O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 31 de março de 2020

Desarquivando o Brasil CLXV: Saúde, censura e epidemia, na ditadura e hoje

A medicina tem um papel importante para as ditaduras e os Estados imperialistas (como os EUA: uma referência é este artigo de George J. Annas e Sondra S. Crosby , "Post-9/11 Torture at CIA “Black Sites” — Physicians and Lawyers Working Together") para assessorar a repressão política, especialmente para a tortura (por exemplo, para verificar se tais corpos podem sofrer sevícias por mais tempo, ou se é necessário cuidar deles para prepará-los para mais sessões de crime contra a humanidade), a execução extrajudicial e o desaparecimento forçado, com os atestados de óbito falsos.
Na ditadura militar brasileira o papel da medicina como assessora científica do pau-de-arara e das valas clandestinas foi muito importante. Amelinha Teles e Janaína de Almeida Teles escreveram sobre a surpreendente grande proporção de médicos que estão entre os autores de graves violações de direitos humanos segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade ("A participação dos médicos na repressão política"):
A lista com os nomes de 377 agentes apontados como responsáveis por crimes de estado cometidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), apresentada no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV1), entregue à Presidência da República, em 10 de dezembro de 2014, revela um dado estarrecedor, que teve pouca repercussão: entre os listados, 52 são médicos, o que corresponde a 13,8% do total de denunciados. Esses médicos estiveram envolvidos com graves violações de direitos humanos, como a prática de tortura, a produção de laudos necroscópicos falsos de militantes políticos, o ocultamento de cadáveres.
Há, ainda, várias outras dimensões a serem estudadas na relação entre ditadura e saúde, como o enfraquecimento da saúde pública e o fortalecimento dos negócios privados. Carlos Fidelis Ponte ("A saúde como mercadoria: um direito de poucos") explica como o criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS) em 1974, administrado pela Caixa Econômica Federal, serviu para transferir dinheiro às empresas privadas de saúde: "Instala-se, assim, um verdadeiro processo de drenagem dos recursos públicos que passam a capitalizar as empresas de medicina privada, transformando a saúde em um negócio bastante lucrativo."
Essa escolha política não era, evidentemente, a mais favorável para a epidemiologia. Nesta pequena nota, quero somente lembrar da epidemia de meningite em São Paulo, que começou em 1970 e que a ditadura militar tentou esconder, o que facilitou a disseminação da doença e provocou mais mortes. Apesar de sua importância, o assunto não foi tratado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, que tendeu a subestimar as violações aos direitos sociais, como o direito à saúde. A exceção foi o capítulo sobre violações dos direitos dos povos indígenas, provavelmente o melhor de todo o relatório da CNV, que destacou os problemas da saúde indígena e o uso de epidemias para o genocídio daqueles povos.
A autora de Meningite: uma Doença sob Censura?, a médica e pesquisadora Rita de Cássia Barradas Barata, sobre essa epidemia, ocorrida durante o "Milagre" econômico, aponta que as desigualdades sociais crescentes e as más condições de vida propiciavam a epidemia: "Apesar do crescimento econômico vertiginoso, a política de "arrocho" salarial, a repressão política, os movimentos migratórios no sentido campo-cidade e norte-nordeste-sudeste, e o crescimento acelerado da periferia dos grandes centros urbanos compunham o pano de fundo das condições sócio-políticas e socioeconômicas favoráveis ao aparecimento e disseminação da epidemia." ("Epidemia de doença meningocócica, 1970/1977. Aparecimento e disseminação do processo epidêmico")
A Câmara dos Vereadores de São Paulo somente começou a tratar do assunto em 1972, reagindo ao pânico da população diante da morte, que enfim começava a ser noticiado pelos jornais:

José Antônio Oliveira Laet, nesta sessão de 29 de setembro, diz que "Não há o menor perigo de epidemia", mas apenas "surtos epidêmicos". O vereador José Storópoli retomou o assunto para criticar a Prefeitura por causa da insalubridade de São Paulo, propícia para as bactérias: "Mas a causa do mal, diriam os técnicos, os especialistas na matéria, que trabalham pela verdadeira cauda do povo, reside na sujeira desta cidade, começando pelo Rios Pinheiros e Tiete, a poluição atmosférica, de um modo generalizado, e o lixo que campeia por esta cidade (haja vista o «lixão» de Vila Guilherme), e a cada dia que passa a sua desumanidade se multiplica." Em 2 de outubro do mesmo ano, o mesmo vereador voltaria a fazer essa crítica por causa do surto de febre tifoide em São Paulo.
Oliveira Laet era da agremiação partidária de sustentação da ditadura, e estava cumprindo seu papel de defender o regime e a bactéria.
Em 9 de maio de 1973, o então vereador Celso Matsuda, também da Arena (o político foi secretário nacional da habitação do governo de Jair Bolsonaro até 13 de dezembro de 2019), referiu-se de forma eufêmica aos fatos:
Mudando um pouco de assunto, Sr. Presidente, nobres Srs. Vereadores, gostaria de alertar as autoridades sanitárias para um problema que, acredito, se não chega a ser um surto, pelo menos, está-se espalhando parcialmente pela Cidade de São Paulo. Refiro-me ao pronunciamento feito pelo nobre Vereador Arthur Alves Pinto, que denunciou um caso que ocorreu em várias escolas da zona sul, e, recentemente, recebi a notícia e telefonemas de diversas sociedades amigos de bairros que também acusam o mesmo problema na zona norte. E, ainda há pouco, a filha de um nosso funcionário foi acometida do mesmo mal: meningite. Quero alertar as autoridades públicas, a respeito do que está ocorrendo nas escolas públicas, estaduais e municipais, sobre um possível surto de meningite em São Paulo.
No entanto, segundo o artigo citado de Rita de Cássia Barradas Barata, a situação já era de epidemia há algum tempo:
Para o Município de São Paulo, como um todo, a incidência foi epidêmica a partir de abril de 1971. Se consideramos a primeira incidência epidêmica em cada distrito e subdistrito, mesmo que a seguir  ela tenha retornado aos níveis endêmicos temporariamente, em abril de 1971, cerca de 31 distritos e subdistritos já haviam apresentado número excessivo de casos, pelo menos durante um mês.
Já em janeiro de 1970, 4 subdistritos apresentaram incidência epidêmica para a doença meningocócica.
O cinismo das autoridades federais, que fingiam não estar informadas sobre o assunto, embora tivessem impedido a imprensa de informar o público sobre a epidemia (Beatriz Kushnir, em seu Cães de guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, comprova que a palavra meningite estava entre as proibidas pela ditadura), foi assunto desta manifestação do vereador Mário Hato na sessão de 2 de agosto de 1974:
Sr. Presidente, nobres Vereadores: Fiquei surpreendido com a surpresa que o Sr. Ministro da Saúde teve frente a este surto epidêmico de meningite que invadiu esta cidade e outras do País. A surpresa é porque o Sr. Ministro da Saúde, como médico, deveria saber que 2,5% da nossa população é portadora de meningococus nas vias aéreas superiores. Portanto, cerca de duzentas mil pessoas, em São Paulo, são portadoras deste germe, sem que se manifeste a meningite. Isto, porque são pessoas resistentes
Assim, por meio da censura e do negacionismo oficial, contribuía o governo com a mortandade. Barradas Barata e José de Cássio Moraes ("A Doença Meningocóccica na Cidade de São Paulo durante o Século XX") afirmam que o aumento de casos levou ao fim da inútil negativa da realidade pelas autoridades, e a saída de Médici do governo facilitou a mudança de orientação:
Com relação à epidemia de doença meningocócica, durante a maior parte do tempo, as autoridades recusaram-se a fornecer dados exatos a respeito da magnitude. Quando a simples recusa de informações não era mais um mecanismo eficaz para impedir o acesso da imprensa aos dados, passou a haver censura prévia aos meios de comunicação, invocando-se, na defesa dessa medida, a “segurança nacional”.
A magnitude assumida pela epidemia a partir do inverno de 1974, entretanto, impediu que as autoridades continuassem negando sua existência. A troca do general presidente, naquele ano, facilitou a mudança de atitude das autoridades. Mesmo assim, o boletim diário da Secretaria da Saúde era enviado regularmente ao Serviço Nacional de Informações (SNI) que o entregava ao presidente Geisel (JORNAL DA TARDE, 1974). 
O ministro da saúde de Geisel, Paulo Machado, buscou reverter os efeitos da epidemia sobre a imagem do governo elogiando os médicos brasileiros; minha referência neste ponto é Priscila Vitalino Severo Pais ("Considerações históricas sobre os intentos das Conferências Nacionais de Saúde: projetos políticos em transição na edição de 1977"):
[...] mesmo a crise desencadeada pela meningite acabou por ser abarcada pela estratégia da ditadura de apresentar uma política de saúde bem-sucedida. Por isso, mais importante que citar os problemas vividos em meio à epidemia e alertar a população sobre seus perigos, era preciso referenciar os feitos dos profissionais brasileiros, o que mantinha o tom ufanista do discurso oficial e reforçava a ideia da execução de “políticas eficientes” por meio da ênfase nos resultados da campanha profilática e mesmo da boa formação técnica e intelectual que os profissionais brasileiros teriam recebido.
Trata-se de algo que lembra o que têm feito certos políticos e apoiadores do governo de hoje, como o jogador de futebol Neymar, convocando para "aplausos" públicos aos profissionais de saúde, desviando a atenção dos protestos contra o governo e das más condições de trabalho na saúde pública, embora não seja ainda o teor do discurso do ocupante da presidência, que continua infecciosamente negacionista da realidade.
Não se sabe exatamente quantas foram as vítimas daquela epidemia. Talvez tenham ocorrido 900 óbitos. Se a saúde era um assunto de segurança nacional, pois podia comprometer a imagem do regime, a saúde de trabalho o era duplamente. A repressão e a vigilância sobre os sindicatos não o deixava passar em branco. O DOPS/SP acompanhava eventos como a Semana de Saúde do Trabalhador (SEMSAT), como se vê neste rascunho do delegado Romeu Tuma em 1979 para uma informação a ser distribuída, entre outros órgãos do sistema de informações, ao SNI. O material de divulgação da Semana, "Saúde não se troca por dinheiro", foi desenhado pela Laerte:




Há outras questões na relação entre saúde e ditadura que se põem na resistência contra o regime. Além dos profissionais de saúde que lutaram contra a ditadura, às vezes engajados na guerrilha, contra a ditadura, há também a atuação de seus sindicatos e organizações, como, veja-se abaixo, o Sindicato dos Médicos de São Paulo, que apoiava o Comitê Brasileiro pela Anistia:


Do lado dos movimentos sociais, ao menos no Estado de São Paulo foram muito importantes aqueles relativos à saúde, que voltaram nos anos 1970. Neste relatório do II Exército em 1979, destacam-se os "Encontros populares de saúde", que eram apoiados pelo "clero progressista":


A observação de que se tratava de "justas reivindicações" é interessante, vinda do II Exército. E justa.
A aproximação dos profissionais de saúde com esses movimentos é outro tema de nota; ela foi destacada, por exemplo, no relatório final do XV Congresso Nacional de Médicos Residentes, encontro acompanhado pelos agentes da repressão, traçaram-se diversas diretrizes, todas voltadas para a democratização do país, entre elas a "liberdade de organização e expressão".



Creio que a proposta era completamente pertinente, eis que a liberdade de expressão não é, de forma alguma, um tema estranho à saúde. Temos aí uma das provas da necessidade de considerar os direitos humanos interdependentes e indivisíveis: com a censura imposta pela ditadura militar à menção à epidemia de meningite, comprometeu-se o direito à saúde, e vidas foram perdidas.
A tentativa do governo Bolsonaro de sonegar as informações sobre a atual pandemia de coronavírus, bem como o discurso e a prática presidenciais negacionistas não apenas lembram aquele período histórico, o da ditadura militar, que o ocupante da presidência tanto preza, como, em sua negação dupla aos direitos humanos, é capaz de multiplicar as vítimas mortais.

Nota: Os documentos citados estão sob a guarda do Arquivo Nacional, com exceção das atas da Câmara dos Vereadores, que podem ser consultados no Centro de Memória da Câmara Municipal.

The Hole Family: Not a Virus but a Wimp



The Hole Men

son larmier fauve et son nid de sanglots


We are the hole men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with shit. Alas!
Our dried voices, when
We whisper together
Are loud and meaningless.

Those who have crossed
With direct eyes to our country
Death's kingdom
Remember us - if at all - not only as lost
Violent souls, but
As the hole men.

This is the dead land
This is virus land
Here the stone images
Are raised, here they receive
The whatsapp of a dead man's hand
Under the twinkle of a falling sky.

Is it like this
In our country
Death's kingdom

April is the cruellest month, infecting
Everyone out of the dead land, mixing
Genocide and  profit, killing
My people humble people who expect
Nothing, and crying

Messias - der mich betrog!
War's nicht der Tag,
der aus ihm log,
als er nach USA
werbend zog

O My Father Thou art plucked
burning

I sat upon the shore
Tweeting, with the arid plain behind me
Shall I at least set my lands in order?
tosto che l'anima trade
il corpo suo l'è tolto
da un demonio, che poscia il governa
mentre che'l tempo suo sia volto
Fake news falling down falling down falling down
Le Prince du Fleuve des Pierres aboli

These ruins I have shored against my votes

This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a virus but with a wimp.


Footnote to Hole:

Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole! Hole!
The world is hole! The soul is hole! The skin is hole! The nose is hole! The tongue and cock and hand and asshole!
Hole the solitudes of skyscrapers and pavements during epidemics! Hole the cafeterias filled with virus! Hole the vast lamb of the middleclass!
Hole my people in the insane asylum! Hole the little cocks of my father and grandfathers! Who digs Brazil FLEES Brazil!
Hole the supernatural extra super brilliant intelligent kindness of my soul!

domingo, 29 de março de 2020

"O vírus avisa:/ o verme governa"




O vírus avisa:
o verme governa,
penetra no vácuo
da ferida infecta,

e a facada se afia
no visco do verme,
torna-se metástase.
Todo o país fere.

País genocida
com ovos do verme
dentro do palácio.
Devoram-no em breve.

Boca e ânus se uniram
no animal-flagelo;
é capaz do diálogo,
mas com o excremento.

Esta epidemia
tornada governo
edita epitáfios
como seus decretos.

O vírus revisa
no fôlego, a peste,
no sangue, o coágulo,
no governo, o verme,

e os corpos pré-cinza
andam pós-enterro
pelo sanitário
reino do deserto.

O vírus confina,
embora o governo
queira abrir o tráfego
a contínuos féretros,

e a cidadania
só assim se veja:
máscara mortuária
ou ração aos vermes.

Os que financiam
o governo infecto
transformam as fábricas
em caixões abertos.

O verme vomita;
tumor de si mesmo,
espalha-se em látegos
no próprio esqueleto,

e os sons da metástase
ecoam no vácuo
a lei do palácio.
Todo o país fede.

Vomitar o verme,
torná-lo rejeto
de nenhum minério
nesta nova mina

que a epidemia
abriu na política.
O verme vomita
o próprio epitáfio.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Mortes de Naomi Munakata e Martinho Lutero, coronavírus e eugenia bolsonarista

Dois dos maiores regentes de coro no Brasil, Martinho Lutero Galati e Naomi Munakata, morreram em 25 e 26 de março de 2020, respectivamente, por causa do vírus corona, apesar de o brasileiro "não pegar nada", de acordo com as ideias infecciosas do governo federal.
Ouçam a matéria da CBN, "Regentes Naomi Munakata e Martinho Lutero morrem por coronavírus".
Eram dois dos maiores músicos brasileiros e dispensam apresentações; para os estrangeiros que lerem esta nota, sugiro ler esta matéria com as atividades no Brasil e na Europa de Lutero; esta outra, sobre o currículo da regente.
Eu assisti a várias apresentações de ambos. Tinham concepções diferentes de som: Munakata preferia que seus cantores emitissem de forma mais seca e com pouco vibrato. Lutero, por vezes, queria bem o oposto, como nas épicas interpretações de "A Internacional" que vi.
O cd "Canções do Brasil", com o coro da Osesp, parece-me dar uma boa ideia do que Munakata queria atingir em termos de qualidade sonora. Trata-se, como se sabe, de um disco obrigatório para os interessados pela rica música coral brasileira, não só pela qualidade dos cantores da Osesp, mas pela escolha do repertório, que reúne o popular e o erudito.
Nunca cantei sob a direção de nenhum deles. Uma vez, numa apresentação do Coro Luther King em homenagem que a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo faria a Inês Etienne Romeu (a única sobrevivente da Casa da Morte, um centro clandestino de tortura e execução extrajudicial que a ditadura militar mantinha em Petrópolis), ele me convidou para cantar a "Suíte dos pescadores", de Dorival Caymmi, no arranjo de Damiano Cozzella, porque, antes do concerto, mencionei que havia interpretado essa peça no Coral da USP, e o Coro dele estava desfalcado. Mas não ousei fazê-lo, pois não tinha ensaiado.
Como naquela ocasião, Martinho Lutero participou de várias atividades de memória, verdade e justiça. Ele regeu na missa em homenagem a Vladimir Herzog em 2015, na Catedral da Sé, no aniversário de 40 anos da cerimônia inter-religiosa realizada após a tortura e a execução do jornalista pela ditadura militar. Escrevi uma nota sobre este emocionante momento: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2015/12/retrospectiva-2015-palavras-publicas.html
Essas atividades devem ter representado algum peso na demissão política que o afastou do Coral Paulistano em 2016, que comentei no blogue. Munakata assumiu a instituição criada por Mário de Andrade.
Adriano Diogo, que foi presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", convidou-o para se apresentar em algumas audiências públicas, como a do caso Olavo Hanssen. Por isso, no seminário de 5 anos da Comissão, ele foi chamado para dar um testemunho; embora estivesse previsto na programação, na véspera decidiu não aparecer por causa do concerto que regeria à noite. Ele havia chegado da Itália. Provavelmente já estava infectado pelo vírus que o mataria doze dias depois. Sua esposa, Sira Milani, agora viúva, falou em seu lugar. Ele regeu o concerto do dia 13 e o do dia seguinte, neste ano do cinquentenário do Coro Luther King.
Munakata tinha 64 anos, e Lutero, 66. A eugenia bolsonarista do "Infelizmente algumas mortes terão, paciência" parece apostar em que a população (ou, ao menos, seus eleitores, que não recuam diante do elogio à tortura e a outros crimes contra a humanidade) não ligará para colocar em risco as pessoas da terceira idade. O capital certamente não se incomodará, ele é acumulado a partir de campanhas como esta; vejam esta foto de Isadora Neumann, "eu pago teu salário", em carreata gaúcha, que documenta a violência de classe, bem como as declarações do dono do Madero sobre as 5 ou 7 mil mortes, e de Roberto Justus.
No entanto, há também vítimas jovens. As ações do governo federal apontam para o aumento dessas vítimas, o que gerou o rompimento com a maior parte dos governadores do Estado (uma exceção é Zema, de Minas Gerais, eleito pelo Novo, um partido-satélite do bolsonarismo) até com aliados que se elegeram em 2018 na onda da extrema-direita, como Caiado, Witzel e Doria.
A combinação de provincianismo jurídico e geopolítico com a submissão aos Estados Unidos, outra das velhas novidades da ditadura militar requentadas por Bolsonaro, caracteriza a política externa deste governo, e parece estar na base na violação das recomendações da Organização Mundial de Saúde. Medida análoga em Milão acarretou a aceleração das mortes, razão pela qual o prefeito daquela cidade, com o peso de cadáveres às costas, reconheceu o que chamou de "erro". Aquela propaganda letal da Itália é similar à do governo federal brasileiro.
Nesta sexta-feira, dia 27, o ministro da saúde, nesta gestão lamentável, resolveu não aparecer em uma reunião virtual da OMS sobre o assunto; contatado por Jamil Chade, o governo tampouco esclareceu quem teria sido o representante oficial de baixo escalão na reunião! Parece que a administração está mais preocupada com a contratação sem licitação de empresas que doaram para a campanha do atual ministro, segundo apuração de Breno Costa.
Vi que algumas pessoas chamaram atenção ao fato de que no vídeo de propaganda "O Brasil não pode parar", compartilhado pelo filho investigado por alegado esquema de rachadinha em seu gabinete e lavagem de dinheiro, em contraste flagrante com a maior parte da publicidade, a maioria dos que aparecem no filme são negros, e fazem, em geral, o papel de trabalhadores em ocupações manuais e/ou de baixa qualificação. São essas pessoas que o governo federal, aparentemente, quer expor ao vírus. Enquanto isso, seus apoiadores mobilizam redes de desinformação para negar que o vírus corona provoque mortes.
Há jornalistas, como Kennedy Alencar, que já falam em "genocídio". O deputado Fábio Trad chamou de genocídio a iniciativa de ""isolamento vertical''' do governo federal, isto é, de isolar apenas pessoas que são consideradas grupos de risco. Esse deputado é, lembra o Congresso Em Foco, "primo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e irmão do senador Nelsinho Trad, que contraiu covid-19 após integrar a comitiva de Bolsonaro que foi aos Estados Unidos no início de março"...
O Congresso em Foco divulgou que "Pesquisadores de Oxford projetam 478 mil mortes por covid-19 no Brasil". O estudo foi publicado em 14 de março.
"Bolsonaro Genocida" foi o tópico mais comentado no twitter no Brasil no dia 23 de março; foi o momento da Medida Provisória 927/2020, que foi elaborada para deixar os empregados quatro meses sem salário, e gerou tanto repúdio que obrigou o ocupante da presidência a recuar:


Há dez dias ocorrem protestos diários contra Bolsonaro no Brasil, em geral panelaços. Aqui em São Paulo, projetam-se em prédios imagens como estas, que fotografei no dia 25:



Além disso, subsistem as dúvidas sobre a saúde do ocupante da presidência: ele estaria contaminado pelo vírus corona quando compareceu às manifestações em seu favor no dia 15 de março e, assim, teria cometido crime contra a saúde pública? Ele nega sem mostrar os exames. Boa parte de seu entorno contaminou-se, inclusive o ministro Augusto Heleno. Seu filho que tentou ser embaixador do Brasil nos EUA sem saber inglês e ignorando quem é Henry Kissinger afirmou a Fox News que o pai testou positivo para o vírus, mas depois negou. O Hospital que atendeu o ocupante da presidência e sua esposa omitiu o resultado de dois pacientes.
Entretanto, o governo federal tenta ocultar informações sobre a epidemia. Afortunadamente, o Conselho Federal da OAB , na ADI 6351-DF, conseguiu que o Supremo Tribunal Federal suspendesse, em decisão liminar, o trecho da Medida Provisória 928/2020 que permitia ao governo suspender os prazos de resposta aos pedidos fundamentados na Lei de Acesso à Informação. Na decisão, o Ministro Alexandre de Moraes destacou o caráter antidemocrático, pois avesso à transparência, da medida de Jair Bolsonaro:
O art. 6º-B da Lei 13.979/2020, incluído pelo art. 1º da Medida Provisória 928/2020, não estabelece situações excepcionais e concretas impeditivas de acesso a informação, pelo contrário, transforma a regra constitucional de publicidade e transparência em exceção, invertendo a finalidade da proteção constitucional ao livre acesso de informações a toda Sociedade.
Não é possível realmente cantar em coro quando se está em isolamento social; a tecnologia não permite resolver os problemas dos pequenos atrasos na transmissão e de sincronização, muito menos de timbragem e prática de conjunto (os vídeos que supostamente mostrariam o contrário têm todos, no mínimo, uma base pré-gravada). Dessa forma, nós, que cantamos em conjunto, não podemos nos reunir, neste momento, para lamentar o falecimento de Naomi Munakata e Martinho Lutero, tampouco protestar em apresentação pública contra o governo que trata essas mortes como caso menor e engendra políticas que irão multiplicá-las. Teremos que achar outras formas de protesto, ou de canto, contra esta nova eugenia.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Desarquivando o Brasil CLXIV: Novamente antes dos atos golpistas: Programação do Seminário dos 5 anos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"

Foi fechada a programação do Seminário dos 5 anos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva", que ocorrerá em São Paulo, no Centro Universitário Maria Antônia, em 13 de março de 2020
A Comissão, presidida por Adriano Diogo, e coordenada inicialmente por Ivan Seixas e, posteriormente, por Amelinha Teles, existiu de 2012 a 2015 e seu último dia de funcionamento foi um 13 de março, sexta-feira. Trabalhei nela como pesquisador em 2014 e 2015.
Os grandes jornais diários de São Paulo ignoraram a entrega do relatório final (já a Carta Capital publicou-o quase integralmente), muito ocupados em convocar as pessoas para os atos do 15 de março de 2015, que pediam a derrubada da presidenta Dilma Rousseff.
Neste ano, o seminário novamente está a dois dias de manifestações antidemocráticas, desta vez convocadas pelo atual ocupante da presidência da república. Depois de negar tê-lo feito, apesar do vazamento do vídeo de propaganda dos atos de 15 de março em prol do fechamento do Congresso Nacional que enviou por mensagem, ele o assumiu chantageando os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a abrirem mão de 15 bilhões do orçamento para que os atos não ocorram: "Bolsonaro: 'Se Congresso abrir mão de R$ 15 bi, pode não ter ato'".
Trata-se de mais um crime de responsabilidade, espécie que prolifera como método de gestão, na ausência de instituições que façam freio ao Executivo.



Continuamos a pagar caro a falta de justiça de transição no Brasil, com a impunidade dos agentes da repressão da ditadura e a falta das reformas institucionais que tornassem o Estado brasileiro realmente democrático. O trabalho da Comissão "Rubens Paiva" foi completamente orientado para essas medidas de justiça ligadas à transição política, e que foram esquecidas depois do golpe de 2016, e soterradas pelo atual presidência, que se lançou nacionalmente elogiando o quadro número 1 das torturas e das execuções extrajudiciais da ditadura.
Novamente o pessoal da Comissão apresenta seu trabalho às vésperas de atos antidemocráticos.
Falarei, na primeira mesa, do relatório. Ele teve quatro tomos: o primeiro, com 26 capítulos, divide-se em quatro partes:

PARTE I: ESTRUTURAS E SISTEMAS DA REPRESSÃO
CADEIAS DE COMANDO: A FORMAÇÃO DA ESTRUTURA NACIONAL DE REPRESSÃO POLÍTICA
REPRESSÃO POLÍTICA: ORIGENS E CONSEQUÊNCIAS DO ESQUADRÃO DA MORTE
MÉTODOS E TÉCNICAS DE OCULTAÇÃO DE CORPOS NA CIDADE DE SÃO PAULO
A FORMAÇÃO DO GRUPO DE ANTROPOLOGIA FORENSE PARA IDENTIFICAÇÃO DAS OSSADAS DA VALA DE PERUS
O “BAGULHÃO”, A VOZ DOS PRESOS POLÍTICOS CONTRA A DITADURA
A PERSEGUIÇÃO AOS MILITARES QUE RESISTIRAM À DITADURA
A MILITARIZAÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA
O FINANCIAMENTO DA REPRESSÃO
CONEXÕES INTERNACIONAIS NA DITADURA: OPERAÇÃO CONDOR E O GENERAL PAUL AUSSARESSES
O LEGADO DA DITADURA NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
PARTE II: GRUPOS SOCIAIS E MOVIMENTOS PERSEGUIDOS OU ATINGIDOS PELA DITADURA
PERSEGUIÇÃO À POPULAÇÃO E AO MOVIMENTO NEGROS
VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS
VERDADE E GÊNERO
INFÂNCIA ROUBADA
A PERSEGUIÇÃO AOS TRABALHADORES E AO MOVIMENTO OPERÁRIO
A PERSEGUIÇÃO AO MOVIMENTO ESTUDANTIL PAULISTA
DITADURA E HOMOSSEXUALIDADES: INICIATIVAS DA COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO RUBENS PAIVA
DITADURA E SAÚDE MENTAL
PARTE III: AÇÕES DE RESISTÊNCIA E MEDIDAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
A SENTENÇA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO GOMES LUND E OUTROS VS. BRASIL
A ATUAÇÃO DOS ADVOGADOS NA DEFESA DOS PRESOS POLÍTICOS
AS AÇÕES JUDICIAIS DAS FAMÍLIAS TELES E MERLINO
IMPRENSA DE RESISTÊNCIA À DITADURA
LEMBRAR OS 50 ANOS DO GOLPE MILITAR, LEMBRAR SUAS VÍTIMAS, LEMBRAR A RESISTÊNCIA, CONSTRUIR A VERDADE E ALCANÇAR A JUSTIÇA!
CONTRIBUIÇÕES DA COMISSÃO DA VERDADE PARA O TRABALHO DE MEMÓRIA E DE JUSTIÇA
PARTE IV: ARQUIVOS E MEMÓRIA
LUGARES DE MEMÓRIA, ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA E LOCAIS DE TORTURA
ALESP NA DITADURA
Alguns dos temas foram tratados apenas por esta Comissão. Certos deles entraram no relatório da Comissão Nacional da Verdade, apesar da resistência de alguns dos comissionados, com a ajuda da pressão política da Comissão "Rubens Paiva", que realizou audiências públicas sobre tais assuntos delicados, como Verdade e Gênero, Ditadura e Homossexualidades e Violações aos direitos do Povos Indígenas.
O tomo II corresponde a uma atualização do trabalho feito pela Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos (refiro-me à organização da sociedade civil, e não ao órgão do Estado) sobre esses que foram vítimas de crimes contra a humanidade pela ditadura militar. O trabalho dos Familiares foi base também para o relatório da CNV.
O tomo III, com milhares de páginas, traz o texto das audiências públicas da Comissão "Rubens Paiva" (desde o início, a Comissão realizou audiências abertas, o que acabou levando a CNV a abrir algumas das suas) que foram transcritas. Infelizmente, nem todas o foram, especialmente as que ocorreram fora da Assembleia Legislativa.
O tomo IV reúne contribuições de grupos de pesquisadores externos à Comissão: Os casos de tortura e morte de imigrantes japoneses em 1946 e 1947; o relatório do Grupo de Trabalho JK sobre o assassinato de Juscelino Kubitschek pela ditadura (um tema que a CNV não quis pesquisar); o relatório sobre repressão no campo no Estado de São Paulo.
A Comissão publicou três livros: Infância roubada, sobre as crianças atingidas pela ditadura (torturadas, banidas, presas), "Bagulhão": a voz dos presos políticos contra os torturadores, A condenação do Estado brasileiro no caso Araguaia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de ter republicado o Dossiê ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985).
O canal no youtube da Comissão "Rubens Paiva" reúne videobiografias de mortos e desaparecidos políticos e audiências públicas; também constitui uma importante fonte de informações contra as mentiras do autoritarismo, cada vez mais invocadas e disseminadas pela administração federal e pelas facções que a apoiam: https://www.youtube.com/channel/UC_9KpoQhSLFwWuE1TV1_CVQ.
Novamente os trabalhos da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo são oferecidos a público para inspirar e instigar as lutas democráticas. Eis a programação:



SEMINÁRIO Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", 5 anos depois | TERRORISMO DE ESTADO: DA DITADURA AO DESGOVERNO ATUAL*

Sexta-feira, 13 de Março de 2020 | Das 9h às 21h 
Centro Universitário Maria Antonia 
Rua. Maria Antônia, 258 - Centro, São Paulo 

*Programação completa*

9:00 - 9:30  Abertura Performance a partir do caso de Ana Rosa Kucinski.
Fernanda Azevedo (Cia Kiwi de Teatro)

9:30 - 10:50 Apresentação do trabalho da Comissão e de seu relatório
Adriano Diogo, Amelinha Teles, Pádua Fernandes e Vivian Mendes

11:00 - 12:20 Mesa 1 - Mortos de Desaparecidos: A luta hoje por Memória, Verdade e Justiça

_Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos_
Vera Paiva (filha de Rubens Paiva) membro da comissão

_Grupo de Trabalho das Ossadas de Perus do CAAF-Unifesp_
Edson Teles apresenta a situação atual do trabalho

_Comissões da Verdade das Universidades_
Rosalina Santa Cruz apresenta caso inédito de desaparecido da PUC-SP

_A participação da sociedade civil na Comissão da Verdade_
Suzana Lisboa, Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos 
Eduardo Valério, Promotor de Direitos Humanos do Ministério Público de São Paulo
Rafael Oliveira, Defensoria Pública do Estado de São Paulo

12:30 - 14:00 Almoço
Concerto do Octeto da Osusp

14:00 - 15:30 Mesa 2 - Graves violações de Direitos Humanos

Depoimento do _maestro Martinho Lutero_ sobre a participação do coro Luther King nas iniciativas da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"

Marlon Weichert, Procurador Regional da República -MPF

Eugênio Aragão, Procurador da República, e ex-ministro da Justiça (videoconferência)

O Caso Juscelino Kubitschek e a Comissão da Verdade SP "Rubens Paiva" apresentado por Alessandro Octaviani, Prof. da Faculdade de Direito da USP


15:30 -18:00 Mesa 3 - Genocídio e tortura ontem e hoje

_Papel dos empresários na Repressão aos Trabalhadores_
Sebastião Neto e Rosa Cardoso

_Mecanismo Estadual de Combate à Tortura - Protocolo de Istambul_
Carolina Toledo Diniz, Consultora da Conectas
Mateus Oliveira Moro, Defensor Público do Estado de São Paulo, Coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária

_Comissão da Verdade da Escravidão_
Caso Chaguinhas/Liberdade - tortura e execução histórica - Sítio dos Aflitos
Prof. Silvio Luiz Sant'Anna, UNAMCA 
Paula Nishida, DPH/Secretaria da Cultura
Paula Vermeersch, historiadora da Unesp

_Os genocídios da Democracia_
Participação de Solange Oliveira das Mães da Zona Leste

_Comissão Camponesa da Verdade_
Clifford Welch e Gabriel da Silva Teixeira, pesquisadores da Comissão da Verdade SP- Rubens Paiva

18:00 - 18:45 - lanche

18:50 - Apresentação de trecho da peça
Ato Institucional nº5 (AI-5) No passado e no presente.

Leitura de texto em homenagem à Iara Iavelberg, por Natália Siufi - grupo Xingó


19:00 - 21:00 Ato final - Manifesto Terrorismo de Estado: Da Ditadura ao Desgoverno Atual 

Homenagem a Rafael Martinelli e Ieda Akselrud de Seixas

Leitura do Manifesto

Debate sobre o desgoverno com:
Adriano Diogo, Amelinha Teles, Eleonora Menicucci, Eliana Vendramini, Luiza Erundina, Maria Auxiliadora Arantes (Dodora) e Rosa Cardoso

domingo, 1 de março de 2020

Uma ópera de amanhã: Terror, desespero e morte no "Édipo Rei" de Luciano Camargo (Final dos 30 dias de ópera)

Na verdade, tanto de hoje quanto de amanhã; hoje, teremos a última apresentação em São Paulo do primeiro ato da ópera Édipo Rei, não a do Stravinsky ou a de Leoncavallo, mas a do compositor e regente brasileiro Luciano Camargo, com libreto de Rodolfo García Vázquez.
No entanto, como os outros atos ainda não foram terminados, a obra ainda pertence ao futuro.
No momento, há muito poucos lugares: https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/carmina-burana-8847#/


A regência é do próprio compositor, com a Orquestra Acadêmica e a Associação Coral da Cidade de São Paulo.
No começo, o coro lamenta o "terror, desespero e morte" que assolam Tebas por causa da peste. Suplica-se por "Zeus da doce palavra". Creonte chega e explica as palavras do oráculo: o assassino do rei Laio deve ser punido para que a peste deixe a cidade: "foram salteadores ímpios que assassinaram os soldados e o rei". Édipo, "o mais sábio dos homens", aquele que decifrou os enigmas da Esfinge, decide encontrar o criminoso. O ato termina com o Hino de Tebas cantado pelo coro.
A estreia ocorreu em 26 de fevereiro de 2020. Para ter uma ideia da música, só encontrei disponível a abertura da ópera com a Orquestra Acadêmica de São Paulo, com a  https://youtu.be/q5ZAtwLpxk4
O começo apresenta uma linha que o coro canta com o verso "Eu escolho o meu caminho". Sabe-se que o destino, na acepção grega, mostra o quanto de ilusório há nessa escolha. Neste ponto, começa a fuga: https://t.co/YDNN7Urjrd?amp=1; o coro a canta com estas palavras: "O criminoso, o infame criminoso que assassinou o rei". Pouco depois, surge o tema do Hino de Tebas: https://t.co/NGjtq7KSX0?amp=1. A invocação a Zeus, neste momento: https://youtu.be/q5ZAtwLpxk4?t=445. No fim, temos as batidas do destino: https://youtu.be/q5ZAtwLpxk4?t=539.
Em janeiro de 2020, quando o agora exonerado Roberto Alvim deixou evidentes as inspirações nazistas de políticas do governo Bolsonaro, vi gente perguntando, por conta do edital para premiação de obras "nacionalistas", que incluía o gênero ópera, se já foram compostas cinco óperas no Brasil!
A pergunta que seria de assustar, se não fosse mais um sinal do quadro de abandono da música brasileira pelos meios de comunicação e pelo grande público, tanto no campo da chamada música erudita quanto no da popular (considerando também que eles se cruzam várias vezes, Villa-Lobos que o diga). Assim, tanta gente não sabe quem é Carlos Gomes ou Harry Crowl e também ignora, por exemplo, Pixinguinha ou Tiganá Santana.
Em crônica de 28 de setembro de 1886, Machado de Assis escreveu um diálogo com esta passagem: "A Ópera Nacional foi uma instituição que aqui houve para cantar óperas italianas, traduzidas pelo De-Simoni. Quando menos pensava, deu-nos o Carlos Gomes... Se todas as instituições deixassem assim alguma coisa... Bons tempos!"
Hoje, no entanto, as instituições estão em cruzada aberta (com toda suas acepções de caráter religioso e bélico) para deixar a devastação. Contra elas, temos o compromisso de criar.
Quanto a mim, logo mais estarei no teatro para me unir às vozes que denunciam o "terror, desespero e morte" presentes na Tebas clássica e no Brasil de hoje.

30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera (Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff)
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto (Nabucco, de Verdi)
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução (O anel do Nibelungo, do amigo de Bakunin)
Dia 30: Uma ópera de amanhã

Uma ópera que se tornou revolução: "O anel do Nibelungo", do amigo de Bakunin (30 dias de ópera: dia 29)

Entre os não muito numerosos compositores que participaram das revoluções do século XIX, está Richard Wagner. Infelizmente, a decadência (mas não a de ordem musical) veio com o tempo, e o fim de sua vida o veria no meio da aristocracia alemã mais reacionária, para o horror de Nietzsche.
A amizade com Bakunin e militantes socialistas inspirou Wagner a escrever o embrião de O anel do Nibelungo ("Der Ring des Nibelungen"; nota: algumas pessoas que não sabem alemão veem o "des", o genitivo, e querem escrever "dos Nibelungos" em português, mas, se fosse plural, seria "der"). Trata-se da impressionante saga formada por quatro óperas, O ouro do reno ("Das Rheingold", o prólogo, que dura apenas umas duas horas; as outras levam de quatro a cinco horas sem contar os intervalos), A Valquíria ("Die Walküre"), Siegfried e Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung). Os quatro títulos nasceram a partir do que foi planejado inicialmente em 1848 como uma só ópera, A morte de Siegfried.
Daquele ano, de revoluções na Europa, em diante (a obra só estreou em 1876, depois de vários percalços, entre eles o exílio, e a interrupção para a composição de Tristão e Isolda e d'Os Mestres Cantores), o projeto foi aumentando em proporções, até chegar a esse espetáculo que exige quatro noites e muito trabalho dos diretores, dos cenógrafos, dos iluminadores, da orquestra, dos cantores, do regente, dos produtores... É uma façanha montá-lo, e também porque a música é difícil de executar. Alguns dos papéis exigem muito dos limites do corpo humano, especialmente Wotan (nem para a estreia Wagner conseguiu encontrar um baixo-barítono que pudesse cantá-lo, e se contentou com um barítono que, se não podia fazer justiça aos graves da parte, pelo menos cantaria os agudos), Brünnhilde (soprano dramático) e Siegfried (tenor dramático).
Como tantas vezes ocorre em Wagner, o ciclo é inspirado na mitologia nórdica. O que é interessante é a ligação do ciclo com as atividades revolucionárias do compositor e de seu amigo de Bakunin. Como se sabe, os levantes de 1848 fracassaram nos Estados alemães. Leio na biografia de Robert W. Gutman (Richard Wagner: The man, his mind, and his music; o autor é insuspeito de simpatia com o biografado, e expõe com clareza os problemas éticos, especialmente o antissemitismo do compositor) que o drama de A morte de Siegfried foi concebido como "teatro da revolução".
Ele quase foi preso com Bakunin em Dresde, mas teve a ideia de dormir em um mosteiro em Chemnitz; durante o sono, o outro revolucionário foi preso. Depois, Wagner conseguiu fugir  tomando o nome de um amigo para viajar incógnito. Depois de uma anistia geral, ele acabou por voltar em 1863.
Wagner revolucionou a música ocidental. No entanto, a presença da revolução social em O anel só foi realmente colocada no centro da obra por Bernard Shaw, no conhecido The perfect Wagnerite: A commentary on the Niblung's Ring, de 1898.
Na edição de 1922, posterior, pois, à Revolução Soviética, ele acrescentou o comentário de que tanto Wagner quanto Marx
[...] profetizaram o fim de nossa época; e apesar de em 1913 aquela época parecesse tão próspera que a profecia parecia ridiculamente desprezível, em dez anos o centro saiu da Europa [...] Alberich prosperou tanto que chegou a se julgar imortal; e suas alianças com Wotan colocaram seus filhos e filhas sob a influência, perigosa para o comércio, de ideais militaristas feudais. [...] Alberich nunca acreditaria que o velho caminho levaria ao abismo, nem exploraria novos; e as massas não conheciam nada sobre caminhos, e muitos sobre a miséria.
Alberich, na primeira cena de O ouro do Reno, é o anão que renuncia ao amor para roubar as riquezas do Reno. Wotan, necessitando de dinheiro para pagar a construção do Walhalla, o castelo dos deuses, pelos gigantes Fafner e Fasolt, resolve com o deus Loge enganar Alberich e roubar o ouro, bem como, entre outros objetos, o anel cuja posse daria o domínio do mundo. Conseguem fazê-lo, mas são obrigados pelos gigantes a conceder até o anel, que foi amaldiçoado por Alberich: https://youtu.be/3ZP-yXsNV2E?t=6098. Nesta produção dirigida por Patrice Chéreau e regida por Pierre Boulez, Wotan é interpretado por Donald McIntyre, Loge, por Heinz Zednik, e Alberich, por Hermann Becht.
Essa foi a produção do centenário do Anel, no teatro de Wagner, em Bayreuth. Chéreau e Boulez montaram a ópera no mundo industrial. Os deuses estão lá, integram a elite.
Os humanos aparecem apenas em A Valquíria e, com eles, aparecem as insurgências. N'A Valquíria, onde encontramos, no início do terceiro ato, a famosíssima Cavalgada das Valquírias, temos a revolta da mulher raptada e casada à força, Sieglinde, que abandona seu algoz e marido, Hunding, por um estranho, Siegmund, que ela descobre ser seu irmão.Ambos são filhos de Wotan.
A descoberta não demove nenhum dos dois de consumar a paixão. Neste trecho, ele canta para ela a canção da primavera, e ela responde: "Tu és a primavera" ("Du bist der Lenz"): https://www.youtube.com/watch?v=NB5e62wSjEQ. Jeannine Altmeyer interpreta Sieglinde, Peter Hofmann, o irmão e amado.
Porém, por força dos tratados e da respeitabilidade das leis familiares, impostas pela Deusa Fricka, Wotan se vê obrigado a punir com a morte Siegmund. Brünnhilde, a Valquíria e também filha de Wotan, comove-se com o amor do casal, desobedece a ordem de deixá-lo morrer nas mãos de Hunding e tenta salvá-lo. O próprio Wotan, porém, quebra a espada de Siegmund, Notung, e ele perece na luta.
Brünnhilde consegue salvar Sieglinde e a faz correr para uma floresta selvagem. Ela já está grávida, conta-lhe a deusa. Wotan vem punir a filha desobediente com a perda da divindade e, com isso, a ter que se submeter a um homem (vejam a crítica ao patriarcado: ele é uma punição para as mulheres), mas ela  consegue convencê-lo a cercá-la de fogo no alto do rochedo, para que somente alguém destemido possa encontrá-la, beijá-la, despertá-la do sono e conquistá-la: https://youtu.be/SfcEfYN6PjU?t=2990. Gwyneth Jones interpreta Brünnhilde, e Wotan é encarnado por Donald McIntyre.
Este homem sem medo será Siegfried, o filho de Sieglinde (que morrerá no parto) e Siegmund.
No final de O crepúsculo dos deuses, os deuses enfim são aniquilados e o anel é devolvido para o rio. Vejam como termina a famosa cena de imolação, em que Brünnhilde devolve o que foi roubado das Filhas do Reno e ordena a construção da pira que incendiará a morada dos deuses: https://youtu.be/_ww4JHkloa8?t=14272. Hagen, filho de Alberich, ainda tenta recuperar o anel, mas é afogado pelas Filhas do rio. Vejam o que Chéreau reservou para o fim: a partir da iniciativa das crianças, os humanos voltam-se para o público.
E o que a plateia fez? Vaiou! Esta produção foi bastante hostilizada quando estreou em 1976, mas, com o tempo, foi ovacionada (a filmagem é de 1980, os aplausos são intensos). A montagem foi revolucionária e incomodou a extrema-direita que frequentava o Festival de Bayreuth, muito atrasada esteticamente (queriam um Wagner de conto de fadas) e, claro, politicamente.
Gwyneth Jones, rememorando as apresentações em depoimento para a revista Diapason, a propósito do falecimento de Pierre Boulez, lembra que a equipe recebeu ameaças de morte por causa da montagem. Nos anos 1930, imagino que elas teriam sido consumadas. Nesse sentido, o nazismo foi antiwagneriano; pois nada mais fiel à música de Wagner (claro que não falo aqui do ideólogo antissemita, mas do compositor, cujos intérpretes mais destacados foram tantas vezes os judeus, de Hermann Levi, o regente que estreou Parsifal, a Daniel Barenboim) do que colocar a revolução no centro do palco e, dessa forma, tentar instaurá-la no mundo.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera (Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff)
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto (Nabucco, de Verdi)
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã