruprecht e sabendo que ele recebeu um fora, e lhe oferece sarcasticamente ajuda. Combinam ver-se no dia seguinte. A ópera termina no convento, onde Renata se interna, buscando paz interior; a Madre Superiora pergunta-lhe se acredita em demônios; coisas estranhas acontecem desde que chegou lá: visões, dedos que tocam as freiras no escuro, batidas na parede. O inquisidor foi chamado para exorcizar demônios. No entanto, diante dele, acaba acontecendo uma possessão coletiva das freiras! Mefistófeles, Fausto e Ruprecht aparecem na galeria. Ruprecht tenta alcançar Renata, mas é impedido por Mefistófeles. Parte das freiras avança contra o inquisidor, que proclama que ela teve intercurso carnal com o Demônio, e deve ser torturada e queimada.
Os exemplos que indiquei nas ligações vieram de uma produção inglesa encenada no Teatro Maryinsky com direção cênica de David Freeman e regência de Valery Gergiev. Galina Gorchakova interpretou Renata e Serguei Leiferkus, Ruprecht. A gravação ao vivo está disponível também em CD.
O Anjo de Fogo apresenta personagens dos mais alucinados de todo gênero histórico, confirma-o o barítono Laurent Naouri, que cantou Ruprecht. Apesar de todos os encantamentos, Prokofiev não teve sorte com a obra: ele a terminou em 1927, mas ela somente estreou em 1954, em Paris, no ano seguinte à morte do compositor, que morreu no mesmo dia que Stálin, sob cujo governo ele sofreu várias ameaças.



Só vi a Terceira Sinfonia em janeiro de 2013, pela Orquestra de Paris, naquela cidade. Também lá, poucas vezes essa música parece ser apresentada, apesar de ter estreado em Paris em 1929 sob a regência de Pierre Monteux. Somente em 1989 a Orquestra de Paris tocou-a pela primeira vez, sob a direção de Semyon Bychkov, e ela voltou a fazê-lo apenas em 2013, com Nicola Luisotti, nesse concerto em que Gil Shaham foi o solista do concerto para violino de Stravinsky. Não foi uma grande interpretação. O terceiro movimento, especialmente, não foi executado com clareza.
A abertura do primeiro movimento (Moderato) já traz o tema da obsessão de Renata. No segundo (Andante), mais calmo, ouve-se  música do Fausto. O terceiro movimento (Allegro agitato). parcialmente inspirado em Chopin, começa com música ouvida na cena de Renata tentando invocar espíritos. O final dele, porém, lembra o final da ópera. O último movimento, Andante mosso - Allegro agitato, termina com música da cena com Agrippa, tendo passado pela possessão no convento.
De acordo com Prokofiev, esta sinfonia correspondia a música pura e não dependia da ópera. Prefiro ouvir, porém, nesta música, uma possessão da sinfonia pelo drama da ópera, que lá permanece como um atraente horizonte de catástrofe.


30 dias de ópera: um desafio político
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Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
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Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
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Dia 30: Uma ópera de amanhã

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Desarquivando o Brasil CLXIII: Seminário 5 anos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": Lembrar, atualizar e propor




A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”, presidida por Adriano Diogo, foi a primeira a ser instalada no Brasil, em 2012, antes mesmo da Comissão Nacional. Nesse período, além dos relatórios parcial e final, publicou três livros (A sentença da Corte InteramericanaBagulhão: a voz dos presos políticos e Infância roubada) e realizou 157 audiências públicas. Todo esse material, com textos, documentos e vídeos, está disponível no portal http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/
Seminário 5 anos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”: Lembrar, atualizar e propor está previsto para o dia 13 de março de 2020 (data do aniversário do fim da Comissão), no Centro Universitário Maria Antônia, da Universidade de São Paulo, das 9 às 21 horas. A entrada será gratuita.
Assistam à chamada feita por Amelinha Teles: "Hoje o Brasil, mais do que nunca, precisa de memória, verdade e justiça. Mais do que nunca. É um momento de resistência e defesa da democracia. Não deixe de participar."
Em tempos de agudo retrocesso político, o legado e o imaginário da ditadura são hoje falseados para que sejam valorizados positivamente e sirvam de “legitimação” às ações autoritárias na política econômica e em todas as políticas sociais.
A negação do direito à justiça, à memória e à verdade assume um papel central, que se manifesta nas intervenções abusivas do governo federal na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, na Comissão de Anistia, no Grupo de Trabalho de Perus e, entre outras ações, nas ofensas públicas a mortos e desaparecidos políticos e a seus familiares.
Nesta conjuntura política, o legado das Comissões da Verdade, com suas recomendações de reformas institucionais, ações de memória e aprofundamento da democracia, deve ser recuperado pelos movimentos sociais e pelas lutas democráticas.
Em outro seminário que ajudei a organizar, dos 40 anos da Lei de Anistia, no mesmo Centro Universitário, Amelinha fez esta exata observação nesta mesa com Luíza Erundina e Eleonora Menicucci:
Eu pensei: mas quem está falando de desaparecido? Quem é que traz este tema pra pauta o tempo todo? É esse presidente que está aí. Vocês perceberam? Primeiro que o guru dele é o Ustra. O guru. Depois ele fala que o Fernando Santa Cruz, ele sabe como é que foi morto, o Fernando Santa Cruz, e que foi morto pela própria organização dele. Um absurdo. Isso é uma forma de explicar que a ditadura fez muito, que os nossos desaparecidos eram foragidos, ou então foram justiçados pelos próprios companheiros. Isso a gente ouviu há mais de cinquenta anos [...] É tão necessária essa discussão, eu pensei nesses quarenta anos assim: é a gente a gente lembrar para defender a democracia. Lembrar para resistir. Fico muito feliz de estar com as pessoas que estão dispostas a resistir também. A enfrentar isso, que não aceitam, que estão pelo menos indignadas com o que está acontecendo no país. 
A programação ainda não está completamente fechada; quando isso ocorrer, ela estará disponível nesta ligação: http://www.mariantonia.prceu.usp.br/seminario-comissao-da-verdade-do-estado-de-sao-paulo-5-anos-depois/.
Vivian Mendes, Renan Quinalha e eu, que trabalhamos na Comissão, falaremos de manhã. Sebastião Neto, do GT-13 da Comissão Nacional da Verdade, tratará da colaboração do empresariado com a ditadura, enfatizando o caso da Volskswagen. Alessandro Octaviani, do GT JK, falará sobre o assassinato de Juscelino Kubitschek no contexto da Operação Condor. Teremos também palestras de membros da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e do Ministério Público Federal sobre o que está a ocorrer com os mecanismos e instrumentos de memória, verdade e justiça. Entre os números culturais, haverá uma apresentação do Cabaré Feminista; uma versão abreviada da peça AI-5: uma reconstituição cênica; a performance de Fernanda Azevedo a partir da vida de Ana Rosa Kucinski; uma apresentação coral regida por Martinho Lutero.
À noite, teremos uma grande convidada.

Uma ópera que se tornou filme: "La serva padrona", de Pergolesi, por Carla Camuratti (30 dias de ópera: Dia 25)

Há obras-primas do cinema entre os filmes de ópera. Dos que vi, um dos que mais me impressionou foi A flauta mágica, a ópera de Mozart, segundo a visão de Ingmar Bergman. O cineasta adotou o ponto de vista do público, especialmente das crianças, sobre esta obra-prima para todas as idades. Além disso, a execução musical é excelente, com a regência do grande Eric Ericson. Alguns talvez não gostem de o libreto de Schikaneder ter sido traduzido para o sueco, mas é uma língua parente do alemão, as frases parecem estar sempre próximas do original.
Nem sempre os filmes contam com as melhores interpretações musicais. O primeiro que vi, no cinema, foi uma La Traviata (uma das mais conhecidas óperas de Verdi) com um soprano que reclamou ter estragado a voz tentando melhorar sua interpretação. De fato, essa disputa com a difícil partitura é audível, e é perdida no fim do primeiro ato; para piorar, a música foi cortada para o filme ficar mais curto.
Há tanto para escolher, decidi-me por uma obra única: o primeiro filme de ópera brasileiro, que ganhou o prêmio HBO em 1997, La serva padrona, dirigido por Carla Camuratti. A atriz e diretora já havia assumido um papel importante na chamada retomada do cinema brasileiro, com Carlota Joaquina, e ousou inaugurar um gênero cinematográfico no Brasil com seu segunda longa:


Esta é a folha de rosto do libreto, que custou nove reais na época. A ópera bufa, do compositor Giovanni Battista Pergolesi e do libretista Gennaro Antonio Federico, estreou em 1733 e constitui um exemplo notável da commedia dell'arte nos palcos líricos. Serpina é a criada que, criada por Uberto desde criança, resolve casar-se com ele e tornar-se patroa. Há outro criado, Vespone, um personagem mudo, que acaba por auxiliá-la (disfarçando-se de Capitão Tempestade) no plano para conquistar Uberto, que gosta dela, mas não quer reconhecer o afeto.
No filme de Camuratti os cantores são o soprano Sylvia Klein e o baixo-barítono José Carlos Leal, que participaram da montagem no teatro, que ela mesma dirigiu em Minas Gerais em 1996. A Orquestra de Câmara Sesiminas é regida por Sérgio Magnani. O papel de Vespone é interpretado por Thales Pan Chacon, que morreu logo depois e não pôde assistir à estreia. Nos créditos do filme e no libreto, a diretora do filme e ex-esposa do ator e bailarino deixou-lhe uma dedicatória in memoriam. Para suas cenas, o maestro criou uma linha de fagote como uma espécie de voz do personagem.
A ópera, que nasceu como um intermezzo para ser apresentado no intervalo de uma opera seria, tem uma duração curta. A diretora aumenta-a um pouco iniciando o filme com um pesadelo de Uberto com Serpina e, depois, uma divertida descrição das cenas: https://www.youtube.com/watch?v=KNQOO2kvilg
Vejam como a câmera emula a vivacidade da música nesta ária de Serpina, "Stizzoso, mio stizzoso" ("Birrento, meu birrento"): https://www.youtube.com/watch?v=36K7E8i2Zr0. O desembaraço de Sylvia Klein é contagiante.
Achei outro momento do filme, esta ária do personagem de José Carlos Leal, "Sempre incontrasti con te si sta" ("Sempre de picuinha contigo estou"; sigo a tradução do libreto, cujo autor ignoro): https://www.youtube.com/watch?v=SasguCfqqi4
No final, o dueto do martelinho do amor sela a felicidade do casal. Creio que Camuratti supera o desafio de filmar neste cenário único (há o sonho, a fantasia de Uberto sobre Serpina deixando a casa). Sua direção respira com a música, como ela mesma explicou no volume a ela dedicado na importante coleção Aplauso (Luz natural, por Carlos Alberto Mattos), e obedece a uma estruturação de ordem musical, o que não é comum ver nos filmes de ópera:
Uma das codificações básicas que estabeleci, junto com o Breno Silveira [o diretor de fotografia], foi rodar os recitativos com câmera parada, tripé e cortes secos, enquanto nas árias a câmera se deslocava, bailava, na mão ou em carrinhos. As pessoas podem não perceber isso, mas são embaladas por essa pontuação. 
Um filme rodado em oito dias, que contou com a "obediência", segundo a diretora, dos cantores de ópera, que estão acostumados à disciplina dura dos ensaios. No depoimento, ela conta que não é de Chacon a silhueta que rege a lua no fim, pois ele já havia falecido, e que foi um desafio deixar feio um ator que era reconhecidamente belo. Ela também insistiu que os cantores realmente cantassem suas partes nas árias, apesar da dublagem, o que contribui para a naturalidade do resultado. Não consigo ver esses filmes antigos que fazem o cantor apenas entreabrir a boca para notas que exigem muito mais esforço; imaginem cantar algo tão árduo quanto "Sempre libera" com um simples sorriso? Exige-se demais da suspensão de descrença.
Essa ópera gerou, após a morte precoce do compositor, e depois de apresentações na França na década de 1750, toda uma polêmica na música francesa conhecida como a Querelle des Bouffons, histórica disputa entre os defensores da ópera italiana (Rousseau, especialmente, que admirava esta obra cômica de Pergolsei) e os da ópera francesa. Um crítico, na época do lançamento do filme, não só criticou a própria ópera de Pergolesi como simplória e esquemática, opinião que me parece deixar de lado as convenções do gênero, como afirmou que a principal consequência estilística daquela Querela, a opéra comique, "está completamente esquecida".
A esse respeito, lembro da célebre Carta sobre a música francesa, de Rousseau, especialmente a passagem que repete sobre Pergolesi o que Cícero dizia de Homero, "significa ter progredido muito em arte, o fato de ter prazer em sua leitura". O filósofo suíço destaca o dueto "Lo conosco a quegl' occhietti" como "modelo de canto, de unidade, de melodia, de diálogo e de gosto a que nada faltará, quando for bem executado, salvo um público que saiba ouvi-lo". Para o filme de Camuratti, que chegou a oitenta mil espectadores com um número pequeno de cópias, creio que o público não faltou. O encanto da música de Pergolesi permanece.
Sobre a opéra comique, que acabou por colocar a antiga tragédia lírica francesa fora de moda: uma das óperas não exatamente olvidadas que foram compostas nesse formato, que combina números musicais e diálogos falados, é a Carmen de Bizet. Cheguei a pensar em escolher para este tópico a Carmen de Carlos Saura, com Laura del Sol e Antonio Gades, em que a música da ópera chega a aparecer, mas esta obra metalinguística tem mais que ver com o universo da dança. Um dos filmes realizados com base na ópera Carmen é o de Francesco Rossi, com Julia Migenes-Johnson no papel da protagonista e Plácido Domingo interpretando seu assassino. Vejam aqui o final da obra e percebam como foram longe as consequências estilísticas daquela ópera bufa: https://www.youtube.com/watch?v=BJSxleTXnJo.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Uma ópera que se tornou livro: "A Judia", de Halévy, e "Em busca do tempo perdido", de Proust (30 dias de ópera: Dia 24)

É muito comum livros virarem ópera; trata-se do caso de várias das mais populares, como La Traviata, La Bohème, Carmen, que vieram todas da ficção francesa: Alexandre Dumas Filho, Henry Murger, Prosper Mérimée. Em geral, a adaptação para o palco exige corte de cenas e outras adaptações.
Mesmo quando o libreto da ópera inspira-se em obra para o teatro falado, ou quando o próprio texto da peça é musicado; por exemplo, a peça Salomé, de Oscar Wilde, que exerceu tamanha impressão sobre Richard Strauss que ele simplesmente encomendou a tradução para o alemão, teve de ser parcialmente cortada porque cantar um texto leva mais tempo do que simplesmente o ler ou pronunciar; além disso, há as seções puramente instrumentais: especificamente nesta ópera, a famosa Dança dos Sete Véus.
O enredo pode mudar bastante, por sinal, nessa transição do livro para a música no palco. As diferenças entre as duas Carmens, a de Mérimée e a da ópera, são notáveis; não só o caráter da cigana muda, como o livro tem personagens que a ópera não tem e vice-versa. Para o público, no entanto, as duas obras comunicam-se de alguma forma, mantendo suas identidades próprias.
O caminho inverso, a ópera tornar-se livro, que foi o que achei interessante para estes trinta dias, também ocorre: Kierkegaard escreveu sobre Don Giovanni (ainda não li); Bernard Shaw, sobre O Anel do Nibelungo (é divertido). A metalinguagem pode se desdobrar: em Doutor Fausto de Thomas Mann, pouco antes da visita do Demônio, Adrian Leverkühn "lia o ensaio sobre o Don Giovanni de Mozart"; logo depois, sente um"golpe de frio cortante" e a visita esperada chega.
Resolvi, porém, escolher um outro exemplo da ficção francesa, À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido), a genial e monumental obra de Proust.
A Recherche tem, entre suas múltiplas facetas, a de rechercher, investigar, pesquisar: diversos trechos são ensaísticos, entre eles aqueles que tratam de música. Há personagens músicos, como o violinista Morel. Proust chega a tornar uma peça musical em personagem: a Sonata do compositor (ficcional) Vinteuil.
Há diversas menções à ópera, alguns personagens frequentam a Ópera de Paris. Sobressai, para mim, a personagem Rachel, que é apelidada segundo uma ária da ópera La Juive (A Judia), do compositor  Fromental Halévy (que era judeu) e do libretista Eugène Scribe, que estreou em 1835. A história se passa no século XV.
Eléazar, judeu, teve seus filhos queimados na fogueira da caridade cristã por ordem do Conde Brogni. Ele foge da Itália e, no caminho para a Suíça, resgata um bebê em uma casa incendiada e a cria: trata-se da judia do título, Rachel. Na verdade, ela é filha biológica de... Brogni, cuja família sofreu esse atentado, e que, mais tarde, é nomeado cardeal. É claro que um príncipe, Léopold, se apaixona por ela e finge ser um estudante judeu para conquistá-la; ele é amado pela princesa Eudoxia. Casamentos entre judeus e cristãos são proibidos. O disfarce de Léopold é descoberto por Rachel, ela o denuncia na corte, todos são presos, Eudoxia suplica para que ela, a judia, assuma toda a culpa para salvar o príncipe, ela acaba por consentir, mostrando-se superior a uma cristã. Brogni exige que Eléazar se converta ao cristianismo para salvar-se. Ele recusa e confidencia que sua filha não morreu no incêndio criminoso, e que sabe quem é o judeu que a salvou, mas morrerá sem revelá-lo. Sozinho, então, ele canta a famosa ária "Rachel, quand du Seigneur": se ele confessar a verdade, que Rachel não é sua filha, ele a salvará; mas não deverá fazê-lo: "eu dediquei minha vida inteira à tua felicidade, e sou eu, eu, eu, que te entrego ao carrasco".
No palco, podemos vê-la com o veterano tenor Neil Schicoff: https://www.youtube.com/watch?v=nrr0WJnL-GQ
Em concerto, com Roberto Alagna em sua primeira juventude: https://www.youtube.com/watch?v=8Zc03muelO8.
Eu ouvi essa ária pela primeira vez na voz de Enrico Caruso em um velho CD da RCA; embora "Una furtiva lagrima" e "Vesti la giubba" estivessem no mesmo disco, achei essa interpretação a mais forte daquele imenso tenor. Décadas depois (em 2018, creio), li a biografia escrita pela viúva, Dorothy Caruso. Ela conta que esta era a gravação de ária preferida pelo próprio cantor, e do último papel que ele aprendeu: https://www.youtube.com/watch?v=WTrtdJKlmOk
Eléazar ouve os cristãos gritando "morte aos judeus" e resolve não revelar o segredo. Ambos vão para a execução. Rachel apavora-se; Eléazar afirma-lhe que ela poderá salvar-se se converter ao cristianismo. Ela se recusa. Brogni pergunta a ele se sua filha perdida está viva; o judeu responde que sim. Ele quer saber onde, Eléazar mostra Rachel na fogueira: "Là voilà".
O Trovador, de Verdi, de 1853, traz outra dessas histórias em que a identidade do parente perdido do algoz é revelada no momento preciso em que ele é executado. Na história do Trovador, também temos racismo (contra os ciganos), fogueiras e um triângulo amoroso.
Na Recherche de Proust. Rachel aparece como uma jovem prostituta judia que é oferecida ao narrador, Marcel. Ele rejeita a oferta da cafetina, não sem apelidá-la de "Rachel quand du Seigneur", o ponto alto da famosa ópera. A cafetina não entende a alusão, mas acha uma graça a alusão blasfema.
La Juive é uma obra no estilo "Grand Opéra", típico do século XIX francês, com longa duração (cinco atos), balé e cenas espetaculares. A longa duração em Proust, no entanto, parece evocar mais Richard Wagner, com as frases longas de ambos, bem como o tratamento dos motivos, que são transformados ao longo da obra. Dito isso, apesar das várias referências ao compositor alemão, aquela ópera francesa recebe alusões mais significativas para o desenvolvimento da história.
Em Swann, lemos que o avô de Marcel implicava com os amigos judeus do neto cantando sem as palavras outra passagem da ópera, a prece "O Dieu de nos pères", bem como passagens de Sanson et Dalila de Saint-Saëns.
A ironia vai se transformando. Rachel torna-se atriz e namorada do nobre Robert Saint-Loup. A Duquesa de Guermantes, no terceiro volume da Recherche, afirma que ela não era uma atriz de primeira linha, e não via por que Saint-Loup se apaixonou. Simultaneamente, a discussão sobre o caso Dreyfus (o militar judeu falsamente acusado, em conspiração criminosa das forças armadas francesas, de traição) revela o antissemitismo das elites francesas; nesse momento, o capitão injustamente condenado estava exilado na Ilha do Diabo, onde muitos condenados morriam por conta das precárias condições da detenção; não contente com a pena, o príncipe de Guermantes era da opinião de que todos os judeus deveriam ser deportados para Jerusalém! Mais adiante, descobrimos que ele deixou queimar uma ala de seu castelo para não pedir ajuda ao castelo vizinho, que era dos Rothschild...
O século XV ainda vivia na França. A duquesa de Guermantes comenta que mulheres andavam com sombrinhas com a inscrição "morte aos judeus" por causa do caso Dreyfus. Trata-se de outro paralelo com a ópera, na qual os cristãos gritam mais de uma vez exigindo o extermínio dos judeus.
Nesta interessante montagem de Arnaud Bernard para o Teatro de São Petersburgo, transportou-se a ação para o século XX e, já na abertura, judeus são espancados enquanto rezam: https://www.youtube.com/watch?v=wARdsIzwHzY. A atualização da ópera não fere em nada o espírito da obra; Stálin, por exemplo, notou que os problemas nela tratados eram atuais e a censurou...
Em O caminho de Guermantes, os antissemitas reclamam dos socialistas, dos estrangeiros e dos... judeus, claro, que eram pela inocência de Dreyfus. O jovem Saint-Loup, namorado de Rachel, que tinha que se esconder da família para encontrá-la e cumulá-la de presentes caríssimos, estava na contramão da família também nesse caso.
Em Sodoma e Gomorra, o quarto volume da Recherche, temos as interessantes comparações entre judeus e homossexuais na sua situação precária no mundo: estes tinham prazer em lembrar que Sócrates era um deles, assim como aqueles afirmavam o mesmo a respeito de Jesus. Proust pertencia às duas categorias e a Recherche corresponde a uma formidável denúncia dos preconceitos e da hipocrisia da sociedade francesa.
A Rachel de Proust, além de judia, amava mulheres. No livro, eu diria que o escritor vinga a personagem da ópera. Ela não se casa com Saint-Loup; no entanto, ele contrai matrimônio com a filha do Swann, Gilberte (a fortuna da jovem aumentou com o dinheiro do padrasto, Forcheville, e a tornou muito atraente para os nobres arruinados), com a "cocota" Odette. A ligação de Swann com Odette fez com que as portas da alta sociedade lhe fossem fechadas. Depois de sua morte, contudo, sua filha se tornou uma Guermantes pelo casamento (em Albertina desaparecida) e Odette, no último volume (O tempo reencontrado) parece ter rejuvenescido em meio à decadência de seus contemporâneos.
Voltemos a Rachel. Em Albertina desaparecida, Marcel, o narrador, reflete sobre o casamento de Saint-Loup, embora ele seja homossexual como o tio, e na ligação com Rachel: "Ele quis dizer que ela era era Gomorra assim como ele era de Sodoma". Gilberte, aparentemente sem saber dos vários relacionamentos que o marido tem com homens, chega a imitar a aparência de Rachel para tentar agradá-lo.
A personagem de Proust, prostituta e depois atriz "de segunda linha", judia, lésbica, era assim tão pária quanto a da ópera, que teve o azar de se envolver com um cristão disfarçado. No romance, "Rachel quand du Seigneur" encontra um fim triunfante: O tempo reencontrado culmina em uma recepção na casa da nova princesa de Guermantes, que não é senão a Verdurin, que se casou com o príncipe, enquanto o duque tem ninguém menos do que a ex-proscrita Odette como amante (relacionando-se, contudo, também com homens mais jovens, atraídos por seu dinheiro). À decadência da nobreza corresponde a ascensão dos burgueses e até da antiga cocota. Mas também à da ex-prostituta: Rachel tornou-se uma atriz célebre; Marcel diz que ela está velha e feia e que ela tenta em vão seduzi-lo com olhares, mas sua apresentação no salão da princesa esvazia completamente a recepção de Berma, a atriz que já era célebre quando a outra começava esse caminho, e sempre a desprezou.
Durante a apresentação, o narrador comenta com acidez o estilo da atriz, que tampouco agrada à viúva de seu antigo namorado, Gilberte. Rachel se tornara, entretanto, em amiga da refinada duquesa de Guermantes. Gilberte, diante da declamação de uma fábula de La Fontaine, afirma que "Um quarto é da invenção da intérprete, um quarto vem da loucura, um quarto não faz sentido, o resto é de La Fontaine". Esse julgamento severo é compartilhado por Marcel, que julga Berma muito superior.
A filha e o genro de Berma, que a exploram economicamente, chegam inesperadamente e suplicam para entrar na apresentação de Rachel, mas ela já havia acabado. Depois de humilhá-los exigindo uma justificativa por escrito, ela consente em recebê-los para parecer magnânima. Revelando depois o incidente a Berma para humilhá-la, Rachel desfere na antiga e doente atriz um golpe fatal.
Outra vitória de Rachel: a duquesa, Oriane, julga que Marcel saiu de sua vida reclusa, depois de tantos anos, e apareceu naquela noite (a última antes de o livro dissolver-se no "Tempo") para ver a atriz!
Ao menos no plano metalinguístico, há verdade na afirmação, se entendermos que o romance tem como um de seus efeitos fazer justiça a Rachel, e não só a do livro ou a da ópera, mas aos párias que ela incorpora.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
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Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã